João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasBoca de Incêncio Santa Bárbara, Lisboa, 10 Agosto [dropcap]T[/dropcap]ropeço em velho texto que se aplica e auto-confirma. «A única verdade que vos posso contar é a de não estar preso a esta ou aquela mentira. Cultivo tantas, como em jardim botânico de espécies em vias de propagação. A mentira é uma infestante. Arde nos interiores, dá cor aos litorais, esconde no seu bojo líquido as areias e as dunas. As mentiras têm desertos nos bolsos. Só se descobre uma notícia se ela se confessar. Gosto muito das minhas mentiras. Algumas alimentam-se de moscas e obrigam-me a sair pela manhã para terem o que comer. Outras enchem-se com o ar verdadeiro das noites longas. Outras ainda sanguessugam imagens de televisão: anúncios, documentários e programas de culinária. Todas me escravizam com o trabalho de lhes oxigenar o sangue. Ando há tempos a roçar o abismo. Confesso que me protejo do mundo com a música que não sei tocar. Bebo demais e sei de menos. Não faço o suficiente para dizer que tenho uma vocação. Não escrevo diários e não me exponho, a não ser no disparate. Manipulo como animal de feira o lugar-comum. Sento-me nas frases como se estivesse cansado. E estou cansado nas coisas como se estivesse doente. Acham que sou engraçado e sei. Sou um ignorante melancólico. Acham que me disponho aos outros e faço. Afinal cultivo o meu umbigo em uma preguiça infindável.» Horta Seca, Lisboa, 11 Agosto Cultivei, em tempos, no Expresso, uma leira de prosa onde procurava colher as palavras que actualidade atirava ao ar, ilustrada pelo mano Tiago [Manuel] (que ilustra algures a página com uma inédita destinada a «assessor de imprensa»). O nevoeiro pôs-me a folhear as páginas do dicionário perdido, para me garantir ao ouvido que o passado custa a deixar o ouvido. Arranquei umas da letra p, de pequeno possível. «Pandemónio – Milton criou a palavra para dar nome à morada apalaçada de Satã, em Paraíso Perdido. Significa agora uma mistura confusa de pessoas ou coisas. À primeira vista, assemelha-se bastante ao nosso quotidiano. Também se aplica à uma associação de pessoas para praticar o mal ou promover desordens e balbúrdias. Moraremos no condomínio aberto do demónio tendo por vizinhos um gang, duas claques e três máfias? «Pantanas – No singular é lamaçal, atascadeiro, um grande pântano. Mas ouvir, a propósito da vida ou do orçamento, das eleições e do país, que «isto está de pantanas» deve-se ao facto de estamos perdidos ou com o negócio a correr mal. Também pode ser, singularmente, um salto lateral em que as mãos tocam no chão enquanto o corpo executa meia-volta. «Papagaio de pirata – Segundo a oralidade brasileira, dona e senhora de belas imagens, classifica o assessor político ou de imprensa que surge amiúde no enquadramento televisivo de um político (eleito ou em campanha), em geral logo atrás por sobre o ombro. Não confundir com emplastro. «Percepcionar – O mundo anda perigoso, por isso nos gritam a cada minuto esta exigência de percepcionar as ameaças. Não chega o uso dos sentidos para as perceber ou uma qualquer capacidade para as compreender, temos que as percepcionar. Como a percepção também inclui nos seus sentidos o efeito mental de representar os objectos, muito provavelmente paira por aqui um aviso acerca de obstáculos no caminho. Ou serão buracos? «Pindérico – No entendimento burlesco das coisas é alguém magnífico e excelente, de altíssima qualidade. Mas afinal resume-se a indivíduo pobre, mal vestido, sujo e magro, ainda que teime em fazer figura. Quantas candidaturas políticas, programas de televisão, romances e figuras públicas nos surgem assim, sonsos e ensossos? «Player – «Este player pode play discos», ou seja, este jogador pode jogar discos. In Manual de Instruções de DVD. «Poder – «Desligue o poder quando a unidade não é usada». E não se esqueça: «gire em torno do poder», que é como quem diz, em inglês, turn on the power. in Manual de Instruções do mesmo DVD. «Populares – Eles acodem aos eventos no plural e logo deixam de ser povo, gente comum, pessoas simples, para se transfigurarem em anónimos ferozes, turbamulta de um só rosto brutal, cuspindo insultos. Nalguns casos trazem ao palco a ignorância em estado natural e, portanto, totalitário. Noutros desejam a violência cobarde, uma justiça feita pelas mesmas mãos que poderiam ter corajosa e solitariamente evitado a desgraça. Mais do que figurantes, são actores do circo mediático. E representam-nos bem. «Praga – O homem vermelho de raiva soergueu-se na janela do automóvel em andamento e gritou: «Que tenhas um acidente!» Era uma praga, uma velha imprecação desejando males, no caso, a outro condutor mais lento, mais azelha ou apenas mais respeitador. As estatísticas mostram que, devido à velocidade ou à mentalidade, a morte nas estradas é um desastre, um flagelo, enfim, uma maldição das antigas. Não virão todas do Egipto, não serão ervas daninhas ou uma multidão de gafanhotos, mas elas andam por aí: são as lojas dos chineses, para uns, para outros a delinquência juvenil; para estes o futebol, para aqueles as seitas religiosas. Traz consigo o cheiro de outros tempos, este pedido com instância, esta súplica a uma entidade superior para que faça mal a alguém em nosso nome. Rogar uma praga é requerer um serviço com ponto de exclamação, reencaminhar em direcção concreta um mal que anda por aí à solta, indicar ao outro o caminho do inferno. A mais comum e prática talvez seja o básico «vai para o diabo!» Mas, além de o gritar, é preciso acreditar. Os irlandeses, povo de mar e literatura, não se limitavam a atirar frases do tipo «que tenhas uma morte horrível!» ou «que o diabo te asfixie!». Apanhadas as pedras que eram empilhadas em forma de fogueira, ajoelhavam-se e tratavam de inventar sofrimentos, terminando o ritual dizendo «até que estas pedras peguem fogo». Cada qual com sua praga, as pedras eram atiradas para longe. Imagino o sucesso que seria a venda de calhaus com maldição incluída… À falta disso, podemos sempre contar com o fogo das palavras. Roga-se apenas alguma criatividade. Na tradição judaica há imprecações sugestivas: «Que te caiam os dentes todos menos um, e que esse te doa!» De Espanha, vem boa imagem: «Que engulas um pavão e que todas as penas se transformem em lâminas de barbear!» «Prestação – Na televisão, que é afinal a superfície do nosso mundo, os sumo-sacerdotes da opinião pública avaliam continuamente a prestação dos gestores públicos e semi-públicos, assessores e magistrados, políticos e eleitos, dos governadores e governantes, enfim, daqueles que deveriam estar obrigados a fornecer-nos explicações. As prestações dos avaliados como dos avaliadores raramente são prestáveis pelo que não saldam o crédito que lhes damos. A culpa é nossa. «Pum! – Segundo o Morais, dicionário que merece tratamento por tu, é a voz para queda, explosão ou disparo de um tiro. Por detrás da onomatopeia nem por isso violenta para queda, explosão ou disparo, esconde-se ainda o traque, como todos sabemos, ventosidade anal acompanhada de ruído. Embora não encontre registo, nem no Novo Dicionário de Calão, do Afonso Praça, sei que em paragens a norte, se usa apenas «pu», o que lhe retira alguma percussão. Mais colorido é o uso infantil de «pusete». A geografia mexe muito com as palavras. Por exemplo, em francês, este som diz-se «prout», mas deve soltar-se de igual modo. Discreto. «Punho – «Sonho com uma língua cujas palavras, como punhos, quebrassem queixos…» Cioran, Cahiers 1957-1972, Gallimard.
admin h | Artes, Letras e IdeiasO criador e a mentira [dropcap]O[/dropcap]lhando bem para o infinito, e há pessoas que o fazem, conseguimos observar o início de NÓS e descrevê-lo. Lá, nessa obscuridade sempre em expansão – cegueira, ignorância, melancolia -, diz-se que em preciso momento, do nada, a luz se acendeu. Especulação total. Nada se pode confirmar. Não existiam observadores para ver. Mas existem agora. E vemos. Porque a velocidade a que o passado se desloca não é suficiente para chegar até aqui, agora. Não é que o passado já se tenha ido, na verdade, o início disto tudo ainda não chegou. Pior, não se sabe qual será o primeiro a dar de caras com esta coisa a que chamamos presente, se o fim, se o princípio. Ontem é amanhã. Tenho quase a certeza que o mais fascinante que há na vida, mais do que ver, embora esta faculte a outra, é a leitura. Processo que mexe com todos os sentidos e que coloca a mente noutras alturas, não há muitos assim. Atilhos de palavras que constroem uma visão sem ela existir. Uma utopia a cada folha. O rigor de uma cascata, a chegar no fluxo, sem ordem. Por isso, leio. Observo. Escrevo. E sinto-me nutrido. Inicio uma nova experiência em páginas de jornal. Como um passageiro, deixo a torrente desabar e fico à espera do resultado. Gostava que estas crónicas saíssem de forma natural como quem colhe uma peça de fruta do ramo de uma árvore. Uma peça de fruta, o ramo da árvore, é o que esta crónica vai ser. Percorrem-se estradas sem querer fazer contas ao destino. Sigo pelo pavimento, não sei onde vou desaguar. Não é relevante. Certa vez, não sei porque me lembro disto, fui cicerone da região onde habito para uma estrela cadente da televisão. Mostrei-lhe o que havia, vistas, artesanato, costumes e gastronomia. Pelo meio, falámos do medíocre panorama televisivo, sem perceber que estava a participar nessa paisagem. O programa era péssimo, vi mais tarde, dando laivos de humor barato àquilo que levava desta zona. Respondeu-me: “É o que as pessoas querem”. Mas terá de ser assim, não se consegue vencer este estigma e nivelar um pouco mais alto? Nesta mesma terra, um homem de descendência algarvia, com apelido de uma família de artistas macaenses, está revoltado com o que se passa por cá. Viveu na Germânia, onde foi bem recebido e aceite pela comunidade local; e passou alguma parte da sua vida nas américas, tendo feito grandes amizades com os aztecas, onde ainda é respeitado. É uma pessoa só, no sentido em que na terra onde vivemos há muito poucos do lado dele, a gritar em consonância e a contestar os desígnios da autarquia, enraizada até aos cabelos nos poucos habitantes que a compõem. Um sítio grande, pequeno. Vem isto a propósito de quê? Vem a propósito do mundo bloqueado que se sintoniza todos os dias. Aqui, parto do princípio, não sei nada. Pego disto e daquilo e misturo. Agito. Um, dois, três. Já está! De um beco surge uma rua, um ponto cardeal que aponta para aquilo que é vivido, no cerne deste turbilhão. Estatela-se nas folhas deste papel. E vice-versa. A cascata, o fluxo, a desordem. A questão. Quero elucidar as pessoas mais novas para a necessidade da leitura. Ler e desprender a imaginação para outros mundos, como alimento. Escrevo com essa intenção primária, de explorar o planeta cinzento atrás dos olhos. Os germanos, os aztecas, o infinito. A roupa suja. O que sei e o que não sei. Não importa. Aquilo que se sabe é uma ínfima parte do que não se sabe. A luz que se reacende. Ininterrupta. Relatá-lo como verdade é uma incoerência tão grande como a ignorância de um animal rastejante acerca da desventura humana. O passado é a única coisa que temos à frente. Se serve de alguma prova. Inventar é mentir. As pessoas deturpam o verdadeiro para chegar mais longe. Quando estou a criar estou a mentir. Estou a lutar contra a precisão. Contra os factos. Ou o estado das coisas. Uma invenção, uma nova descoberta, com pouco se torna palpável e com contornos de realidade. Inventar é dizer a verdade. Cegueira, ignorância, melancolia. E a crónica segue. Rasura o tempo corrente. Aventura-se na geometria do acaso. Despede-se. Tudo o que experimenta é desconhecido. Conheço-te, sei quem tu és, murmuras. Frase por frase, vai por aqui, a tentar encontrar o texto. E a poesia. Levando água entre as mãos e escrevendo-a no papel. Esse líquido cristalino que é um poema, que é uma ideia. Não fica lá tudo porque, a ideia e o poema, não se compadecem com uma superfície plana e limitada. Mas no pensamento, vago e alheio, fica alguma coisa, se tiver habilidade para isso. Para não entornar mais do que de menos, talvez reste algo perceptível. Cosendo as linhas de um poema. Ou de uma ideia. Que interessa isso dos nomes, e das verdades, se podemos voltar sempre ao início. Mas, diz este descendente de algarvios, aqui todos têm medo. Medo até de o cumprimentar. Não vá estar ligado a forças progressivas que impugnem – porque nem tudo tem o formato visível da Lua– o edil camarário. E sabe-se lá o que existirá amanhã. “Estavas a falar com aquele, não era? Escreveste num poste. Não apareceste na cerimónia. Agora, amola-te”. Não é assim, porque a indiferença vem primeiro. A invisibilidade. Nem se chega às falinhas mansas, a coisa morre ali, muito antes de chegar ao vislumbre de terra firme no horizonte. A ilusão é plena. Cheia de estrelas cadentes e coisas por lavar. Desventura, é certo. Parecemos animais rasteiros, sem ser de laboratório, esses sempre têm mais categoria, mas daqueles que abandonam primeiro o navio, antes das crianças e dos idosos. Muitas vezes, vejo as palavras dos outros – as entranhas, o sentir – e deparo com aberrações, com intolerâncias, com vacuidades. Humor barato. Sinónimos. “O que o povo quer.” Há sempre o nome. Joel, Martins, Sambuca. O que seja. Nomes que vêm à cabeça. Não importa a designação ou o número. Por isso não é de se ligar. As palavras, sim, importam. Vão caindo. Referem, ditam, apropriam. Mesmo deturpadas, porque as mãos não conseguem levar toda a água ao seu moinho, deixam uma raiz. Uma erva daninha. É preciso pensar nelas. Regá-las. Dar-lhes vida. Enxertá-las para que gerem mais peças de fruta. E possivelmente mais árvores. E lençóis por lavar, claro. O criador e a mentira, ditei como ponto de navegação, em letras mais gordas. No início, quando nada há, antes do tudo, a raiz aflora. A realidade não consta. Não há o eu, não há o outro. Não há a saudação, nem a ameaça da mão apertada. Só o coração aperta. Que fazer, senão inventar e criar uma realidade qualquer? Coisas vãs e alheias. Choques. Caos. Caroços. Restos de coisa nenhuma. Revejo esse ponto lá ao fundo, não tão longe como isso, do primeiro momento, um sopro, um evento singular. Luminárias a piscar. Cosmologia física. Densidade infinita. Filosofia quântica. Vivemos num mundo irreal, que não sentimos. Que rodopia numa espiral catastroficamente controlada, composta por fórmulas atómicas não possíveis de percepcionar. Uma vírgula, um ponto final. Vive-se na impossibilidade, é tudo recreio. A invenção do dinheiro. O poder. A água, as palavras, os poemas. Para que serve tudo isso, se não está cá ninguém para nos cumprimentar?