Andreia Sofia Silva EntrevistaJoão Marcelo Martins, académico: “Os mitos ainda estão vivos na China” Em “A Gramática Universal do Mito: Análise Comparativa e Contrastiva dos Mitos Chineses de Origem”, João Marcelo Martins analisou os cinco principais mitos chineses e compara-os com a mitologia ocidental, nomeadamente quanto à origem do universo e dos seres humanos. Embora as diferenças culturais sejam marcantes, o académico da Universidade de Minho encontrou semelhanças na forma de actuação dos deuses A cultura clássica ocidental distingue-se da cultura clássica chinesa. Em que consiste o mito chinês e até que ponto é diferente da mitologia clássica grega e romana? Analisando as duas mitologias, e quando falo da mitologia ocidental refiro-me mais à greco-romana, que é talvez a que está mais próxima de nós, a primeira grande diferença que conseguimos identificar é que enquanto na cultura ocidental a assunção original do mito é a história e a narrativa contadas para ajudar os seres humanos a melhorarem o seu lugar no mundo e a entenderem como as coisas funcionam, por exemplos os fenómenos meteorológicos, e com o desenvolvimento da ciência o mito está morto, na tradição chinesa, o mito, embora tenha as mesmas funções, tem sofrido recentemente uma readaptação em termos da narrativa, não na sua ideia original, e que serve para partilhar a cultura chinesa e ajudar os mais novos a entender como surgiu o país, os seres humanos e o universo. Atenção que não podemos apenas falar, na cultura ocidental, dos mitos greco-romanos, embora estes sejam os mais próximos da nossa realidade. A diferença está aí, no Ocidente encaram-se os mitos como histórias irreais, como coisas que podem ser contadas da perspectiva do entretenimento, e a China reconhece que os mitos estão ainda vivos e podem servir para mais do que entreter, ajudando ainda as pessoas a viver uma realidade diferente e especial face à que vivem. A mitologia chinesa é usada pelo poder político para criar novas maneiras de ver o Governo e a própria sociedade? Parcialmente. Quando foi criada a República Popular da China (RPC), Mao Tsé-tung disse algo como: “A criação da RPC é um feito tão grande como a criação por Pangu”, usando um termo que, em chinês, vem precisamente do mito da criação do mundo, quando o gigante Pangu fez a separação entre o céu e a terra e, com a sua própria morte, conseguiu criar elementos do mundo como as árvores, os rios, as estrelas, o vento, a água. Mas o próprio Mao Tsé-tung tinha uma relação relativamente ambígua com o mito. Por um lado, era a favor, por ser algo muito tradicional, que correspondia à verdadeira China. Por outro lado, o mito inclina-se para a veneração de deuses, o que seria algo contra a ideologia do próprio partido e o que é a actual RPC. Neste momento, o mito até poder ser usado, de algum modo, na parte política, mas está a ser mais utilizado na literatura, filosofia, poesia. O mito está a ser usado mais como forma de arte do que propriamente como forma de apoio ao regime político. Quais os mitos analisados nesta tese e s principais conclusões que surgem deste exercício comparativo? Dediquei-me a analisar cinco grandes mitos. Comecei pelo mito da criação do mundo, de Pangu, passando pela criação da humanidade, de Nüwa; do dilúvio, com a história de Yu, o Grande; a invenção da agricultura com Shennong e, por fim, o dilúvio solar, ou seja, a destruição do mundo pelo fogo, de Houyi, o arqueiro. Tive dois grandes objectivos: por um lado, através da consulta de diversas fontes, fossem elas em chinês moderno ou clássico, ou inglês, reunir um conjunto muito concreto e conciso do que seria a principal versão de cada um destes mitos. A China é composta por 56 etnias diferentes e, analisando os documentos, não digo que todas essas etnias têm histórias diferentes, mas há de facto uma multiplicidade de narrativas em que, embora alguns detalhes sejam alterados, a linha de pensamento encontra-se presente em todas. Quis, assim, identificar uma linha de pensamento mais comum e, a partir daí, em cada um dos mitos, fazer uma análise comparativa com o que conhecemos no Ocidente. Pode dar exemplos concretos? Por exemplo, no que diz respeito ao mito da criação do mundo, é dito na história que Pangu faz a separação entre o céu e a terra, fica durante muito tempo como uma espécie de pilar para garantir que o céu está lá no alto e que a terra está cá em baixo e que não há nenhuma tentativa por parte destas duas entidades de se reunirem novamente. Depois deste grande período, que na narrativa chinesa é de 18 mil anos, mas que na realidade não foi assim, sendo essa uma expressão que se usa como referência a um longo período de tempo, Pangu acaba por morrer. Como a sua missão estava concluída, decide dedicar o seu corpo à criação das estrelas, do sol, da lua, dos rios e dos mares. Se pegarmos nesta história, conseguimos ver que há aqui um sacrifício por parte de Pangu relativamente à sua própria criação. Analisando a tradição ocidental, temos, por exemplo, a narrativa de Jesus Cristo que também se sacrifica para que os seres humanos sejam salvos dos seus pecados. Temos aqui uma ponte que nos permite ver que há, de facto, um sacrifício de ambas as partes e que estes são a favor de algo maior, da manutenção daquilo que conhecemos como o Cosmos, a organização do universo. Outro exemplo é o caso de Nüwa, quando cria os seres humanos, ela fá-lo através da terra amarela, daí se dizer que chineses são um povo amarelo, literalmente “povo de cor amarela”. Há inclusivamente o termo civilização amarela, ou do Rio Amarelo, para designar a civilização chinesa. Exactamente. Essa terra usada por Nüwa vem das margens do Rio Amarelo para criar os seres humanos, elemento também presente na tradição cristã, do Génesis, relativamente à criação dos seres humanos por Deus [a formação dos homens com o pó da terra e o sopro, das narinas, do fôlego da vida]. Novamente em ambas as culturas temos a utilização da terra para explicar a criação do ser humano. Claro que depois há outros detalhes que são diferentes. Por exemplo, Nüwa não distingue entre homens e mulheres, e, conforme cria, vai criando homens e mulheres, longe da história da Eva criada a partir de uma costela de Adão. Estes dois exemplos levam-nos a compreender que há, de facto, uma correlação com a qual ambos os povos se podem identificar. Foi isso que pretendi fazer, identificar em povos que são tão distantes geograficamente uma tentativa inicial de entender as origens, que, apesar de estarmos em pensamentos ou zonas diferentes, temos a mesma mentalidade ou consciência do mundo. A civilização chinesa é uma das mais antigas do mundo. A sua mitologia influenciou outras, ao longo dos anos? Através do comércio ou da deslocação de povoações acabou por se verificar essa influência? Diria que a influência chinesa, ao nível da mitologia, se verificou mais em territórios geograficamente mais próximos do que é hoje a RPC. Há mitólogos que defendem que existência de Pangu, o criador do mundo, não terá tido origem chinesa, mas sim indiana, uma vez que ao longo da antiga Rota da Seda os comerciantes chineses terão trocado impressões com outros comerciantes, de outros povos, e na sua viagem de regresso terão eventualmente passado essa mensagem. Terá sido por aí que Pangu surgiu. Trabalhos mais recentes mostram que talvez não tenha sido bem assim, mas é uma ideia ainda muito vigente na mitologia chinesa. A própria relação da China com a península da Coreia… não podemos falar com toda a certeza, mas alguma da mitologia presente na Coreia do Sul tem alguma influência na mitologia chinesa, e a própria mitologia japonesa apresenta algumas correlações com a mitologia chinesa, pois durante vários séculos as dinastias chinesas exerceram uma influência muito grande nos países à sua volta. Não diria que esta influência tenha chegado à Grécia Antiga, Egipto ou mesmo a Mesopotâmia. Poderá ter havido alguns contactos, e aqui não posso falar com tanto detalhe, mas diria que a própria mitologia grega não terá sido influenciada pela mitologia chinesa. A publicação da sua tese faz com que o leitor comum compreenda melhor este universo, que, por vezes, pode ser um pouco complexo? Sim. A publicação deste tipo de obras, não apenas nesta área, é de facto muito importante. Apesar de termos um contacto muito próprio com Macau, a China acaba por estar ainda envolta numa espécie de redoma mística. As pessoas ainda olham para a China como se fosse algo exótico, completamente diferente e há coisas, relacionadas com a cultura, filosofia, maneira de estar, que são diferentes entre os dois países. É importante que consigamos ter uma relação mais próxima com o leitor comum e, com um discurso simples e escrita clara, apresentar o que é supostamente exótico aos leitores portugueses, e tornar a China cada vez menos incompreendida. Diferenças e semelhanças Lançado em Maio, o livro “Mitos chineses de origem: envolvências filosóficas e perspetivas contrastivas” resulta da tese de doutoramento defendida pelo académico na Universidade do Minho em 2021. Este é, aliás, o mais recente lançamento fruto da parceria estabelecida entre o Centro Científico e Cultural de Macau e a Universidade de Macau. João Marcelo Martins estabeleceu um quadro geral dos principais cinco mitos chineses, nomeadamente a origem do mundo, a criação do ser humano, a destruição do mundo pelo dilúvio, a fundação da agricultura e destruição do mundo pelo sol, estabelecendo comparações com a chamada mitologia ocidental, nascida nas civilizações grega ou romana, por exemplo.