Ó raparigas do meu bairro!…

Curioso inquérito realizado há algum tempo na Universidade de Macau às raparigas: o sonho de quase todas é casar, ter filhos e tomar conta do lar. Portanto, estas candidatas a fadas (do lar), se puderem, não tencionam seguir uma carreira, dedicar-se a uma profissão, no fundo, ter uma individualidade social. Convenhamos que este tipo de desejos não parece estar muito de acordo com o espírito do tempo. Ou será que está?

No Ocidente, desde o século XX que a mulher tem vindo a ocupar um lugar importante no plano da produção. Há mesmo quem diga que a superioridade ocidental passou, em grande parte, por ter aproveitado a força de trabalho feminina ao invés de as deixar em casa a tomar conta dos filhos e outras actividades domésticas. O escritor marroquino Tahar ben Jalloun diz que o seu país conhecerá um desenvolvimento sem precedentes no dia em que as mulheres ocuparem o espaço público, na medida em que lhes reconhece uma capacidade de trabalho, de organização e seriedade que não encontram na sua contraparte masculina.

Contudo, a saída da “casca” das mulheres não deixou de ter efeitos que alguns consideram negativos, nomeadamente na educação das crianças, cuja emotividade se desenvolverá de modo bem diferente sem a constante presença das mães. O curto tempo de amamentação provoca também, segundo a psicanálise, o aumento de carências orais, que se reflecte mais tarde em numerosos vícios, adicções e comportamentos violentos. Seja como for, não passa quase pela cabeça de ninguém inverter o actual estado das coisas. Ninguém (ou muito poucos) pensará em remeter as mulheres à vida que levavam no passado e ninguém ousaria imaginar que seriam as próprias mulheres a prescindir do seu actual estatuto e desempenho para se remeterem ao remanso do lar.

Pois em Macau, pelos vistos, a coisa não funciona como se esperaria. O mulherio, longe de pretender dedicar-se à política, às finanças, ao ensino ou ao comércio, parece mais inclinado a deitar fora as conquistas do seu sexo e voltar à vidinha doméstica que durante tantos séculos foi seu apanágio e destino. Por quê? É caso para perguntar.

Estarão as raparigas da universidade muito à frente ou muito atrás? Serão estas moçoilas de Macau uma vanguarda conservadora no mundo contemporâneo ou umas atrasadas mentais, preguiçosas e fúteis? Terão as mulheres de hoje chegado à conclusão que a vida de antes era melhor e mais eficiente, no cômputo geral, ou não estão simplesmente para a agarrar pelos cornos, preferindo agarrar os do marido, afinal mais manso que a vida? Pois não sei. Mas é caso para reflexão. E devia ser mais ainda por parte dos responsáveis políticos por esta terra, na medida em que assistem ao produto da educação que lhes proporcionaram e do ambiente cultural e social de que as rodearam. Numa palavra: são estas as mulheres que queremos?

É certo que o modelo tai-tai (mulheres casadas com um marido rico, viciadas em compras e beauty care) tem grande projecção em Hong Kong e por extensão em Macau. Mas estas senhoras têm, em geral, muito pouca educação e são, afinal, gozadas um pouco por toda a sociedade que lhes reconhece os ultrajantes tiques de futilidade. As tai-tai, sobre as quais existem dezenas de anedotas, não deveriam ser invejadas, mas constituir um modelo daquilo que as raparigas de hoje não querem ser. Não é que eu considere que o trabalho dá dignidade, mas a independência sim e ser dependente de um outro ser humano, nomeadamente do ponto de vista financeiro é, no mínimo, confrangedor.

Não chega por isso utilizar o modelo tai-tai para explicar as respostas das moças de Macau. Existe, isso sim, aqui um culto da preguiça e do dolce far niente que este regime casinodependente tem vindo a reforçar. As consequências não tardam em chegar. Elas são profundas, são mentais, duram gerações. Se o governo não implementar políticas de dignificação do ser humano em breve terá nos seus braços uma sociedade de inúteis e atrasados mentais. Desde o tempo dos portugueses que venho avisando neste sentido, agora o resultado começa a estar à vista.

Ó raparigas do meu bairro! Vamos lá a ter outro tipo de atitude! Deixem lá os cornos do gajo e agarrem os da vida! No fim, no finzinho, garanto que vale a pena. Se a vossa alma não for pequena. Se for, OK; regridam que daí não virá um mal especial ao mundo.

2 Jul 2023

Amor de mulher

Uma vez mais, o amor desmembra-me o meu corpo, sacode-me, agridoce, inescapável, animal rastejante.
Sappho, fr. 130
Ἔρος δηὖτέ μ’ ὀ λυσιμέλης δόνει, γλυκύπικρον ἀμάχανον ὄρπετον.

 

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]lguém pode converter-se numa presença lancinante nas nossas vidas. Quando alguém nos acontece, transfigura o próprio sentido da nossa existência. O seu olhar prende-nos. Faz-nos deflagrar. Converte-nos para si. Transfigura em absoluto tudo. O fragmento de Sappho descreve a perturbante presença de uma rapariga nas existências daqueles que lhes são vulneráveis. Exprime o poder total do sortilégio de um olhar que incendeia.
Como é possível que um rosto se destaque da multidão de rostos que vemos todos os dias ao longo da nossa vida? Como é possível até que um rosto já familiar se destaque um dia das inumeráveis vezes que o vimos. Qual é a natureza desse destaque absoluto que se acende ao mesmo tempo que apaga todos os outros? De certeza que não resulta do apuramento objectivo e possível da beleza de uma rapariga como maior do que a de outra. O fotografo, o realizador, o pintor, o esteta, todos nós o fazemos de uma forma ou de outra.
Quando da profundidade abismal da vida, o rosto de alguém se revela de uma forma absoluta, esse alguém passa a tomar conta da minha vida até se confundir com ela. Tudo inunda. Interpõe-se entre mim e mundo inteiro. Parece impossível, mas o facto é que entre mim e o mundo inteiro impõe-se a sua presença terna e doce. Eu sou esse reino intermédio, esse absoluto “entre” mim e tudo— mas mesmo tudo— o resto. A beleza invade e contamina. Acorda o amor, deixa-me completamente vulnerável, absolutamente exposto, totalmente fragilizado, uma ferida viva, uma fractura exposta. Sappho diz que o amor nos chega com doçura, que é doce. A doçura é aqui uma metáfora do sonho. A minha vida parece que se torna num sonho, num sonho de amor.
Mas o contraditório do amor é que traz consigo também amargura. A amargura é uma indicação da morte. O rosto de uma rapariga pode ser e é, enquanto rosto do amor, demoníaco, amargura, uma metáfora da própria morte. Uma calamidade. O colapso. O rosto do amor ao olhar-me prende-me a si para sempre. Nunca mais esquecemos o seu olhar filtrante, feiticeiro, a insinuar-se e a impor a sua presença para todo o sempre. Nunca mais esquecemos as feições do amor, o corpo em que encarna, o toque mágico que primeiro dá à luz o meu e depois o ressuscita vezes sem conta de cada vez que o acaricia na noite da vida. Só tem o poder de dar à luz e ressuscitar o que simultaneamente tem o poder de adormecer e de matar. E é possível viver para todo o sempre na saudade lancinante e pungente de um amor. O rosto do amor pode nunca mais voltar a olhar-nos de frente. Não que raparigas e mais raparigas não nos olhem, não nos vejam, não nos digam algo. Mas o amor é um deus. E o seu olhar é absolutamente diferente. Pode acontecer que nos feche os olhos para sempre. Mas pode também acontecer que encarne noutro corpo, noutro rosto, pode ser que volte a incendiar-nos o coração. Apenas o seu abraço nos faz recuperar os sentidos, nos ressuscita à morte, ao degredo, ao exílio.
O amor desmembra o nosso corpo. Estraçalha-o. Mas tal não quer dizer que a comoção violenta da paixão o sacuda e faça estremecer ante a expectativa do prazer, oferecido pelo amor. A dimensão deste corpo não se esgota no espaço do seu tamanho. O corpo de que aqui se fala é a minha vida. É no corpo que toda a minha vida, de algum modo, se unifica. O meu corpo é em certo sentido todas as minhas percepções, todas as minhas memórias, todas as minhas expectativas, todos os meus sentimentos, todas as minhas emoções, todos os outros, todos os meus eus, todo o real, todo o possível e todo o imaginário. É a vida. É precisamente tudo isso que fica desmembrado. A presença de alguém na nossa vida pode provocar o colapso, o caos, deixar-nos na miséria. Mata-nos.
O amor é um animal selvagem que rasteja até nós. Aloja-se em nós e ocupa cada ponto do nosso corpo, toda a nossa vida. O seu poder de contaminação é absoluto. Basta um só olhar. O amor é essa situação de conflito permanente e absoluto: liberta e vincula, é doçura e amargura, refaz e desfaz, ressuscita e adormece, faz-nos sonhar e confronta-nos com a realidade pura e dura, dá à luz. Mas mata. Oscilamos assim entre a possibilidade de tudo poder ser e a possibilidade de nada poder ser, a impossibilidade de tudo.
Mas este meu amor por ti, maravilhoso, por toda tu: sardenta, ginja.
A possibilidade de tudo és tu.

A amargura é uma indicação da morte. O rosto de uma rapariga pode ser e é, enquanto rosto do amor, demoníaco, amargura, uma metáfora da própria morte. Uma calamidade. O colapso.

24 Ago 2018

Rita Red Shoes – “Mulher”

“Mulher”

Sou mulher
E contra mim o que vier
É bem vindo se trouxer
Igualdade e desalinho

Sou mulher
Sem vergonha de vencer
Eu aprendo a viver
E não mudo o meu caminho

Sei dizer o que quero
E o prazer ganha força
Eu não minto mas desarmo

Sei mostrar o que sinto
E lutar corpo a corpo
Eu não minto e não escondo
Que o desejo é maior
Que o medo

Sou melhor
E agarro o que vier
Boca a boca
Sem esquece
O baton e o meu destino

Sem gemer vou colher-te
E querer dar-te um nome
Ao morrer vou chamar-te
Meu menino

Rita Redshoes

30 Mai 2017

Libertem os mamilos

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]erá que é assim tão simples, libertar os mamilos? Eu diria que não é fácil. Há qualquer coisa de especialmente escandaloso, chocante e perverso no mamilo, feminino, claro!  Não que esta seja a minha opinião mamária (muito pelo contrário), mas o meu contacto diário dá-me a entender que esta é a opinião geral. Tópicos como sutiãs, aleitamento ou cancro da mama revelam os macaquinhos conceptuais e a constante censura da aréola mamária.

Às raparigas/mulheres desde muito tenra idade que lhes são incutidos sutiãs, um obrigatório rito de passagem assim que as picadas de mosquito começam a ganhar uma forma melhor ajeitada. E assim continuamos, usamos sutiãs atrás de sutiãs, e umas aprendem, melhor ou pior, a lidar  com o desconforto dos arames e dos enchimentos. As dificuldades são eternas, entre encontrar o tamanho absolutamente perfeito para a felicidade das nossas mamas, a decidir qual o formato desejado para o nosso peito. Dificuldades que existem desde a clássica obsessão pelo espartilho – a problematização do peito feminino não é de agora.

Há quem se liberte da ditadura do sutiã porque até a ciência já provou ser mais saudável assim fazê-lo. Libertem a mama e o mamilo! Mas haverão consequências. Basta nos aventurarmos a ir para a rua com as meninas a baloiçarem livremente em contacto directo com a nossa t-shirt que vamos ser alvo de olhares – e quiçá de comentários. Nem parece que foi há muito tempo (nos anos 60 e 70) que parecia muito mais normal deixar as mamas livres de armação. Desde então que o pudor se intensificou, em vez de ter diminuído. E sejamos claros, não é a mama em si que incomoda – porque somos bombardeados por imagens de decotes generosíssimos – mas a existência do mamilo. A protuberância, o alto, o espevitado, o relevo, qualquer mera lembrança de que os mamilos existem no corpo da mulher e de repente tudo se torna muito mais provocatório.

Esta teimosia em perceber os mamilos femininos como uma arma de provocação sexual infalível dificulta a conversa acerca de outros tópicos bastante normais, como por exemplo, falar do cancro da mama ou lidar com o aleitamento. Chegou ao ponto de anúncios de sensibilização pela prevenção do cancro da mama terem que utilizar mamas masculinas para mostrar como é que a apalpação é feita. Como as mamas femininas (detentoras de mamilos) são censuráveis pelos meios de comunicação, tiveram que pegar num homem de algum peso, com alguma gordura mamária, para ensinar como é que se pode prevenir o cancro da mama (que apesar de haver alguma incidência nos homens, tem maior incidência nas mulheres).

O aleitamento, então, nem se fala. Há depoimentos de mulheres a amamentar os seus filhos em público e que foram criticadas por terem-no feito, a ponto de serem expulsas fora de um avião! Irónico, não é? O mundo força e reforça que o leite materno é o melhor suplemento para o crescimento de uma criança saudável e depois? Tem se ser feito à porta fechada ou devidamente tapadas. Ai delas se tiverem um mamilo à solta em público!

Os mamilos são assim, muito úteis e grandes proporcionadores de prazer, mas censurados até ao tutano quando… os homens também têm um par e ninguém os chateia por terem-nos ou não à mostra. Até lá sofremos os dilemas de querer andar confortavelmente livres sem sutiã, ou mostrar um ou outro mamilo a nosso bel-prazer.

23 Mai 2017

Alguns factos (no feminino)

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stes não são os segredos do sexo no feminino, esses deixo ao critério de cada um descobri-los a seu tempo. E quando eu digo descobrir, refiro-me à contínua exploração que, na individualidade e em conjunto, deve ser exercitada e promovida. Há, contudo, informações sobre bem-estar sexual que merecem alguma atenção. Aqui vai uma pequena nomeação de factos no feminino, para a mulher emancipada e para o homem que a acompanha.

Menstruação

Dizem os estudos, e até a cultura popular, que os homens não têm grande interesse em envolver-se no acto sexual quando o ‘Benfica joga em casa’. Não há grande mistério nisso. O que os estudos também mostram é que as mulheres estão muito mais propensas a atingir o orgasmo em dias mais sangrentos. Para além de que, para curar dores menstruais incomodativas, não há eficácia que iguale os orgasmos, uma forma não-medicamentosa para ajudar ao bem-estar. Ademais, e tentando não ser muito gráfica, este é um período especialmente lubrificado. Mas, é claro, percebe-se a aversão. O cenário pós-sexo em menstruação mais facilmente se assemelhará a um cenário de chacina. Recomenda-se o evitamento de lençóis brancos e talvez vislumbrar a possibilidade de gozar o tempo em conjunto na banheira, com superfícies muito mais fáceis de serem limpas. Compreendo que pondo assim as coisas, o sentimento gore e sangrento continue a ser impossibilitador. Contudo, a menstruação é normalíssima. Vivam com isso, os dois.

Vibradores

Os vibradores foram criados como terapêutica para a histeria. Para quem não sabe, a histeria caracterizava-se como uma popular condição psicológica exclusivamente feminina durante o séc. XIX, de sintomas somáticos fortes. A razão seria uma má resolução sexual e por isso teria que ser compensada com artefactos. Actualmente, vibrador é o brinquedo sexual por excelência e o bestseller de qualquer sex shop pelo mundo. Os inquéritos sugerem que as mulheres começam a considerá-lo como um objecto doméstico essencial, para as solteiras e as casadas. O aspecto ‘sketchy’ das sex shops é que ainda impedem uma frequência mais normalizada. Espera-se que sempre que mulheres (ou casais) comecem a exigir um serviço de vibradores especializado e de qualidade, o estigma associado a usuários de lojas de sexo decairá. Quanto mais comum, mais normal se tornará. Porque as possibilidades para um vibrador na vida amorosa do casal são quantas as que queremos ter. Duas palavras em interrogação: Penetração dupla?

A careca lá em baixo

Os pêlos púbicos são agora, mais do que nunca, alvo de grande desdém. O que começou por uma prática feminina espalhou-se para uma prática masculina também. Em certos círculos sociais, quanto menos peludos na zona genital, melhor. A preferência começa a ser cada vez melhor disseminada graças à pornografia e à disponibilidade de casas de depilação que prometem um serviço pêlos free. Há quem se sinta mais limpa(o) ou higiénica(o) com os seus genitais descobertos do arbusto que a puberdade fez crescer. Mas qualquer que seja a preferência é sempre bom insistir que os incomodativos pêlos existem como uma barreira protectora de infecções e inflamações, e que por isso a sua ausência expõe alguma vulnerabilidade. Agora que os cavalheiros ficam contentes com uma careca quando o trabalho é oral, isso, sem dúvida. Diz-se muito mais confortável.

Clitóris

Essa discreta pontinha alimentada por sensivelmente 8000 nervos é causadora de muito prazer e não pára de crescer. Sim, quando se chega aos 80 anos o nosso tão especial orgão sexual estará 2.5 vezes maior do que na purbedade. Diferenças pouco visíveis mas que poderão justificar o sexo fantástico das senhoras octogenárias. Não esquecer que é o único órgão no corpo da mulher dedicado exclusivamente ao prazer e ao orgasmo (o ponto G é um candidato ao mito urbano) e por isso há que tratá-lo bem, e o parceiro que se encarregue dos cuidados também.
Para a semana há mais.

15 Mar 2016

Sérgio Godinho – “Espalhem a Notícia”

“Espalhem a Notícia”

Espalhem a notícia
do mistério da delícia
desse ventre
Espalhem a notícia do que é quente
e se parece
com o que é firme e com o que é vago
esse ventre que eu afago
que eu bebia de um só trago
se pudesse

Divulguem o encanto
o ventre de que canto
que hoje toco
a pele onde à tardinha desemboco
tão cansado
esse ventre vagabundo
que foi rente e foi fecundo
que eu bebia até ao fundo
saciado

Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher bonita

A terra tremeu ontem
não mais do que anteontem
pressenti-o
O ventre de que falo como um rio
transbordou
e o tremor que anunciava
era fogo e era lava
era a terra que abalava
no que sou

Depois de entre os escombros
ergueram-se dois ombros
num murmúrio
e o sol, como é costume, foi um augúrio
de bonança
sãos e salvos, felizmente
e como o riso vem ao ventre
assim veio de repente
uma criança

Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher bonita

Falei-vos desse ventre
quem quiser que acrescente
da sua lavra
que a bom entendedor meia palavra
basta, é só
adivinhar o que há mais
os segredos dos locais
que no fundo são iguais
em todos nós

Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher bonita

Sérgio Godinho

18 Jul 2015

Extâse

Heddy
Hedy Lamarr tinha 18 anos quando protagonizou o filme Ecstasy em 1933

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]edy Lamarr protagoniza em 1933 o primeiro orgasmo feminino no grande ecrã, e, numa ousadia não-pornográfica, cenas de nudez a correr atrás de um cavalo. Trata-se do filme Ecstasy, filme mudo de uma natureza progressiva surpreendente que leva a jovem actriz de 18 anos a representar a complicada realidade da necessidade sexual e romântica, quando se vê casada com um senhor muito simpático, mas impotente. Pessoalmente, na expectativa pela grandiosidade do momento dito orgásmico, tive que timidamente rebobinar a fita para confirmar se esse era mesmo de um orgasmo que se tratava. Orgasmo discreto. Li algures pelo mundo cibernético que nossa querida Hedy Kiesler (Lamarr, só em Hollywood, para fugir do estigma do seu filme europeu de natureza erótica) sofreu de umas picadas no rabinho provocadas por alfinetes de dama, para atingir a expressão de clímax satisfatória ao realizador. O que nos diz sobre o orgasmo feminino? Nada que não saibamos: uma possível expressão de sofrimento (de expressão somente) parte do imaginário erótico e romântico desde há muito tempo. Apesar do seu já mediatismo em 1933, continua a ser tratado com as suas suposições cliché, com alguma complicação e desconhecimento. Para os homens mais altruístas tratado como uma meta cumulativa, a prova de que o seu envolvimento na actividade sexual satisfaz, para as mulheres, por vezes tratado da mesma forma. Ora isto obriga-me a fazer uma afirmação um tanto ou quanto óbvia: sexo não é orgasmo. É-me incrivelmente difícil não remeter a outras realidades cinematográficas neste tema tão pertinente, e.g., orgasmatron. E ainda mais difícil será não falar do orgasmo masculino, mas desse gostaria de dedicar toda uma outra secção, e ao Woody Allen também.

Lá está, se pensarmos no sexo que a evolução nos ensina, talvez nos vejamos presos à ideia de que o orgasmo masculino é o culminar: esperma, bebés, etc., etc. e por isso deixa-nos a questão muito pertinente: para que serve o orgasmo feminino? Teoricamente se desenvolveram algumas ideias sobre o assunto, como a teoria da fidelidade, i.e., quando mais satisfeita com o tal parceiro orgásmico, menor a probabilidade de desenvolver relacionamentos extra-conjugais… Entre outras introspecções teóricas das quais o meu feminismo se queixou um pouco.

Mais complicado nas entranhas do mistério feminino ainda é a diferenciação de Freud entre orgasmo vaginal e clitoriano, ainda desenvolvendo umas ideias das quais me dou autorização de julgar loucas, a mais surpreendente sendo que a inexistência de orgasmos vaginais poderá trazer consequências psíquicas graves, como a tão famosa histeria. Mais controverso e contemporâneo ainda, não é só a ideia do orgasmo vaginal mas a da existência de um ponto G e ademais uma ejaculação vaginal aquando encontrado. É claro que toda esta informação anda à deriva entre o pensamento socio-psicológico científico do século XIX, revistas cor-de-rosa ou cor-de-azul-bebé e da comunidade científica actual. Eu que gosto de pregar o sexo de um entendimento social, considero o orgasmo feminino o resultado directo do constante opinanço entre todos os actores de nível mais ou menos especializado.

[quote_box_right]Se pensarmos no sexo que a evolução nos ensina, talvez nos vejamos presos à ideia de que o orgasmo masculino é o culminar: esperma, bebés, etc., etc. e por isso deixa-nos a questão muito pertinente: para que serve o orgasmo feminino?[/quote_box_right]

Parece que é consensual o entendimento do orgasmo clitoriano, o vaginal, nem por isso. Se há quem defenda que não existe, outros usam a expressão com alguma facilidade e legitimidade e com pouco conhecimento sobre o assunto. Na comunidade científica bem que podia existir uma preocupação especial em defini-lo. São muitos os estudos que se baseiam em auto-relatos onde, por isso, a única evidência para a existência do orgasmo de tipo vaginal é a dita participante dizer que os tem. Certo. Sexo com penetração com alguma sorte nos traz um orgasmo, se a causa é de facto uma zona especial no interior das paredes da vagina, o mais provável é que não seja: é o clitóris a fazer o seu trabalho de novo, resultado de uns bons movimentos de anca e as coreografias que a actividade de fazer o amor incita. Há evidência em algumas mulheres (poucas) acerca da existência de uma possível estrutura nervosa dentro das paredes da vagina que de alguma forma se conecta com… o clitóris. Por isso querida Humanidade: no orgasmo feminino a chave está no clitóris, no clitóris e no clitóris.

O interruptor de prazer infindável também conhecido como ponto G, esse já vi referido como o UFO ginecológico. Foram muitas as pessoas que perderam tempo em autópsias para perceber se há uma condição fisiológica para a crença dos tempos modernos. Não há. E agora sinto-me numa daquelas posições estranhas, a destruir fantasias, o irmão mais velho que diz que o Pai Natal não existe. Na verdade nem sei até que ponto as pessoas já sabem disto ou não, mas que a internet está cheia da ideia errada, está. De qualquer forma, não quero de maneira nenhuma menosprezar todo o acto sexual a uma massagem no clitóris, nada disso. Há que atentar a um holismo do sexo, desde preliminares até aos ocasionais mimos pós-coito. O segredo do orgasmo feminino não está tanto na posição geográfica mas de toda a retroalimentação da hormona oxitocina que se exalta das mais variadas maneiras e feitios, de acordo com os desejos de cada um. Existem estudos sobre diferentes tipos de orgasmo que baseiam a sua taxonomia na sensação e intensidade e que variam de acordo com coisas tão simples como ouvir a voz do seu amado, umas fantasias criativas ou outra qualquer taradice, enfim, you name it. Para o lado que o apetite vos virar.

25 Jun 2015

Fontane Effi Briest, Rainer Werner Fassbinder, 1974

[dropcap type=”circle”]C[/dropcap]ausa alguma perplexidade que nesta página apenas existam quatro crónicas sobre Fassbinder. Este é um daqueles realizadores, como Imamura, Pasolini, Satyajiy Ray ou Bergman, cuja carreira é um paradigma, uma referência constante, pelas suas temáticas, pelo seu lugar na história e pela sua estética.

Não é possível passar-se sem o seu cinema pois este é um exercício imprescindível. Fassbinder fez filmes e encenou peças de teatro como quem respira, com uma urgência difícil de encontrar noutros autores, e a sua morte violenta só vem coroar, como se se tratasse de uma encenação, esta imensa e brutal performance artística que foi toda a sua vida.*

A propósito de Katerina Izmailova, de Mikhail Shapiro, que mostra uma história de aborrecimento, adultério e morte, lembrei-me de um dos seus filmes mais excêntricos, Fontane Effi Briest. É-o a vários títulos. Por ser a preto e branco, por ser um filme de época, por ter tido um período de rodagem anormalmente longo para o hábito de Fassbinder, por ter sido um enorme sucesso comercial já em 1974, porque tem uma voz inolvidável e uma linguagem própria.

Muito do cinema de Fassbinder é desconjuntado e brutal, resultado da sua enorme vontade de mostrar e de contar, vítima das suas grandes contradições pessoais e da avassaladora paixão que colocava em tudo o que fazia, nos seus filmes ou nas peças de teatro em cuja montagem (cerca de 30) se viu envolvido, e/ou, provavelmente – por muito que me custe incluir pormenores biográficos nestas considerações – como espelho das condições caóticas em que viveu durante os primeiros anos da sua vida.

Effi Briest tem, no entanto, um aspecto muito trabalhado, sem improvisos. Cada plano parece pensado com minúcia e não há um objecto (e há muitos objectos, esculturas provincianas) fora de lugar e gosto de pensar que Fassbinder terá dispendido um grande esforço para manter esta limpeza de aspecto e esta falta de naturalismo, uma falta que, mais tarde, de um modo muito diferente, encontraremos nos seus últimos filmes (incluindo Berlin Alexanderplatz).

O que teria sido a sua carreira após o estilizadíssimo Querelle?

Poucos têm o aspecto ritualístico e estático que Effi Briest, um que a existência de intertítulos que anunciam as suas várias partes mantém. Este filme sobre o livro de Fontane parece ir contra a ideia de que toda a sua obra é espontânea e física, e essa será uma das suas atracções.

É uma atracção que nasce da sua fidelidade ao livro de Theodor Fontane. Este é mais um livro em filme que um filme feito a partir de um livro e traz consigo uma curiosidade. O seu título vem acompanhado de um longo subtítulo. Em tradução minha, (Fontane Effi Briest) ou Muitos, que têm uma noção das suas possibilidades e necessidades e, no entanto, através dos seus comportamentos aceitam a ordem estabelecida e acabam assim por a fortalecer e defender.

A maneira como o realizador nos mostra a língua contribui muito para criar esta impressão dramática. Por vezes parece que as falas não vêm directamente das personagens mas que o seu corpo é um modelo para uma voz que vem de outro lugar, mais profundo e mais misterioso. Isto é porque as vozes de alguns dos actores foram dobradas e colocadas em cima de figuras diferentes. A voz de Irma Hermann, por exemplo, é a de Margit Carstensen, e a figura de Hark Bohm tem voz de Kurt Raab. Estas são, afinal, as vozes directas de Fontane.

Manoel de Oliveira fez coisas parecidas, com graus diferentes de sucesso, mas em 1972-74 ia ainda em Benilde ou a Virgem Mãe. Não escondo que o que mais me atrai em Effi Briest, como em muito cinema alemão, especialmente o de Werner Schroeter, pode ser a sua voz.

Este desfasamento (que é muito normal em Fassbinder a um outro nível, ao nível do desfasamento entre a música e a acção**) tem uma sedutora companhia no desfasamento – na desconstrução – que se faz através do uso de um outro costume seu, o da inclusão de jogos de espelhos e planos em que as personagens estão meio escondidas por portas ou outros lugares de passagem que as cortam ou apenas semi-revelam. Até na depurada cena do duelo entre Innstetten e Crampas se interpõe uma rede de pesca que a torna ainda mais inacessível. Em Effi Briest existe uma inacessibilidade às personagens que é contrária à violência expositiva de muitas de muitos dos seus filmes.

(Infelizmente, há muitos anos que não consigo ver um favorito filme feito para televisão em 1973, Nora Helmer, baseado em A Doll’s House, de Ibsen, em que, se me não falha a memória, se faz uso intenso destes artifícios especulares).

Outra atracção ainda de Effi Briest consistirá na tentação de pensar (mas a sua impossibilidade é dolorosa) que Fassbinder se afastara por um momento (lembremos que Nora Helmer, um filme de época feito para televisão é de 1974) da exposição das profundas feridas da sociedade alemã do pós-guerra que percorrem grande parte da sua obra.

Os seus filmes, sendo extremamente humanos e muito intensos emocionalmente, obrigam o espectador a pensar na técnica, na montagem, nas imensas escolhas que é preciso fazer a nível da montagem (ou não), da iluminação ou da direcção de actores, obrigam a pensar na construção e no tempo. No fundo, obrigam a pensar no cinema.

Fontane Effi Briest é um dos seus filmes de mulheres, como Die bitteren Tränen der Petra von Kant, Lola, Die Ehe der Maria Braun, Die Sehnsucht der Veronica Voss, Martha, Nora Helmer, Mutter Küsters fahrt zum Himmel, Lili Marleen, para citar apenas aqueles em que no título figura um nome de mulher. Outros há em que o título não trai esta importância. Só um perfeito bruto poderá continuar a pensar que Fassbinder tratou mal, nos seus filmes, as imensas mulheres com que trabalhou quando é claríssimo que elas são neles muito mais importantes e interessantes que os homens.

No livro de Christian Braad Thomsen, Fassbinder, the life and work of a provocative genius, este agrupa, num capítulo chamado “Filmes de Mulheres”, Martha, o incómodo Angst Essen seele auf/O medo come a alma e Fontane Effi Briest.

Neste demonstra-se o poder da imagem do amor e a necessidade de rejeitar as convenções sociais. No entanto, o que permanece, no fim, é um lodo de que é difícil sair-se, a resignação doentia e fraca que o longo título anuncia e cuja ideia a mãe (que é interpretada pela mãe de Fassbinder) ajuda a perpetuar mais do que qualquer outra personagem: a de que vida em sociedade obriga ao cumprimento de reparações que pouco têm que ver como amor.

É interessante que as cenas dedicadas ao adultério, ou ao encantamento da bela Effi, são quase inexistentes, ao contrário das considerações do Barão Geert von Innstetten sobre as consequências da sua revelação – o formidável diálogo com Wüllersdorf em que se mostra, paralelamente, uma acção cujo desenlace funesto se torna mais evidente de minuto a minuto.

Nele se inscreve outro movimento circular, alucinante e a que não se pode fugir, o da necessidade de denunciar os podres de uma sociedade onde, no entanto, se busca um constante reconhecimento – uma das doenças do seu autor total Fontane/Fassbinder.

Não se deve esquecer que Fassbinder foi um realizador de mulheres mas também um realizador (e encenador) de actrizes de muitos tipos: Schygulla, Sukowa, Zech (que constam de uma crónica anterior, apenas a elas dedicada), Irm Hermann, Ingrid Caven, Margit Carstensen ou a sua mãe, Liselotte Eder.

Nelas ele encontra um misto difícil de reproduzir entre a naturalidade (por vezes distanciamento) e um glamour do cinema que reproduz o modo como a sua actividade profissional e a sua vida privada estavam intimamente ligadas. Como ao mesmo tempo as suas actrizes são banais e estrelas de cinema é um acontecimento que se dá a cada momento.

*São 33 longas metragens para cinema e televisão, 4 séries de televisão e 4 vídeos longas metragens num espaço de 13 anos. Junte-se-lhe o teatro, 30 peças para palco e 4 para a rádio. Foi actor em muitos dos seus filmes e em 13 filmes de outros autores. Também produziu filmes próprios e de outros e montou vários dos seus. Foi até operador de câmara de um dos seus filmes (cf. o livro de Braad Thomsen pág. 8).

Um dos filmes, Ich will doch mur, dass Ihr mich liebt/I Only Want You to Love Me, fala sobre a sua obsessão com o trabalho.

** cf. especialmente o capítulo 2 (Fassbinder e a música de Peer Raben) mas também 5 e 6 de 2004, Flinn, Caryl, The New German Cinema. Music, History, and the Matter of Style.

23 Jun 2015