Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasSobre o baptismo dos monstros Do livro Embriologia Sagrada, escrito por um frade siciliano no século XVIII, abençoado pelo Papa Bento XIV e publicado em Português no ano de 1791. Neste passo do volume, em que o religioso pede auxílio a um especialista francês, discute-se a geração, ocorrência e o baptismo de monstros (Descoberto em Passarela, Gouveia, numa arca improvável): “(…) Huma mulher póde ter commercio, primeiro com huma besta, e algum tempo depois com hum homem, ou com homem, e com besta, ou com huma besta sómente. No primeiro caso ha motivo para duvidar se a mulher concebeo da besta, ou se o féto, que sahe della, he huma produção do homem só, porém desfigurada, e feita monstruosa pela impressão, que a besta fez na imaginação da mulher no tempo da união, que precedeo á do homem: por outra parte quem póde afirmar que assim como huma besta pode fazer que huma concepção humana se faça monstruosa, também o homem não póde indireitar, e humanizar, digamo-lo assim, huma concepção bestial. No segundo caso, se se suppõe que a mulher tem concebido do homem, toda a dificuldade está tirada (…), e sempre ha razão para duvidar e suspender o juizo; porém se huma mulher só tem tido commercio com uma besta, augmenta-se a dificuldade, e o embaraço: se he certo, como o crem muitos Fysicos, que o féto está formado todo, e organizado perfeitamente no ovo, e que se vivifica no mesmo instante da concepção, quem se atreverá a dizer que Deos suspende o seu concurso, e que não lhe infunde huma alma racional, seja quem for o macho que o põe em movimento? Pois não se póde determinar se esta informação se faz logo que o féto se vivificou, isto é, no mesmo instante da concepção; pois não ha coisa que pareça deva impedir que entre nelle a alma racional; pois o féto, segundo esta hypothesi, não he todavia monstro; e he necessario, ao parecer, algum tempo, ou ao menos mais de hum instante, para que hum féto humano bem formado, e bem organizado se transforme, e possa converter-se em monstro. Não sei que diga dos monstros, que nascem de bestas femeas com figura humana: confesso que tremo, quando revolvo esta materia: com tudo não sendo artigos de fé os systemas, que ideião os Medicos, e Fysicos, e os Anatomicos, parece que quando ha dous com pouca differença igualmente verisimeis, he permitido, havendo a mesma difficuldade em hum, que no outro, e sendo a cousa de tanta importância como esta, differir ao dictame de Medicos, e Fysicos muito hábeis, que julgam que o féto está todo formado, e perfeitamente organizado na semente do homem. Mr. Levenhouc, Hollandez, faz ver por meio de seus globos de vidro, que na semente dos badejos machos estão formados inteiramente os badejos filhos, e que se movem algum tanto. Nesse sistema, se se supõe que o espirito seminal da femea põe em movimento o féto, e o vivifica ao tempo da concepção, e que a alma racional se infunde no mesmo instante, he necessario grande valor para decidir que o féto humano, formado todo, e perfeitamente organizado, só por estar no corpo de huma besta femea, não está informado de huma alma racional. De tudo o que fica dito concluo, que se devia desejar que se visse baptizar geralmente tudo o que nasce de mulher, no caso de ter vida, e ainda os monstros, que nascem de bestas femeas, se tem figura humana, quando se sabe que algum homem tem podido ter parte na producção; pois é impossivel decidir que semelhantes monstros não são animais racionaes. Trata-se da salvação, ou da condemnação eterna das almas; e tendo-se feito o sacramento para as almas, e não as almas para o sacramento, a razão, e a piedade pedem que se aventure sempre o sacramento antes que a alma.” Paris, a 25 de Maio de 1693. Fillipe Ignacio Save, Doutor em Medicina da Faculdade de Paris.”
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasQueridos monstros Santa Bárbara, Lisboa, quarta, 14 Abril [dropcap]E[/dropcap]stou convertido, embora no degrau de humilde iniciado, a esta enigmática secção das grandes artes divinatórias, a da interpretação de lombadas. Através da qual, e por via da disciplina e estudo, alcançamos com invulgar grau de certeza essências como o lugar (da estante) em que nos encontramos, a melhor orientação dos passos (perdidos) e a aguda interpretação do passado, para não invocar a esfera celeste ou as circunvoluções da massa cinzenta. Sacudida a poeira do lombo, eis-me perante o desafio de «Idées Noires», de Franquin (ed. Fluide Glacial ou a edição portuguesa Witloff, sendo que a leitura ganha em ser acompanhada pela edição da «Fluide Glacial Série-Or» dedicada a este «olhar humanista sobre a loucura do mundo»). O autor que, para dizer o mínimo, reinventou Spirou e criou figuras da mitologia contemporânea como Gaston Lagaffe movia-se no universo do bom humor, pela produção artística e inclinação genérica, cultivando fama de simpatia e generosidade. Quando se percebeu que convivia com depressão, mesmo antes de agravada por enfarte em meados da década de 1970, isso passou a lente de aumentar explicações para tudo e mais um pêlo. Há doenças assim, que ocupam com galhardia e ordenamento a posição da identidade. Portanto, também para esta série discreta, que saltou das páginas da revista «Spirou», onde foi sempre um quisto, para a «Fluide Glacial», mais dada às correntes da acidez. São histórias curtas, críticas ferozes do militarismo, do consumismo, enfim, das cegueiras capitalista e religiosa. E celebrando assertivamente a vida animal, a ecologia, os monstros, que desenhava ininterruptamente com grande alegria e delícia, além do seu tema principal: o indivíduo e um radical, para dizer o mínimo, absurdo. Humor negro, portanto. Duplamente negro. Se na bd habitual, a cor, nas mais óbvias e luminosas das suas combinações, era a cor que reinava, aqui e sobre fundo branco, tornado o quotidiano branco, subjugado por um manto de neve-página. Quase sempre, que no espaço sideral tudo se invertia. E há (pouca) vida em outros planetas. As figuras nascem negras e eis um primeiro sinal do assombro. Esta massa que absorve a totalidade possui infinidade de detalhes, uma expressividade que desafia cada tentáculo da nossa atenção. Em versão original, as palavras «idées noires» são seres estruturalmente feitos de olhos e pêlos, cada minúsculo e fino traço transfigurado em pelugem vibrátil e metamorfoseante. O corpo de uma ideia. As histórias que me interpelam agora em plena tempestade de areia, que sempre me interrogaram, são as existencialmente peludas. Descrição, com perda: grande plano de um rosto animado e sorridente. Quem me ama, que me siga. Abre o plano de um deserto a desembocar em céu de preto retinto. Planando, um abutre. Descrição: uma multidão organizada em filas sucessivas desloca-se da esquerda para a direita, encurvada pelo pensado dos pensamentos, continuarei sempre um número entre outros, sem saber como alguns conseguem chegar mais e mais rápido que outros. De súbito, um executivo – distingue-se bem no negro – passa velozmente e assentando sapato de verniz sobre a cabeça da massa abaixo, sim, debaixo. Algures na página reproduz-se outro. Descrição: grupo em festança saltitando de plataforma em plataforma, de ilha em ilha, vai crescendo o intervalo entre elas e a dificuldade até ao agudo e espinhoso final. Penso no esquecido Reinaldo Ferreira: «Eu, Rosie, eu se falasse eu dir-te-ia/ Que partout, everywhere, em toda a parte,/ A vida égale, idêntica, the same,/ É sempre um esforço inútil,/ Um voo cego a nada./ Mas dancemos; dancemos/ Já que temos/ A valsa começada/ E o Nada/ Deve acabar-se também,/ Como todas as coisas.» Poderia encher o interminável dia saboreando a descrição, modo de redesenhar acariciando, maneira de roubar a pretexto da partilha (se houvesse leitores, claro). Descrição: alguns têm título, por exemplo este que pede para não se confundir a inevitável marcha do fado com destino animado. Uma figura fina sobre o branco diz-se curiosa para ver o que eles inventaram. De súbito, a sombra, e de cima desce lentamente um negro, mas dinâmico, riscado, não pleno. A figura procura correr e a cortina desce, fatal como o destino. À direita do quadrado seguinte aparece um branco prometedor, a figura corre e parece conseguir, mas o chão torna-se pastoso, um betume afinal cola, mas a humana figura quase indistinta do chão esforça-se ao máximo. No quase, o negro esmaga-o, deixando apenas cabeça e grito. Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 15 Abril Conheço mal o trabalho de Luz (Rénald Luzier), desenhador de humor e redactor do «Charlie Hebdo», mas a edição referida ontem da «Fluide» apresentou-mo e a sua homenagem a Franquin em estilo duplo, traço simples em diálogo com aguarela livre, cativou-me. «Catharsis» (ed. Futuropolis) reúne as histórias curtas (de Janeiro a Junho de 2015) com que o artista foi enfrentando os seus monstros. O dia do ataque terrorista ao jornal era também o do aniversário de Luz, que por isso e pormenor que não conto embora seja desenhado, chegou atrasado à reunião de redacção, mas muito a tempo de apanhar em cheio com os estilhaços do massacre. Durante longo período foi incapaz de desenhar e aqui entramos no dia-a-dia do seu combate, peito aberto e exposto a cada fase do luto, até que o traço, expressão da vontade, regressa: dois olhos enormes sustentados por corpo mínimo hirto, mãos junto às coxas, tudo rabiscado, esboçado, a fingir hesitação, mas longe da exactidão do contorno. Além do resto, explosivo e sensível, o desenho faz-se aqui personagem, suscitando reflexões em torno do prazer e da dor, de como certas linguagens se fazem líquidas, etéreas e poderosas, na expressão dos silêncios e vazios que são a nossa matéria primeira. Descrição: em «Interlude», um já reconhecível Luz parece agastado e começa um bailado que o desintegra de mil e expressivos modos, gargântua de onde saem outras bocas menores em esgar, sempre em traço puro e solto, como se o pincel não se soltasse nunca do papel até que o grito se cospe em grosso A, continuação do ininterruptamente alinhamento da primeira letra do alfabeto, som da dor e do espanto. A figurinha sai na direita baixa dizendo: faz-se o que se pode. Digo no óbvio: a sucessão e o alinhamento dos pequenos contos resulta lancinante, comovente, humana. Tão humana, que se faz bem humorada. Um final feliz por envolver desejo, talvez sexo. Santa Bárbara, Lisboa, sexta, 16 Abril Dizem que o povo está todo a ler no seu recolhimento obrigatório. Para não me cansar, tratei de entrar floresta dentro, até por a ver avançar, dos lados do Campo de Santana, da face a norte do Areeiro, nos tufos de jardim que alcanço. Esta versão de «Hansel & Gretel» (ed. Bloomsbury) nasce dos cenários para uma ópera, encomendados a Mattotti, para os quais escreveu depois Neil Gaiman esta versão, que não se afasta do clássico, sem esconder a violência de pais que se livram dos filhos em tempo de aperto. Interessa-me nesta «darkly brilliant fairy tale» o negro negrume com que ardem as ilustrações do italiano. Volumes inquietos de negro a bailar na página, permitindo apenas ligeiros afloramentos de luz. Escusado será dizer: não vejo senão isso na coreografia dos tempos.