O bem e o mal existem

[dropcap]A[/dropcap] crónica desta semana inicia-se com um jogo náutico. Imaginemos que o navio Y “navega de Portugal para o Brasil”. Consideremos depois “todas as distâncias percorridas com a ajuda do vento leste através do sinal + e aquelas percorridas com a ajuda do vento oeste através do sinal -”. A navegação por semana corresponderia a ‘+12+7-3-5+8’ = 19 milhas. Seria esta, portanto, a distância que o navio Y haveria de percorrer na direcção do oeste”.

Este jogo não foi retirado das prateleiras de uma sucessora da antiga ‘ToysRUs’. Não, ele pertence a um ensaio de Kant, publicado em 1763, acerca da natureza das grandezas negativas em áreas tão diversas que vão da matemática à chamada “filosofia moral” (ou à ética).

O ensaio pretendia demonstrar que as “grandezas negativas” não são apenas negações das “grandezas positivas”, na medida em que têm sempre autonomia e vida própria. Um exemplo óbvio recai no facto de a dor não ser uma ausência do seu oposto (o prazer), mas, antes pelo contrário, algo bem real que age e se faz sentir de forma independente. Se saltarmos para as águas da ética, poderemos afirmar precisamente o mesmo do mal: ele não é o oposto do bem, mas sim o resultado de uma acção que apresenta uma lógica própria, mesmo se aberrante.

Uma pessoa pode ter a consciência de um determinado bem (por exemplo, não mentir à pessoa A na situação X) e praticar literalmente o seu oposto. Na realidade, todos nós habitamos este aquário de possibilidades que se assemelha a uma simetria de opostos (no meio de um ajardinado mais vasto, como é evidente). Razão por que o mal e o bem se opõem num mesmo plano, tal como acontece com a dor e o prazer ou com o vento leste e o vento oeste.

Para Kant, este dualismo conflitual é inerente a todas as acções humanas. Mas o mais importante centra-se no que poderíamos caracterizar como sendo o ‘lado da fé na humanidade’ que é tão típico do autor. Por outras palavras: a consciência interna do bem tenderia sempre a sobrepor-se e a impor-se à consciência do mal. Estaríamos aqui no chamado terreno da normalidade, aptidão própria da larga maioria dos seres humanos.

Como não existe bela sem senão, toda esta (formosíssima) equação se arrisca, de um momento para o outro, a ficar viciada. Tal acontece porque a matriz generosa dos humanos pode oscilar e até, abruptamente, inverter-se. Entraríamos então no que o autor designou por “mal radical”.

O mal radical habita um sujeito (ou uma intersubjectividade mais vasta) que não deixa de viver conflitualmente entre as possibilidades do mal e do bem. No entanto, a matriz que decide e rege os actos passa a depender da grandeza negativa, ou seja do mal, e não já da grandeza positiva. O sentido das escolhas poderá, pois, tornar-se terrível. O nazismo pressupôs-se e agiu dentro deste território a par de outras práticas de barbárie que nos deixam, no mínimo, pasmados (a nós, pessoas normais).

Li há dias na imprensa um caso que faz realmente eco do mal radical. Tudo se passou em torno de um conhecido historiador russo de nome Oleg Sokolo. Para além de especialista em Napoleão, sempre adorou mascarar-se ao estilo do militar francês do início do séc. XIX e jamais enjeitou imitar a gesta e as posturas do seu amado chefe. Um performer sabedor, numa palavra. E não se pense que estamos face a um louco, muito longe disso. O homem já foi condecorado em França, para além de a Sorbonne o ter como professor convidado, o que não é para todos.

Mas como as histórias, digamos curiosas, têm sempre reversos inesperados, aconteceu que, há duas semanas, a polícia de S Petersburgo descobriu o homem caído nas águas de um rio e tentou socorrê-lo. Surpresa das surpresas, o senhor Sokolov não estava sozinho, pois tinha consigo, dentro de um saco, os restos de uma mulher que acabara de matar e de esquartejar (uma jovem de 24 anos de nome Anastasia Yeshchenko).

O pasmo é aquele instante em que a verdade se torna insuportável e não apenas aberrante. Subitamente, é como se o vento leste imaginado por Kant tivesse devastado o navio Y e isso acontecesse, não porque a natureza tivesse incorrido num dos seus acasos, mas porque uma mente humana o decidira de modo afirmativo, autónomo e assumido. Será isto o mal radical: uma máquina que dispara, porque o seu ânimo (ou o seu motor) apenas existe para disparar, embora saiba que pode não o fazer.

Este tema levanta sempre um infinito e fecundo reino de polémicas. É o caso da famosa ‘síndrome de Eichmann’, o alegado funcionário que – presumivelmente (haja ironia) – não poderia optar, mas tão-só accionar a máquina sempre e só na mesma (terrível) direcção. Tantos ex-pides que eram apenas funcionários! Tanto demissionista de temíveis leviatãs a que por consciência pertenceram. Já John Locke escrevera, no seu ‘Ensaio sobre o Entendimento Humano’ (1689) que a liberdade se submete à vontade. Ele, que assistiu a uma feroz guerra civil, lá saberia porquê.

P.S. – Escrevi esta crónica no passado dia 13 de Novembro. Dois dias depois, li uma crónica do António Cabrita em que o tema Sokolo também é tratado. A disformidade dos actos do historiador russo é tal que não há tratamento, nem abordagem que os curem. Oxalá muitas outras crónicas lhe caiam em cima com peso de bigorna.

21 Nov 2019