Andreia Sofia Silva EntrevistaPaulo José Miranda, autor da biografia sobre Manoel de Oliveira: “A sua vida é tudo menos trivial” Poeta e colaborador do HM, Paulo José Miranda aceitou, pela primeira vez, embrenhar-se no género da biografia por ser um apaixonado pelo cinema de Manoel de Oliveira. No livro, contam-se os segredos de uma vida e de uma obra que acompanha quase a história do próprio cinema. Editado pela Contraponto em Portugal, a publicação chega à Livraria Portuguesa na próxima segunda-feira [dropcap]D[/dropcap]isse esperar que esta biografia chame mais a atenção do público português para as obras de Manoel de Oliveira. Os seus filmes foram sempre muito esquecidos pelos portugueses, mas aclamados fora de Portugal? Isso aconteceu desde o primeiro filme, filmado em 1931. Manoel de Oliveira sempre foi muito mais apreciado por estrangeiros do que pelos portugueses. A partir de uma certa altura ele passou a ser muito conhecido, mas esse conhecimento tinha a ver com várias razões que não propriamente as razões de apreciação da sua obra. E depois com os prémios lá fora e as críticas sempre muito boas, mais o facto de trabalhar sempre com bons actores, foi criando uma certa maturidade em Portugal. Mas a verdade é que a maioria das pessoas continuava a não ver os seus filmes e a falar deles de um modo depreciativo sem os ver. São filmes muito teatrais, muito longos. Isso poderá ter afastado o público? Primeiro que tudo trata-se de um cinema na maioria das vezes muito experimental, completamente fora do mainstream, anti-naturalista. É sempre muito difícil, porque as pessoas cada vez mais se interessam pelo cinema como divertimento, vão ao cinema como se aquilo estivesse mesmo a acontecer. Essa é uma das razões principais que afasta o público do cinema de Manoel de Oliveira. Mas também podemos dizer isso em relação à literatura ou à música. Porquê o título “A morte não é prioritária”? Esse título aparece logo quando comecei a trabalhar no livro, em 2017, quando me sentei a ver vários documentários sobre Manoel de Oliveira. No primeiro que vi, de Sérgio Andrade, uma das pessoas que estavam a ser entrevistadas falava da longevidade de Manoel de Oliveira e dizia que, em relação a ele, a morte não era prioritária. Eu achei que aquela frase se coadunava com o Manoel de Oliveira. Aí disse ao meu editor que já tínhamos título e ele achou extraordinário. De qualquer modo, tem muito a ver com ele. Qual foi o primeiro filme que viu que o fez perceber que era fã do cinema de Oliveira? Quando vi o primeiro filme do Manoel de Oliveira era muito jovem, tinha 23 anos, e foi “Os Canibais”, que tinha acabado de sair. Eu já gostava de cinema e, para um jovem de 23 anos, “Os Canibais” era uma obra extremamente nova, revolucionária. Aliás, várias pessoas escreveram na altura que parecia o filme de um jovem que estava a começar e não de um homem com 80 anos. FOTO: Sofia Mota O livro revela alguns segredos? Há várias informações que surgem que nunca tinham vindo a lume, algumas porque as pessoas não sabiam, porque foram reveladas por pessoas particulares, e outras tinham a ver com uma certa formalidade ou um trato que o Manoel de Oliveira tinha tido com Paulo Branco (produtor), por exemplo, para não falar daquilo que os tinha levado a separar. Depois da morte, isso deixa de fazer sentido manter-se, então há coisas que se revelam. A biografia não pretende trazer coisas que ninguém saiba, embora apareçam, mas quer acima de tudo contar a história de um homem que é bastante singular, bem como a sua história de vida e obra. Não é só a obra de Manoel de Oliveira que está neste livro, mas a sua vida, que é tudo menos trivial. A vida de Manoel de Oliveira acompanha a história do cinema português. A história do cinema mundial, quase, porque o cinema tinha 13 anos quando ele nasceu. Ele começa a filmar no cinema mudo e termina a filmar com o digital. Nestes dois anos de intenso trabalho quais foram os maiores desafios com que se deparou? Uma das dificuldades prendia-se com a longevidade dele. O colocar em 500 páginas, que acabaram por ser mais, uma vida tão grande e extensa, fez-me planear o que ia deixar de fora. Não é possível colocar uma vida inteira dentro de um livro. Numa aproximação mais rigorosa teriam de ser seis mil páginas, no mínimo. A técnica que escolhi foi a mesma que os cineastas utilizam em relação aos romances. Pegam num romance de 500 páginas e escrevem um guião para um filme de hora e meia. Eu fiz um guião como se a vida do Manoel de Oliveira fosse um romance, e fazer esse guião sem perder a riqueza do romance foi o maior desafio. Faltava contar a história de vida de um dos maiores cineastas portugueses? Há muitas reflexões à volta de Manoel de Oliveira, muitos textos sobre ele em Portugal e no estrangeiro, sobretudo em países anglo-saxónicos. Mas acho que era importante haver uma biografia e sobretudo uma como a que fiz, em que o confronto da vida com a obra está todo lá. O Luís Manuel Cintra dizia-me que não era possível fazer a biografia dele sem ter um conhecimento profundo e sem ter visto todos os filmes dele. Foi esse o trabalho que fiz e julgo que fazia sentido. Poderá voltar ao género da biografia? A poesia está sempre presente. Não me parece que volte à biografia pois é um trabalho muito exigente e que só se faz por uma grande paixão. Durante a elaboração desta biografia quais foram as fontes consultadas, que entrevistas fez? Manoel de Oliveira deixou quatro filhos, que continuam vivos. Uma das filhas, a Adelaide, que secretariava o pai, disse-me que a família não tinha nada contra a biografia, mas que preferia não participar porque teria sido essa a vontade do pai quando era vivo. Por intermédio de outra pessoa, José Roque de Pinho, falei com Manuel Casimiro (filho de Manoel de Oliveira) que, a partir de 2005, era a pessoa responsável por terminar os filmes caso o pai morresse. Era preciso determinar isso nos contratos. (Manoel de Oliveira morreria dez anos depois, com 106 anos de idade). Foi uma preciosa ajuda nas questões dos anos mais antigos, não me falou da infância e da adolescência do pai, mas falou do pai com 40 ou 50 anos. Falei também com pessoas que trabalharam com Manoel de Oliveira, com muitos actores e algum pessoal da parte técnica.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e Ideias“Pintor e a cidade”, de Manoel de Oliveira – Um amor inequívoco pelo essencial [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje vamos abordar um filme algo esquecido da filmografia de Manoel de Oliveira. Trata-se de um documentário a cores, filmado em 1956. Grande parte daquilo que virá a ser os pilares estéticos na obra de Manoel de Oliveira – a outra encontraremos sete anos mais tarde em O Acto da Primavera – começa em O Pintor e a Cidade. Depois de Aniki-Bóbó, Manoel de Oliveira esteve 13 anos sem filmar. Mas durante este tempo, além dos afazeres de empresário, pensava e assistia a cinema, e em 1955 fez um curso de fotografia nos estúdios da Agfa-Gevaert AG – especificamente acerca da aplicação da cor ao cinema –, na cidade alemã de Leverkusen. O Pintor e a Cidade é o primeiro filme depois desse curso. Mas as diferenças entre este filme e o seu primeiro está muito longe de se traçar em cores. “Fiz O Pintor contra O Douro. Enquanto O Douro é um filme de montagem, O Pintor é um filme de êxtases. Eu descobri no Pintor e a Cidade que o tempo é um elemento muito importante. A imagem rápida tem um efeito, mas a imagem quando persiste ganha outra forma. O Pintor e a Cidade é uma obra fundamental na minha carreira, na mudança da minha reflexão sobre o cinema. (…) É a primeira vez que eu volto as costas a um cinema de montagem.” [Manoel de Oliveira, Cem Anos, Cinemateca, pp. 56-7] Em O Pintor e a Cidade, Manoel filma a cidade do Porto através do olhar e das aguarelas do pintor António Cruz, considerado como o maior aguarelista dos tempos modernos. Acerca dele, Abel Manta, em entrevista a Manuel Lavrador (in Sol), diz: “é sem contestação o maior aguarelista português dos tempos modernos. Tirou a aguarela da banalidade para a que a tinham arrastado Roque Gameiro e os aguarelistas portugueses. Deu-lhe grandeza, ressonância sinfónica; levou-a até atingir o valor de uma alta expressão sintética e afastou-a da superficialidade habitual.” Também, décadas mais tarde, em 2015, José Emídio, pintor e responsável da Cooperativa Árvore dirá que “António Cruz é o grande aguarelista português do século XX. É um artista de uma mestria extraordinária. Além de pintor talentoso soube tirar partido das neblinas, a luz, o granítico das sombras, as pontes e o rio. Só um homem que viveu intensamente a cidade seria capaz de a mostrar com este olhar sensível.” E é precisamente estas neblinas, esta luz, este granítico das sombras, as pontes e o rio, que Manoel de Oliveira vai filmar através dos quadros do pintor e do seu olhar. Manoel mostra claramente duas coisas neste filme, que se tornariam fundamentais ao longo da sua obra: 1) não há distinção entre real e ficção no que é captado pela câmara; 2) a câmara é uma janela para o mundo – o que se filma –, e tal como a janela de uma casa, ela não se move e força-nos à atenção daquilo que passa por ela. Várias vezes, em entrevistas, Manoel de Oliveira referiu-se à relação entre ele e a câmara e entre esta e o mundo. Dizia que a máquina de filmar não faz nada, e que o cinema é tudo o que se põe diante da máquina de filmar. Podemos mesmo dizer, de modo Copernicano, que não é a câmara que anda à volta das coisas, mas as coisas que andam à volta da câmara. A câmara está no centro do universo. Na sua obra, em dois volumes, acerca do cinema, Gilles Deleuze escreve: “Em regra geral, os poderes da Natureza não são enquadrados da mesma maneira que as pessoas ou as coisas, e os indivíduos da mesma maneira que as multidões, e os subelementos da mesma maneira que os termos. Tanto assim é que há no quadro muitos quadros diferentes. As portas, as janelas, os postigos, as frestas, os vidros de um carro ou os espelhos são outros tantos quadros no quadro. Os grandes autores têm particulares afinidades com tal ou tal desses quadros segundos, terceiros, etc.” [DELEUZE, Gilles. A Imagem-Movimento – Cinema 1, Documenta, Lisboa, 2016, p. 32] Na verdade, e em relação à primeira afirmação de Deleuze, Manoel de Oliveira é claramente uma excepção. Mais: essa excepção torna-se a sua marca, pelo menos até aos anos 90. A câmara de Manoel de Oliveira enquadra um quadro do mesmo modo que enquadra a Natureza. E não é só em O Pintor e a Cidade – embora seja aqui que começa – mas pode-se ver claramente em toda a tetralogia dos amores falhados – e de modo geral ao longo de toda a sua obra. Especialmente nos três últimos filmes trágicos da tetralogia, Benilde ou a Virgem Mãe, Amor de Perdição e Francisca. Nessa primeira tragédia, o filme inicia-se precisamente com a câmara percorrendo os bastidores de um teatro. E, ao começar-se a cena, na cozinha de uma casa senhorial, a câmara foca uma fotografia pendurada na parede, que representa uma paisagem – muito provavelmente a paisagem exterior da casa –, e vai aproximando-se até que o quadro se torna toda a imagem captada pela câmara. Ficamos perante a evidência de que estamos no mundo da imagem, seja ela captada directamente pela câmara, seja ela captada indirectamente pela câmara. Não se distingue a imagem exterior, da imagem de uma fotografia do exterior, se a câmara de filmar fechar todo o ângulo de filmagem. Quando se começa a escutar o vento, sem que a paisagem se mova, compreende-se que estamos imersos no mundo da representação. Aquele quadro é uma janela, aquela janela é o mundo lá fora. Tudo é o que a câmara capta. Uma vez mais, e agora completamente ao encontro de Manoel de Oliveira, Deluze escreve: “Mas a única consciência cinematográfica não somos nós, cada um dos espectadores, nem o herói, é a câmara, ora humana, ora inumana ou sobre-humana.” [Op. cit., p. 40] A câmara é a consciência do que se vê. É a consciência daquilo que se mostra. A câmara não distingue entre Arte e Natureza, filma igualmente um quadro exposto numa parede ou uma paisagem. Curiosamente, ou talvez não, Manoel de Oliveira faz precisamente aquilo que André Bazin – um dos co-fundadores dos Cahiers du Cinema – escreve em 1945 acerca dos surrealistas, num pequeno estudo intitulado “A Ontologia da Imagem Fotográfica”: “É que para o surrealismo, o efeito estético é inseparável da impressão mecânica da imagem sobre o nosso espírito. A distinção lógica entre o real e o imaginário tende a ser abolida. Toda a imagem deve ser sentida como objecto e todo o objecto como imagem.” [BAZIN, André. O cinema – ensaios, Editora Brasiliense, 1991, p. 25] E podemos dizer o mesmo para a obra de Manoel de Oliveira: toda a imagem é um objecto e todo o objecto é uma imagem. A câmara transforma tudo em imagem. E não há imagens ontologicamente superiores a outras. Uma imagem é uma imagem é uma imagem é uma imagem. A imagem não é realidade. A imagem é o que a câmara capta. E ela não capta apenas quadros pintados, colocando-os ao mesmo nível da paisagem, ela também capta a nossa atenção ao plano fixo da câmara. E André Bazin, na sua análise ao cinema dos anos 20 aos anos 40, escreve: “(…) eu distinguirei no cinema de 1920 a 1940 duas grandes tendências opostas: os directores que acreditam na imagem e os que acreditam na realidade.” [Op. Cit., p. 69] E páginas adiante vai anda mais longe, ao encontro do que aqui temos assinalado em Manoel de Oliveira: “É que acabámos de considerar o expressionismo da montagem e da imagem como o essencial da arte cinematográfica. E é principalmente essa noção geralmente admitida que questionavam implicitamente, desde o cinema mudo, realizadores como Erich Von Stroheim, F. M. Murnau ou R. Flaherty. A montagem não desempenha em seus filmes praticamente nenhum papel, a não ser o papel totalmente negativo da eliminação inevitável numa realidade abundante demais. A câmara não pode ver tudo ao mesmo tempo mas, do que escolhe ver, ela se esforça ao menos para não perder nada. O que conta para Flaherty, diante de Nanook caçando a foca, é a relação entre Nanook e o animal, a amplitude real da espera.” [Ibidem] É preciso não confundir esta “amplitude real da espera” com realidade. A “amplitude real da espera” é um acontecimento fenomenológico, não um facto real. João Botelho, no seu filme O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu (2016), citando o seu mestre, diz: “A força poderosa e única do plano fixo – disse-me ele – tinha-lhe sido revelado pelo Dryer, na Joana D’Arc (1928), e pelo muito amado John Ford, aquele que dizia que só mexia a câmara quando os cavalos se moviam, para não correr o risco de distrair os espectadores do essencial.” Independentemente das influências que se possam ter, a verdade é que, tal como Miguel de Unamuno escreve em Do Sentimento Trágico da Vida, nós não somos pessimistas porque lemos livros pessimistas, pelo contrário, é porque somos pessimistas que lemos livros pessimistas. Os planos fixos exercem um poder sobre Manoel de Oliveira, porque ele os entende, ele vê neles algo de profundo, algo que faz parte de si mesmo, da sua natureza reflexiva. Em O Pintor e a Cidade, ele descobre o tempo como elemento fundamental no cinema. Tempo, aqui, em sentido de duração. E duração em ligação estreita com atenção. O tempo como tempo necessário à apreensão daquilo que importa, daquilo que é preciso realmente atentar. No fundo, o tempo como a nossa vida a dar-se conta dela em confronto com a arte. Pois é preciso não esquecer que, em Manoel de Oliveira, o cinema é sempre arte e não uma imitação da vida. O filme é um objecto para ser apreciado enquanto tal e não uma coisa que faz parecer ser outra coisa, sem que nos demos conta do objecto filme. Isto tornar-se-á mais claro ainda em O Acto da Primavera. Quase cinquenta anos depois de filmar O Pintor e a Cidade, numa grande entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura do Brasil, uma jornalista – dos seis jornalistas que se encontravam no estúdio –, pergunta porque razão é que um homem que foi campeão de atletismo, de corrida de carros, que pilotou aviões, passou a fazer filmes que são o contrário disso. Ao que Manoel de Oliveira responde: “No automobilismo o movimento é o de vencer o tempo. No cinema é o de reflectir sobre ele.” O cinema é uma arte, que como toda a arte é reflexiva, que remete para a reflexão acerca da vida e não para a vivência da mesma. Na vida, Manoel de Oliveira anda depressa, na arte anda devagar. Assim, o plano fixo não é apenas uma influência de Dreyer e de Ford, é reflexo de uma hermenêutica de Oliveira acerca da arte do cinema. Há sempre como que um fundo fenomenológico nos planos de Oliveira, um forçar a atenção, quer seja pela repetição, quer seja pela permanência, forçando o espectador a ver, a atentar naquilo que está a ser mostrado, não lhe deixando possibilidade de fuga, não lhe lançando a corda da distracção, que tanto ele acusava o cinema “americano” de fazer. O cinema americano a que aqui nos referimos, tal como também Manoel de Oliveira, era o cinema dos blockbusters. Pois John Ford ou D. W. Grifith, por exemplo, são realizadores americanos e sempre foram considerados como mestres por Oliveira. De facto, pelo menos a partir de um certo período da história, a arte não visa o entretenimento, e foi sempre assim que Manoel de Oliveira viu o cinema, como arte. Ele nem sequer era contra o cinema de entretenimento, apenas julgava que deveria também haver espaço para o cinema arte. E a arte, para ele, está indissociável do essencial, de mostrar o essencial. Um amor inequívoco pelo essencial. E, literariamente, não podemos deixar de pensar em Cesário Verde e no seu livro acerca da cidade de Lisboa, dos seus poemas que são como telas das paisagens desta cidade.
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e IdeiasTempos difíceis. Ai o cinema, ai o cinema [dropcap style=’circle’]H[/dropcap]ard Times, For These Times, é o título da obra literária do Charles Dickens e do terceiro filme do João Botelho (1988), 90 minutos, com um preto e branco nativo (na rodagem) notável, filmado em 35 mm por Elso Roque, direcção de arte de Jasmim de Matos, um talento que infelizmente já não partilha connosco nem as esperanças nem o sofrimento do quotidiano vivido. Mas este título e esta crónica, não é sobre esta obra cinematográfica, é sobre os continuados TEMPOS DIFÍCIEIS do cinema Português. O anunciado novo enquadramento legislativo, em lugar de ser um tempo de reflexão crítica por parte dos seus principais actores, os que o fazem, e os que o distribuem em sala, sobre qual cinema serve Portugal, e qual a legitimidade e a eficácia na decisão dos apoios públicos ao cinema, tem sido um tempo de vigor nas explosões intestinas, na defesa dos interesses já conhecidos e em vigor nestas últimas três a quatro décadas, ou seja, desde os anos 80 do século vinte. Nas redes sociais, em artigos de imprensa, em cartas abertas postas a circular em festivais internacionais de cinema, a pressão das facções dos “donos” do direito a fazer cinema com fundos públicos em Portugal, manifesta-se de forma mais corporativa e fratricida, do que na verdade empenhada em posicionamentos estéticos ou teóricos sobre um pensamento sistematizado sobre o cinema neste tempo concreto da hipermodernidade que vivemos. Em resumo, temos assistido ao território da criação cinematográfica radicado em duas igrejas. Ambas falam em nome da relação do cinema com o público, ou melhor com os públicos. O deus verdadeiro está em cada uma, segundo os próprios funcionários, ou crentes, da instituição respectiva. Uma igreja segue mais de perto a teologia do marketing, essa grande ciência que sabe mais das nossas vontades e necessidades do que nós mesmos, e a outra, sente-se dona, legitima e única continuadora da chamada política de autor – movimento do cinema europeu iniciado com a geração dos “Cahiers du cinema”, Bazin, Godard, etc, afirmando recusar-se a tratar os públicos como imbecis. Mas, a razão de fundo da querela é outra, é que, para filmar em Portugal com o mínimo de condições necessárias para cumprir as obrigações com as equipas técnicas e artísticas; os custos de desenvolvimento, preparação, produção, pós-produção e de comunicação de um filme com possibilidade de existir nos circuitos de exibição nacional e internacional, salvo casos esporádicos e nessa condição únicos, é necessário ter os apoios financeiros que resultam das políticas culturais públicas e, como os montantes são sempre escassos, o eixo do mal instala-se, e em cada igreja, instala-se a verdade com exclusão do que lhe esteja fora. Conviria, parece-me, traçar de forma breve o “estado da arte”, com o enfoque no cinema e na sua contaminação no banal quotidiano. O cinema é matéria de múltiplos territórios, é transdisciplinar, é arte e indústria, contamina comportamentos, atitudes, artes, num duplo movimento de apropriação e recriação do apropriado. É o mais poderoso construtor do “phatos” (palavra grega que significa paixão, excesso, catástrofe, passagem, passividade, sofrimento, sentimento, ligação afectiva), utilizando a terminologia do cineasta Eisenstein (1898-1948), neste tempo da irrupção de milhões de subjectividades, de comunidades afectivas territorialmente difusas. O cinema afirma-se enquanto olhar singular do homem sobre si e sobre o mundo. Capaz de transportar o espectador para a tela, o cinema é produtor de modelos e da reflexão crítica aos modelos que cria, é construtor de sombras e de luz, inventor de presentes, passados e futuros possíveis, afirma a radical dimensão da construção simbólica como alicerce e pilar para toda a tentativa hermenêutica do humano olhar sobre o mundo. Presente na forma e no desejo do habitar dos quotidianos pelas populações urbanas indiferentemente das geografias e modos de vida, sejam mais ou menos conservadoras, liberais, alternativas, dissidentes, feministas, pós-feministas ou pós-revolucionárias, o cinema está presente e, essa presença, sustenta e enforma olhares e subjectividades, visões do eu e do outro. O cinema é uma poderosa força construtora de mundos e do mundo. É neste contexto que se tem de pensar a política de fundos públicos de apoio ao sector. O momento de um novo enquadramento legislativo é talvez o melhor dos tempos para, por exemplo, pensar a articulação entre fundos públicos para o cinema e política externa de Portugal. O cinema e os objectivos e necessidades estratégicas de Portugal no curto, médio e longo prazo. A questão é, ou pelo menos a mim parece-me que deveria ser: Que cinema serve Portugal? Qual a legitimidade e a eficácia na decisão dos apoios públicos ao cinema? Pode um sistema de júris exteriores à administração pública cumprir com eficácia o entendimento das políticas públicas para o cinema? Se sim, de que forma? Apesar da chamada participação dos actores em campo, não se encontra facilmente qual seja a não legitimidade a que seja o ICA que assuma e garanta as decisões de financiamento com base no cumprimento das linhas programáticas de curto e médio prazo definidas em sede própria – o governo eleito. A constantemente transparência enquanto valor, o chamado não dirigismo do gosto pelo poder político, com a solução dos júris vindos e representantes dos diversos sectores da actividade cinematográfica, é, ou pode ser, um pensamento bondoso, mas nada garante que seja mais do que isso A obrigatoriedade de pensar o cinema numa visão integrada e alargada tanto às questões da comunicação de Portugal no mundo contemporâneo, como à oferta cultural em território nacional, como à diversidade estética própria da cinematografia contemporânea, não me parece que fique necessariamente melhor entregue fora do que dentro do organismo que depende da tutela do Ministério da Cultura. Em registo de conclusão. A velha discussão Bragança – Paris, apoia-se na irrelevante, estafada e sem fundamentação teórica credível, oposição entre cinema arte e cinema indústria, paradoxalmente, continua a legitimar o discurso e pensamento sobre o cinema que se faz e que importa fazer. O cinema, “ o diálogo do mundo contemporâneo”, como afirmou Elia Kazan, é arte e indústria, tem a razão da sua paixão nos públicos numa ancestralidade muito anterior a si, a necessidade de narrativas que acompanha a história do homem no mundo. A discussão arte cinematográfica versus indústria é bacoca, ignorante e enganosa. O que existe são diferentes modelos de produção, e todas as possibilidade de filme conhecidas ou a conhecer. A questão dos fundos públicos, das políticas públicas para o cinema português é central e vai continuar a ser, mas nenhuma igreja tem legitimidade acrescida.