Ásia, Filmes & Amor

A cerimónia de entrega dos Óscares tem um peso demasiado grande na avaliação de bom cinema. Aceitamo-lo como um barómetro de cinema popular, dos temas e cinematografia que interessam no ethos contemporâneo. Avalia-se o cinema das massas que, parecendo que não, influencia as culturas.

Na última cerimónia assistiu-se a um momento atípico. Um filme de criação asiática, arrasou a maioria dos prémios. É um filme de ficção científica que faz uso de uma contestada ideia da física quântica: a possibilidade de existir o multiverso, vários universos paralelos. Mas mais que um exercício das muitas versões que podemos ser, o filme explora tradição, migração, família e o amor. Uma ficção científica cómica, certamente escrita durante uma viagem de ácidos, acompanhada por uma profunda reflexão sobre aquilo que é humano.

As questões culturais e de género estão irremediavelmente presentes. O que é ser um homem, mulher e menina numa família asiática, num país como os Estados Unidos da América, sofrem uma desconstrução profunda. Muito mais do que utilizar estereótipos, o filme oferece uma visão dura da dificuldade em navegar a complexidade da família entre culturas. A representação do homem asiático em Hollywood tende a ser assexualizada, ingénua e frágil. Ao invés, o filme mostra que a bondade e a empatia, essa que parece mais uma vulnerabilidade do que uma virtude, consegue fazer face aos desafios do dia a dia.

A popularidade do filme mostrou receptividade para olhar as personagens asiáticas com toda a complexidade que elas merecem, em vez dos sidekicks a que estavam frequentemente sujeitos. A personagem mais velha do filme, interpretada pelo actor James Hong com 94 anos, falou dos seus 70 anos de carreira na entrega dos (vários) prémios que o filme recebeu.

Na altura, os actores asiáticos nem eram precisos, bastava pôr um tipo branco com fita cola nos olhos para uns olhos em bico. Num universo de produção cultural dominado pela cultura caucasiana, os asiáticos tiveram com este filme uma exposição e reconhecimento nunca vista. Michelle Yeoh foi a primeira mulher asiática a ganhar um Óscar de melhor actriz. Sonhos realizados que precisaram muito mais do que a capacidade de sonhar. São precisas oportunidades para gerar conquistas como estas.

Os efeitos especiais, a produção estonteante, o amor e empatia foram o cocktail para o sucesso. Esse amor, um clichê que é atirado ao ar, não se mostrou completamente vazio ou superficial. Este filme mostrou o amor de uma forma mais ressonante ainda que num contexto absurdo de universos paralelos de dedos de salsicha. A ingenuidade e a simplicidade foram as armas secretas destes super-heróis que conseguiram conquistar o mal dentro e fora do ecrã.

Pode ser que todo o processo não tenha sido tão bonito, empático e cooperante da forma como descrevo. Mas por hoje, fica-se com a alegria do triunfo de uma produção asiática numa indústria maioritariamente branca, que usou o amor como bastão de batalha.

15 Mar 2023

Óscares | Michelle Yeoh faz história ao ganhar estatueta de melhor actriz

Pela primeira vez na história dos Óscares uma actriz asiática conquista o Óscar de Melhor Actriz principal. Michelle Yeoh, de origem malaia, ganhou o prémio pelo seu papel no filme “Tudo ao Mesmo Tempo em Todo o Lado”, um dos grandes vencedores da noite, também considerado o Melhor Filme. Brendan Fraser, protagonista de “A Baleia”, foi o Melhor Actor

 

Foram precisos muitos anos para que uma actriz asiática subisse ao palco dos Óscares e se sagrasse vencedora na categoria de Melhor Actriz principal. Michelle Yeoh fê-lo na 95.ª edição dos Óscares, na noite deste domingo [hora dos EUA], pelo seu papel em “Tudo ao Mesmo Tempo em Todo o Lado”, destronando outros nomes favoritos, nomeadamente Cate Blanchett, que concorria pelo seu papel de Lydia Tár em “Tár”, Ana de Armas, em “Blonde”, Andrea Riseborough, em “Para Leslie”, e Michelle Williams, em “Os Fabelmans”, de Steven Spielberg.

No discurso de aceitação do Óscar, Michelle Yeoh dedicou o prémio “a todos os pequenos rapazes e raparigas que me estão a ver esta noite, isto é um farol de esperança e de possibilidades”. “É a prova de que os sonhos sonhados são grandes e que se tornam realidade. Dedico-o à minha mãe, a todas as mães do mundo, porque são verdadeiros super-heróis, e sem elas nenhum de nós estaria aqui esta noite”, acrescentou.

Brendan Fraser recebeu o Óscar de Melhor Actor pelo desempenho em “A Baleia”, de Darren Aronofsky, filme que já esteve em exibição na Cinemateca Paixão. A interpretação de Fraser já recebera este ano o prémio do Sindicato dos Actores, entre outras distinções. Para o Óscar de Melhor Actor estavam nomeados Austin Butler, por “Elvis”, Colin Farrell, por “Os Espíritos de Inisherin”, Paul Mescal, por “Aftersun”, e Bill Nighy, por “Viver”.

O grande vencedor

“Tudo ao Mesmo Tempo em Todo o Lado”, da dupla Daniel Kwan e Daniel Scheinert, conhecida como “Os Dois Daniéis”, teve 11 nomeações e venceu grande parte delas, nomeadamente a de Melhor Argumento, Melhor Filme, Melhor Actor Secundário, com Ke Huy Quan, o segundo asiático na história dos Óscares a ganhar nesta categoria, e Melhor Actriz Secundária, com Jamie Lee Curtis.

O filme foi o mais premiado desde “Quem Quer Ser Bilionário”, em 2008. Michelle Yeoh considerou, à saída da cerimónia, que este foi “um momento histórico que quebrou o tecto de vidro” com um movimento de Kung-Fu. “Isto é para todos os que foram identificados como minorias”, considerou a actriz. “Nós merecemos ser ouvidos, merecemos ser vistos e ter oportunidades iguais, para podermos ter um lugar à mesa”, continuou. “Deixem-nos provar que nós valemos a pena”.

Urgindo todos os que têm sonhos a “acender esse fogo na alma”, Yeoh, de 60 anos, também mandou um recado aos que têm preconceitos contra as mulheres após uma certa idade. “Não deixem que vos ponham dentro de uma caixa, que vos digam que já não estão no auge”, afirmou.

A importância da representação e reconhecimento de actores asiáticos também foi abordada por Ke Huy Quan, que ganhou um Óscar depois de andar afastado da indústria durante décadas por falta de oportunidades.

“Quando comecei a representar em criança, lembro-me de o meu agente me dizer que seria mais fácil se eu tivesse um nome que soasse americano”, disse Ke Huy Quan. Foi por isso que na fase inicial da carreira o seu nome aparecia como Jonathan Ke Quan. “Quando decidi voltar à representação há três anos, a primeira coisa que quis fazer foi regressar ao meu nome de nascimento”, explicou.

Quan foi o vencedor mais exuberante da noite na sala de entrevistas, para onde entrou aos saltos e a gritar de alegria. “Conseguem acreditar que estou a segurar uma [estatueta] destas na mão?”, perguntou. “Isto é tão surreal”.

Pelos bastidores também passaram os ‘dois Daniéis’, que levaram ainda para casa a estatueta Melhor Realização, batendo Steven Spielberg. “Estamos numa crise de saúde mental, em especial a geração mais jovem, que não tem muito por que ansiar”, disse o co-realizador Daniel Kwan. “Há uma desolação que se infiltra”, referindo que ele próprio passou por tempos muito difíceis na adolescência.

“O poder radical e transformador da alegria, do absurdo e de perseguir a nossa felicidade é algo que quero trazer às pessoas”, disse, “e este filme é um tiro de alegria, absurdo e criatividade”.

O produtor Jonathan Wang acrescentou que a intenção da equipa era que o filme culminasse num abraço caloroso, apesar de ser uma história de caos. “Decidimos dedicar a nossa vida a fazer filmes que são bons e que levam a algo bom, e não apenas a algo que vai obter atenção”, afirmou.

A história de “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” oscila entre o absurdo e o fantástico, centrando-se numa imigrante chinesa de meia-idade (“Evelyn Wang”) que se vê atirada para uma aventura em múltiplos universos e linhas temporais.

Quase lá

A Melhor Longa-Metragem de Animação acabou por ser “Pinóquio”, de Guillermo del Toro, mas estes Óscares foram marcantes para o cinema português pelo facto de “Ice Merchants”, de João Gonzalez, ter sido o primeiro filme de sempre a ser nomeado. Guillermo Del Toro disse que o filme é uma afirmação da animação como arte e dos animadores como artistas. “Esta é uma forma de arte que tem sido mantida comercial e industrialmente na mesa das crianças por demasiado tempo”, disse Guillermo Del Toro nos bastidores dos Óscares, após vencer a estatueta.

“É na verdade uma forma de arte madura, expressiva, bonita e complexa”, afirmou o realizador, que estava extático com a vitória. Usando a técnica ‘stop motion’ e não ‘live action’, o filme da Netflix afirmou-se com uma história que diverge do conto infantil escrito por Carlo Collodi e das várias adaptações que se seguiram.

Del Toro disse, na sala de entrevistas, que o Óscar é um triunfo desta técnica, que considerou ser “uma das formas mais democráticas de animação”. “Era muito importante para mim ter a oportunidade de dizer que a realização, escrita, direcção de arte e design de produção, tudo o que fazemos na animação é análogo, tão ou mais complexo que ‘live action’”, referiu o cineasta.

Del Toro, que fez várias piadas e deu algumas respostas em espanhol na sala de entrevistas, também disse ser importante que a animação tenha sido feita por pessoas “a quem foi prometido serem tratadas como artistas e não como técnicos”.

Sobre o impacto da história em si, o cineasta mexicano disse que o filme tem vários aspectos reversos e significativos. “Um dos mais importantes é que não é uma criança a aprender a ser um menino de verdade, mas um pai a aprender um pai de verdade”, disse. “É uma lição urgente no mundo”.

O realizador acrescentou que o filme também mostra uma urgência de desobedecer. “Estamos a dizer que a desobediência não é apenas necessária, é uma virtude urgente no mundo”. É “um pai imperfeito e um filho imperfeito”, descreveu, que representam a forma como podemos amar-nos uns aos outros com “os nossos falhanços, defeitos e a nossa humanidade”.

14 Mar 2023

Michelle Yeoh foi a actriz em foco no Festival Internacional de Cinema de Macau

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] actriz em foco da segunda edição do Festival Internacional de Cinema de Macau foi Michelle Yeoh, uma escolha estratégica da primeira Bond girl oriental que fez carreira com sucesso a ocidente e a oriente. Mestre de kung fu, Michelle Yeoh não se fica pela espetacularidade dos golpes personalizados que a tornaram famosa no cinema da região vizinha. A actriz orgulha-se da componente de representação que lhe tem sido reconhecida em filmes com “Memórias e uma gueixa”, “Crouching Tiger”, “Hidden Dragon” e “The Lady”, e mais recentemente, na série Startrek”.

Aos jornalistas Michelle Yeoh recordou a opção pelo cinema com uma forte componente física. “Quando comecei a fazer filmes, os que envolviam artes marciais e as comédias eram os mais populares nas salas de cinema. Pensei que não conseguia fazer comédia porque na altura o meu cantonês era muito mau e não lia chinê que, polo não conseguia ler guiões. Por isso pensei que o mais fácil para mim seria mesmo optar pelos filmes de artes marciais”.

Tratava-se de entrar num mundo essencialmente dominado por homens, mas Michelle Yeoh não se inibiu e optou por criar um estilo próprio. “Porque é que escolhi desenvolver os meus golpes? Porque podia. Não o fazemos só porque queremos, fazemos porque podemos. Comecei a treinar muito e como tinha um passado dedicado à dança o meu corpo era muito flexível”, começou por contar.

Por outro lado, a actriz considera que nos momentos de acção há que defender uma causa. “Tenho de ter uma razão pela qual lutar: Não é a mesma coisa uma mulher lutar para proteger um, filho, ou um amor, ou um inimigo do país, referiu. O estilo de luta vem também com a personagem”, referiu.

Em 1997 deu o pulo para Hollywood ao participar no filme do James Bond “Tomorrow nerver dies”. Este filme, assim como o “The Lady” marcam uma mudança no rumo de carreira em no reconhecimento enquanto actriz, pois deixou de ser apenas a “mestre de kung fu de Hong Kong”.

Uma actriz de causas

Na tela, Michelle Yeoh defende causas que têm essencialmente que ver com a igualdade de género. “Todos os papéis que fiz, são de alguma forma, inspirados em mulheres que conheço. Apesar de representar muitas mulheres diferentes, é como se fosse uma homenagem a todas elas, a todas as mulheres que lutam”, apontou.

“Não sou feminista, mas acredito em igualdade de oportunidades e que todos podemos contribuir para um planeta melhor”, referiu tendo em conta a participação activa que tem tido em diferentes organizações, nomeadamente ligadas à luta contra a pobreza. Mas, sublinhou, “cada um de nós pode fazer a sua parte no que respeita às mudanças climáticas, à pobreza e à violência”, rematou Michelle Yeoh.

17 Dez 2017