Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasMaré de mar [dropcap]M[/dropcap]ármara. Mar mente. Mar de Aral. Mares e marés, extintos ou por extinguir. Mares. Mares interiores. Marés de vagas mansas ou insubmissas a avançar por nós ou a recuar com a força do que é assim em virtude de ventos e lunares atracções. Solares. Desvios de uma inércia pela força da gravidade. Emoções graves a gravar no corpo rastos de sal. Rastos de sol. Estar em cada momento em cada maré. Estar de maré. Um estar, como tendência para algo, em vagas, em nada definitivo como elas. Que quando tendem para terra, sempre voltam a tender para o mar. O mar e mares. O todo e as pequenas águas. O todo, mais todo, e a parte mais parte. Águas pequenas face aos oceanos. Escondidas deles ou à espreita. Interiores fechados. Interiores isolados. Ou abertos em pequenas deixas, estreitos pontos aquosos de passagem. Mas o interior, sempre interior, o oceano também. Amar o mar. Amar o desafio orgânico, o embalo e o risco. Aprender-lhe o perigo e deixarmo-nos morrer dele. E do risco, uma vez mais apreender a curva de nível, essa linha dos acidentes geográficos, em cotas ou alturas. Da linha do risco, a aureola topográfica que define a insularidade do visível, ou a insularidade da terra invisível por debaixo da água. Insularidades diferentes como eternos símbolos de contentor ou continente. Mar interior. O avesso insular. Tanto mar. Mares tímidos e isolados no seu ser avesso e sem comunicação. Fechados e interiores. Entranhados em terra. Baixos, silenciosos, por vezes mortos. Mortos de vida possível e ainda assim a morrer mais. Como o mar Morto. Que já o era, mas ainda tem vida para morrer. O mar Cáspio, o mar de Aral. Grandes lagos salgados. Grandes lágrimas retidas na face da terra. A secar com o tempo. E outros. E mares alegres ou mediterrânicos, de uma pontinha espreitam o grande oceano e daí se fazem trocas e temperaturas a refrescar no que é vindo de longe e da amplidão. Portas que não se fecham, mas resguardam a interioridade. Outros abertos, pontuados de ilhas e ilhas, estranhas identidades junto a mar aberto, ou ao oceano, dizendo bem. Juntas as águas, mas distintas. Num namoro fluido e duradouro. Abertos ao mundo e sem fronteira nítida entre uma gota de si e uma gota que não é de si. O da China, o do Japão. O mar de Celebes, o de Flores, o de Mindanau. Tantos. Junto a cada oceano, a cada continente. Ou por dentro. Que outras marés de uma vida, de um corpo, se foram com o mar de Aral. Que águas se retiraram como dragões do mar no Triássico, quando um ecossistema emocional se altera no corpo do sentir. Temperatura, alimento. Ou a extinção abrupta das estrelas. Do mar. Milhões atacados por vírus. Coisas tóxicas que matam. As outras, mais lentamente aos olhos. Continuamos a vê-las quando já lá não estão, mas a notícia, esse rasto visual que um dia vai chegar, leva o seu tempo. Como uma dor a instalar-se depois do trauma. Mas não logo. Só quando o corpo a reconhece, repara, passa a sofrer. A doer. Um desfasamento ínfimo no tempo. Se pensarmos no tempo de uma estrela. Estrelas e dragões, num intervalo estreito entre a memória e o mito. Mas mares e lagos, mesmo açudes a entristecer os corações de ausência, e com as suas águas, a vida. A ensombrar olhares de futuro incerto nos interiores. Do Brasil ou da Rússia. O mesmo mundo e a mesma humanidade. A construir por um lado e a destruir pelo outro. Da geografia. De uma geografia como a de sentir. Revela-se uma topografia em linhas sinuosas, desenhos de limites entre camadas em altitude e profundidade como fatias de um real em que nem sempre há comunicação entre vasos. Porque nem todos comunicantes. Mares que ficam abaixo do nível do mar. Como se contrário ao senso sentido comum. Que realidade se desprende de um mar interior. Esse avesso do insular que nos habita. Que calmarias os limitam adentro dos seres que os protegem como continentes. Contentores, na verdade. Aquilo que contém um mar e as marés que esse traz. O que define um mar interior para além dessa contrária imagem, à imagem de ilha. É sempre a terra que esconde, se esconde ou revela. Que se tapa, da fluidez das águas como suaves velaturas e sedosas, ou se desnuda. E os mares. Mesmo abertos para os oceanos, sempre isolados em si. Em ilhas de liquidez e de águas distintas. Outros com apertadas portas para as águas exteriores. Outros, os mais solitários, isolados em ilhas como pequenas peças de roupa a cobrir um seio de terra. Sempre a terra na base de cada chão. De água. Só dos icebergues, flutuantes gigantes de gelo sem mais, soltos e imensos e secretos se diria secretas ilhas. Verdadeiras. Rodeadas de ausência por todos os lados e mais um. O céu. Da imensidão oceânica a devastar progressivamente a terra emersa, na ameaça de engolir como a outra, não vou pensar. Os mares, sim. Os interiores e que mais mansos do que os outros, particulares e pequenos, se distinguem no modo como navegamos. Quanto em nós é levado pelos mares. Quanto de mar interior, se funde no grande mar de contemplação. Perpassando num estreito em que flui a alma. Quando aí se refresca de límpida serenidade, pequenez confortável. Comunicação de iguais na essência, mas a humanidade pequena do pequeno mar, face à humanidade abstrata do enorme mar. Quanto nos embala numa onda suave de melancolia ou poético sentimento de algo, ou nos submerge em reviravoltas de que a custo retomamos as coordenadas, sustendo a respiração para que o mar não invada todo o mar interior. E de que a custo, voltamos a emergir. Mar perigoso o grande mar. Quanto mar agita. Quanta água afoga. Quanta mágoa afoga. Ao longo de uma vida. De um dia. De um dia na vida de mar interior. Tanto mar.