Confissões

[dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]ecentemente, o website “yahoo” de Hong Kong divulgou uma notícia sobre a exposição “Confissões”, aberta ao público de 10 a 27 de Setembro. A exposição é organizada pela “Sociedade para o Planeamento da Comunidade” (SOCIETY), fundada há 40 anos com o objectivo de preservar os direitos e valores ancestrais da sociedade de Hong Kong.
O website da SOCIETY faz uma apresentação do historial da exposição, da qual extraímos alguns comentários:

“……A exposição é um projecto artístico focado nas declarações de detidos e de ex-detidos sobre o arrependimento”.

Quando pensamos em alguém que está, ou esteve, preso, a primeira coisa que nos ocorre é que essa pessoa cometeu um crime e que, por isso, é um transgressor. É frequente que os julguemos e que sobre eles criemos uma imagem estereotipada. Acabamos por reduzi-los ao crime que cometeram, em vez de os olharmos como seres humanos tão complexos como qualquer um de nós. O sistema de justiça criminal faz o mesmo ao focar-se nas suas, alegadas, más acções. É preciso que confessem os seus pecados; têm de admitir os seus crimes……”
Através destes tópicos, podemos verificar que o propósito da exposição é apresentar as verdadeiras histórias de vida de detidos e ex-detidos, e usar essas experiências para ajudar a reabilitar as pessoas actualmente encarceradas. Mas acima de tudo, lutar para que o público em geral possa ter uma melhor compreensão destas situações e, dessa forma, proporcionar de futuro mais oportunidades a quem se encontra actualmente preso. Pretende-se que a sociedade de Hong Kong possa vir a aceitar as pessoas que estiveram detidas, e que estas possam mais facilmente integrar-se e tornar-se seus membros activos.
De todos estes testemunhos destacam-se dois casos que vale a pena analisar. O primeiro é o de Wong Ting Hin, de 52 anos de idade. Quando tinha 15 anos Wong roubou um cheque de 70.000 HK dólares ao patrão. Foi preso. Na sequência da prisão, acabou por se tornar membro de uma tríade e por vir a cometer uma série de crimes; assaltos, contrabando, tráfico de droga e envolvimento no negócio da pornografia. No decurso destas actividades Wong acumulou 50 milhões de HK dólares, em troca de 10 anos de prisão.
Mais tarde, Wong foi detido e fez amizade com Yip Kai Foon. A alcunha de Yip era “O rei dos ladrões”. Esta alcunha foi-lhe atribuída quando efectou uma série de assaltos em Kwun Tong, Hong Kong. Empunhando uma espingarda “AK47”, conseguiu roubar, em apenas 10 minutos, cinco ourivesarias. O assalto a cada uma das ourivesarias durou em média dois minutos. Quando a polícia chegou ao local houve um tiroteio. Foram disparadas mais de 40 balas neste confronto. Mas, embora Yip tenha conseguido evadir-se na altura, acabou por ser detido em 2003.
Na prisão, Yip tentou convencer Wong a fugir com ele, mas Wong recusou-se porque acreditava que, mesmo que conseguissem evadir-se acabariam por ser apanhados. Não foi um procedimento incorrecto.
Em 2013, Wong cometeu mais um furto e voltou para a prisão. Teve de se separar de novo da mulher e do filho. Como não queria que o filho soubesse que estava preso, disse-lhe que era actor e que tinha vestido as roupas de prisioneiro para um filme. Também nos confessou que chorava todas as noites quando pensava na mulher e no filho. Foi nessa altura que decidiu nunca mais cometer nenhum crime. Wong disse-nos,
“Antigamente era rico, mas era infeliz. Agora sou pobre, mas sou muito feliz.”
O outro caso é o de Raymond, que cometeu um crime em 2001. Raymond era toxicodependente. Durante o julgamento percebeu-se que tinha uma perna infectada devido ao consumo de droga. O médico informou-o que, para lhe salvar a vida, teria de lhe amputar a perna. Raymond recusou-se a fazê-lo, e jurou a si próprio nunca mais se drogar. Acabou por ser bem-sucedido e trabalha actualmente na SOCIETY para ajudar outras pessoas a libertarem-se das drogas.
Raymond conhece bem os serviços de reabilitação das prisões de Hong Kong. Os prisioneiros têm a possibilidade de obter um bacharelato e recebem formação profissional. Também têm acesso a muitas liberdades. Por exemplo, Yip casou na prisão em 2003. Se os meus leitores ainda estão lembrados, em Janeiro de 2014, escrevi sobre Wong Yuk Long, também conhecido por Tony Wong. Tony tinha criado um império no mundo da banda desenhada. Contudo, devido à crise económica de 1987, as acções da sua empresa caíram de 4 HK dólares para apenas 1,18. Tony tinha também contraído enormes dívidas para financiar os seus múltiplos empreendimentos. Acabou por ser acusado de falsificação de documentos e condenado à prisão. Enquanto esteve preso Tony podia desenhar, mas não podia publicar o seu trabalho. Depois de ter sido libertado, voltou a reconstruir o seu império.
Podemos assim concluir que os serviços de reabilitação, as liberdades e as condições dadas aos prisioneiros, são factores vitais para o arrependimento e para a mudança nas suas vidas. Esperamos também que a sociedade de Hong Kong venha a aceitar os ex-detidos e a permitir que possam integrar-se em pleno, encontrando trabalho para o qual tenham qualificações.
Quando este artigo for publicado, o Festival do Meio do Outono já terá passado. Espero, pois, que os meus leitores tenham tido um bom Festival do Meio do Outono.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
19 Set 2016

Amor e adversidade

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stou a escrever este artigo sexta-feira, 26 de Agosto. Há pouco mais de duas semanas, mais precisamente a 10 de Agosto – 7 de Julho, segundo o calendário chinês – comemorámos o “Dia dos Namorados” na China. Existem, como é sabido, diferenças entre os dois calendários e 2016 é o Ano do Macaco.
O Dia dos Namorados na China celebra-se nesta data, por causa de uma história que se passou há 2.600 anos atrás. Mas vejamos o que a Wikipédia tem a dizer sobre o assunto:
“A lenda é sobre a paixão de Zhin (織女) e de Niulang (牛郎). Era um amor proibido e, por isso, foram separados e enviados para margens diferentes do Rio da Prata. Uma vez por ano, no sétimo dia do sétimo mês lunar, um bando de gansos formava uma ponte e os dois amantes podiam reunir-se por um dia.”
Zhin era deusa e fiandeira. Niuland era humano e guardador de gado. O amor entre deuses e humanos não é permitido. Quando se apaixonaram, o rei dos deuses castigou-os. Como tivessem persistido e não temessem o castigo, o rei divino acabou por consentir no casamento.
Mas a tragédia ocorre depois do casamento. Zhin e Niuland, entregues à paixão, acabaram por descurar as suas obrigações. A qualidade dos tecidos fabricados por Zhin decaiu grandemente e o gado à responsabilidade de Niuland fugia. Perante esta situação o rei decidiu que só se veriam uma vez por ano, a 7 de Julho.
Este foi sem dúvida um castigo cruel que lhes trouxe infelicidade. Mas existem outros casais que podem estar juntos todos os dias e que mesmo assim são infelizes.
Chu Chun Kwok era agente da polícia. Há alguns anos atrás, no dia 19 de Julho de 2005, patrulhava a Po On Road, em Cheung Sha Wan, Hong Kong, quando foi atacado com uma faca que lhe cortou uma artéria do pescoço. O ataque aconteceu na sequência do controlo de identidade de Liu Chi Yung, suspeito de tentativa de roubo. Chu caiu de imediato, a esvair-se em sangue. Uma pessoa que ia a passar conseguiu dar o alerta que lhe salvou a vida. Mas Chu entrou em coma, devido à perda massiva de sangue, e está em estado vegetativo desde essa altura. Não pode falar, nem se pode mover, resta-lhe jazer na cama do hospital. Segundo os médicos as possibilidades de recuperação são ínfimas.
Após o acidente, Choi Yin Ping, a mulher de Chu, vai todos os dias ao hospital cuidar do marido. Ajuda na higiene, na alimentação e na fisioterapia a que Chu é submetido para evitar atrofia muscular. Este caso voltou a ser notícia porque Choi chegou finalmente a acordo com o Governo de Hong Kong. Choi tinha processado o governo regional bem como o atacante. Exigia uma indeminização, mas o governo recusava-se a conceder-lha, à semelhança de Liu Chi Yung que alegou falência. Quando finalmente se chegou a um acordo, Choi declarou,
“Posso voltar à minha vida normal. Já não tenho de travar esta batalha.”
Embora Chu tenha sofrido ferimentos muitos graves, o Tribunal só o condenou Liu a 10 anos de prisão. Independentemente da justeza da sentença, há outro aspecto a salientar. Liu foi posto em liberdade condicional em 2011. Ou seja, só cumpriu seis anos de prisão, tendo ficado em regime de liberdade condicionada desde 2011.
A questão é simples, mas vale a pena analisar o contexto. O objectivo da lei criminal é manter a justiça. Assim que o réu é condenado o caso fica encerrado. Nem a vítima, nem os seus familiares, devem procurar vingança contra o réu. A lei previne o ajuste de contas.
A liberdade condicional é um instrumento do sistema legal. Permite que o condenado saia da prisão, sob certas condições, e ajuda a impedir a sobrelotação das prisões. É também um incentivo para que o prisioneiro tenha um bom comportamento enquanto está detido. Ajuda a diminuir o grau de dificuldade na gestão das prisões. Do ponto de vista social, é uma boa medida.
Liu nunca mais cometeu nenhum crime depois de ser libertado. Mas não tem dinheiro para indemnizar Chu. No entanto, desde o ataque Chu tem permanecido no hospital. As hipóteses de recuperação são praticamente nulas. Parece-vos que uma pena de cinco a seis anos tenha sido justa face à situação que criou a Chu? A resposta é óbvia. Não é de admirar que a mãe e a mulher de Chu afirmem,“nunca o perdoaremos.”
Embora possamos não concordar com o sistema legal, temos de lhe obedecer. Todos os sistemas têm prós e contras, não são perfeitos. Os familiares de Chu continuam muito revoltados, mas não há nada que possam fazer.
Mas podemos olhar para esta história de outro ângulo. Desde que Chu foi atacado Choi nunca o abandonou, continua a amá-lo apesar da sua situação. O grande amor que os liga aquece-nos a alma.
A atitude de Choi faz-me relembrar o verdadeiro significado do casamento. O padre pede que o casal prometa fidelidade e dedicação um ao outro, independentemente das adversidades que possam surgir nas suas vidas, deverão permanecer unidos. Chu e Choi continuam juntos. Mantiveram a sua promessa. E Choi tem permanecido fiel nesta situação tão difícil em que se encontra desde 2005. Embora o Dia dos Namorados na China já tenha passado, congratulemos Chu e Choi, e façamo-los sentir que apreciamos o seu amor.
“Feliz Dia dos Namorados.”
Rezemos por Chu, pedindo a Deus que o abençoe e o ajude a recuperar o mais depressa possível.

Consultor Jurídico da Associação Para a Promoção do Jazz em Macau
5 Set 2016

Médicos de Hong Kong enfrentam mudanças

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 8, o website “www.scmp.com” anunciou a conclusão da discussão da adenda à proposta de lei sobre o “Registo de Médicos”. Foi resultado de uma Segunda Leitura, que teve lugar no Conselho Legislativo de Hong Kong. Está concluída mais uma etapa do processo inerente à aprovação da proposta de lei. Mas, de facto, não são notícias por aí além, porque apenas 32 horas separam este elenco legislativo do final do seu mandato. No caso de não se conseguir concluir todos os procedimentos necessários à aprovação da proposta de lei, o novo Conselho Legislativo, que tomará posse em Setembro, terá de pegar no processo a partir da estaca zero. Todo o trabalho desenvolvido pelo actual Conselho terá sido em feito em vão.
Uma das razões que justifica a lentidão da discussão da proposta de lei, assenta numa campanha de obstrução desencadeada pelo Dr. Leung Ka-lau, o delegado responsável pelo sector da saúde. Leung pediu constantes adiamentos à discussão.
“O processo vai ser demorado. O debate continuará na próxima reunião do Conselho Legislativo, a realizar quarta-feira” declarou o Ministro da Saúde, Dr. Ko Wing-man.
A proposta pretende atrair mais leigos para o Conselho Médico de Hong Kong, que passará a ter um total de 32 membros. O Governo espera que esta proposta de lei aumente a credibilidade deste Conselho, sobretudo no que respeita à capacidade de gerir e dar resposta às queixas de mau atendimento médico. Os grupos que defendem os direitos dos utentes também estão a favor de uma maior transparência.
Um dos casos que provocou mais celeuma foi a morte do filho do conhecido cantor Peter Cheung e da famosíssima Eugina Lau. Este caso data de 2005. O bebé morreu 24 horas após o nascimento. O casal apresentou queixa ao Conselho Médico, acusando o médico assistente de negligência. O julgamento só teve lugar em Maio de 2014, nove anos após o sucedido.

O resultado da Segunda Leitura da proposta de lei expressou-se da seguinte forma, 53 votos a favor, 8 contra e 4 abstenções. Este resultado indica que existe uma forte probabilidade de a proposta ser aprovada durante a sessão da próxima semana.
Actualmente existem cerca de 13.000 médicos em Hong Kong. O Conselho Médico é composto por 28 membros, metade dos quais são eleitos pela classe médica, sendo os restantes indigitados pelo Governo. A proposta de lei pretende a criação de mais quatro membros, a serem indigitados pelo Governo e provenientes de áreas não relacionadas com a saúde, ficando assim em minoria os membros eleitos pela classe.
Todos sabemos que para se ser médico é preciso estudar imenso. Não é qualquer um que o consegue. Em Hong Kong, são necessários pelo menos seis anos para formar um médico e durante este período os estudantes desfrutam apenas de um mês de férias anuais. Para além disso os médicos estão sujeitos a uma enorme quantidade de normas que regulam as suas condutas profissionais. Ficando em minoria no Conselho Médico, a autonomia da classe será afectada. É, pois, compreensível o seu mal-estar.
Um dos deveres do Conselho Médico é a definição de modelos processuais. Estes modelos não são apenas académicos, estendem-se às competências profissionais. Este corpo de conhecimentos e capacidades não será facilmente entendido por um homem de leis. É por este motivo que o melhor regulador de qualquer classe profissional é um organismo constituído pelos seus próprios membros. Neste sentido, a indigitação de quatro elementos oriundos da área do Direito, não será útil ao Conselho Médico.
Agora analisemos o ponto de vista do público em geral. O vulgar cidadão está alheio às dificuldades e exigências da profissão médica. Mas o senso comum diz-lhe que não é normal um caso como o de Peter Cheung arrastar-se durante nove anos. Talvez este caso tenha sido uma excepção, no entanto o website “www.hk.on.cc” publicou mais números no dia 29 do mês passado. Estes números demonstram que é preciso esperar pelo menos 17 meses para dar início a uma investigação por negligência médica. Se a situação envolve procedimento disciplinar contra o médico, então será preciso esperar mais 41 meses. Por outras palavras, vão ser necessários 58 meses para concluir uma queixa contra um médico. Será este tempo aceitável para o público em geral?
Se a proposta de lei for aprovada, mais de metade dos membros do Conselho Médico passará a ser indigitada pelo Governo. O medo de que o Governo passe a controlar o Conselho é compreensível. Alguns comentadores também sugerem que o objectivo deste controlo é diminuir a exigência nos exames de admissão, de forma a que médicos vindos de outros lugares, especialmente da China continental, pudessem vir a ser admitidos em Hong Kong. Com esta entrada de médicos vindos do exterior, o número destes profissionais aumentaria bastante em pouco tempo e a falta de médicos nos Hospitais de Hong Kong poderia ser resolvida rapidamente.

Mais uma vez todas estas preocupações são compreensíveis, mas parece que até ao momento, não existem provas claras de que seja este o objectivo do Governo.
Colocar mais quatro homens de leis no Conselho Médico poderá fazer aumentar a confiança do público, mas acabará com a “confiança mútua” entre o Governo de Hong Kong e a classe médica. As próximas duas semanas vão ser determinantes para o Governo fazer um balanço entre os interesses da classe médica e a confiança do público.
Como Macau vai criar em breve a sua própria Faculdade de Medicina e um Conselho Médico, este caso pode servir de exemplo para ponderar as diversas questões com antecedência.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

11 Jul 2016

Desastres e habitação precária

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] website “scmp.com” publicou, no passado dia 27, um artigo sobre um incêndio de grandes dimensões que deflagrou num edifício empresarial em Ngau Tau Kok, Hong Kong. O incêndio esteve activo durante 108 horas e só foi extinto dia 26. Dois bombeiros pereceram no local.
O fogo começou no 3º andar do edifício, numa zona alugada em segmentos para depósitos individuais.
Segundo a Wikipédia, o negócio que gere os depósitos individuais, também designados por “unidades de armazenamento” dedica-se ao aluguer de espaços (salas, cacifos, contentores e zonas exteriores), por regra, durante curtos períodos de tempo (contratos mensais). Os utilizadores deste serviço tanto podem ser empresas como pessoas individuais.”
O desastre acabou por atingir proporções tremendas porque, devido à antiguidade do prédio, não existiam aspersores de água de combate a incêndios. Além disso, havia demasiado material acumulado, evidentemente porque o senhorio tentou rentabilizar o espaço ao máximo. O 3º andar estava inteiramente destinado ao negócio de aluguer de espaços para armazenamento. A área foi dividida em mais de 100 “pequenas unidades”. Pesou ainda a dificuldade criada por uma série de acessos complicados a este piso e que também não permitiam uma saída fácil.
Mas se no local só existissem materiais armazenados o problema não teria sido tão grave. O pior é que quando o fogo começou foram vistas neste preciso local algumas crianças ocupadas com os trabalhos escolares e adultos a cozinhar. Foi também vista uma outra mulher em trajes de trazer por casa. Tudo indica que havia pessoas a viver no armazém. Portanto, o depósito estava a ser utilizado como habitação por algumas pessoas. Os contratos de arrendamento deste espaço proibiam os inquilinos de viver no local. Mas depois da hora de expediente, digamos depois das 18.00, o pessoal do armazém sai, ficando o local sem vigilância. Por isso é fácil a partir dessa hora a quem tiver acesso instalar-se no armazém. O que faz com que a condição expressa no contrato, de não habitar o local, não sirva para nada.
Os bens armazenados neste tipo de depósitos representam também outro problema. Ninguém conhece a natureza dos pertences que aí são guardados. Podem ser materiais perigosos. No momento da assinatura do contrato o senhorio não tem forma de saber que tipo de objectos vão ser armazenados. É usual mencionar-se no contrato a não permissão de guardar materiais perigosos, no entanto, na prática, verifica-se que posteriormente não existe qualquer inspecção. Os termos do contrato valem o mesmo que um papel em branco. São inúteis.
A polícia de Hong Kong já deu início à investigação. Compete-lhes apurar as causas do incêndio e determinar se efectivamente havia pessoas a viver no armazém.
Este negócio de aluguer de pequenas unidades de espaço para depósito tem vindo a desenvolver-se nos últimos 10 anos. Como os preços dos alugueres de casas em Hong Kong sobem constantemente, a maior parte das pessoas deixa de ter capacidade de os pagar. Uma família de quatro pessoas que viva num apartamento minúsculo não consegue guardar a maior parte dos seus pertences.
E é evidente que estes apartamentos minúsculos passam a ser a única opção para a maior parte das pessoas sem dinheiro para pagar uma casa em condições. Antigamente existia em Hong Kong o sistema de “apartamentos subdivididos”, ou seja, um apartamento de tamanho normal subdividido em partes mais pequenas que se alugavam individualmente. Mas mesmo assim estas rendas ainda eram altas e, por causa disso, quem não as podia pagar começou a mudar-se para estes espaços de depósito individuais. Não é de admirar que actualmente haja pessoas a viver nesses sítios.
É de salientar que este incêndio não só matou duas pessoas como serviu para pôr a nu um grave problema de habitação. O Governo de Hong Kong já anunciou que vai proceder a inspecções nestes locais para impedir que de futuro ocorram casos semelhantes. Parece ser uma boa medida enquanto se espera pela regulamentação do sector. No entanto, já se divisa um outro problema. Como este negócio de aluguer de unidades de armazenamento não está oficialmente registado, não é possível determinar o número exacto de locais deste género existentes em Hong Kong. E deste modo como é que se pode assegurar uma inspecção completa?
Os conteúdos do enquadramento legal serão também outro problema. Como foi dito, de momento não existe registo oficial deste actividade em Hong Kong. Será melhor que passe a haver? E qual o significado legal dos registos? Serão estes registos renovados anualmente? Será obrigatória a instalação de aspersores de água? De que forma se vai assegurar que os materiais armazenados não são perigosos nem existem explosivos? Estas são algumas das questões com que o Governo de Hong Kong terá de lidar.
Como sabemos, em Macau também existe este negócio. Como as rendas, também são muito altas em Macau, compreende-se que os senhorios tentem rentabilizar os espaços que têm disponíveis até ao seu limite. Aqui, também por vezes é difícil encontrar a saída de cada andar. As questões que foram atrás colocadas também se aplicam em Macau. Existem aspersores de água em cada andar? Existem pessoas a viver nestes depósitos individuais de mercadorias? Que tipo de materiais é que aí estão guardados? São questões em que, quer o Governo, quer os inquilinos, devem reflectir.
Este caso que se deu em Hong Kong é uma grande lição para Macau. A prevenção é sempre o melhor remédio. O que há a fazer é tirar ensinamentos desta situação para impedir que o mesmo suceda em Macau.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

4 Jul 2016

Turno da noite

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 27 de Maio o website de Hong Kong “orientaldaily.on.cc” fez saber que a Autoridade Hospitalar de Hong Kong passou a permitir que as enfermeiras grávidas, a partir das 32 semanas, sejam dispensadas dos turnos da noite. A medida entra em vigor a partir deste mês. Acrescente-se ainda que, enfermeiras grávidas de 28 semanas também poderão ficar isentas do serviço nocturno. No entanto esta medida não será adoptada em todos os hospitais, ficando dependente das necessidades das profissionais e dos recursos de cada estabelecimento.
Estas políticas foram implementadas na sequência do desmaio de uma enfermeira grávida de oito meses. a cumprir horário nocturno no Queen Mary Hospital, em Pok Fu Lam, Hong Kong. O presidente da Autoridade Hospitalar de Hong Kong, John Leung Chi-yan, declarou que os obstetras consultados tinham sido unânimes em afirmar que, uma gravidez a partir das 32 semanas comporta mais riscos para as mães.
A implementação destas políticas deverá beneficiar de imediato 950 enfermeiras. No entanto existe um deficit geral de 700 enfermeiros. Nos hospitais públicos o deficit ascende aos 250.
Do ponto de vista das enfermeiras esta medida só peca por tardia. A partir deste momento todas as enfermeiras grávidas de 32, ou mais, semanas serão dispensadas dos turnos da noite. Mas já existiria antes alguma lei de protecção às grávidas no que respeita ao trabalho nocturno?
Em Hong Kong, o artigo 15AA(1) da Lei do Trabalho, específica:
“Uma funcionária grávida pode, mediante apresentação de certificado médico, pedir dispensa de trabalhar com materiais pesados, de trabalhar em instalações que produzam gás, potencialmente prejudicial à saúde do bebé, ou ainda, de realizar qualquer trabalho prejudicial ao normal desenvolvimento da gravidez.”
Através da leitura deste artigo, podemos observar que as trabalhadoras grávidas podem ser dispensadas de serviços que prejudiquem a sua saúde e a do bebé. Acresce ainda que a grávida pode recusar certos serviços, desde que considere que podem lesar a gravidez.
No entanto, neste artigo da Lei do Trabalho de Hong Kong, podemos ler que se exige um certificado médico para sustentar os pedidos de dispensa. Se o patrão não concordar com o pedido de dispensa em relação a certos serviços, feito pelo médico da grávida, tem direito a requisitar uma segunda opinião.
Obviamente, que o alcance da secção 15AA(1) é a regulamentação da atribuição de tarefas, não a regulamentação de horários. Os turnos nocturnos são uma questão relacionada com os horários e, como tal, fora da alçada da secção 15AA(1). Não parece provável que as trabalhadoras grávidas possam evocar este artigo para pedir dispensa dos turnos nocturnos.
Em Macau, o artigo 56(1) da Lei do Trabalho (7/2008) específica:
“Durante a gravidez e nos três meses após o parto, a trabalhadora não pode ser incumbida de desempenhar tarefas desaconselháveis ao seu estado.”
Este artigo é suficientemente claro e não deixa margem para dúvidas quanto à obrigação de dispensa de serviços prejudiciais a grávida, estendendo-se essa protecção aos três meses pós-parto. Este postulado não exige qualquer certificação médica. No entanto, em caso de conflito, é sempre preferível que a trabalhadora apresente prova médica para sustentar as suas alegações.
Comparando os dois artigos de lei, o de Hong Kong e o de Macau, verificamos que são bastante semelhantes. Mas a Lei do Trabalho de Hong Kong especifica as tarefas que não devem ser atribuídas às grávidas: lidar com materiais pesados e trabalhar em instalações que produzam gás, potencialmente prejudicial à saúde do bebé. No entanto, a legislação de Hong Kong prevê a necessidade de um certificado médico para sustentar a dispensa de serviços, ao passo que a legislação de Macau não a estipula.
Como vemos, ambas as legislações regulam apenas a atribuição de tarefas a grávidas, a questão dos turnos nocturnos é matéria que se prende com a regulamentação de horários e não de funções. Assim, podemos concluir, que não existe legislação específica em Hong Kong sobre a isenção de horários nocturnos durante a gravidez. A Lei do Trabalho de Macau é semelhante (7/2008).
A actual medida da Autoridade Hospitalar de Hong Kong, tomada na sequência do desmaio da enfermeira, é sem dúvida favorável a todas as enfermeiras grávidas. É mais uma medida de protecção à gravidez. Deverão outros departamentos governamentais seguir o exemplo? Como esta medida não é uma lei, o seu efeito não abrange todas as áreas. É preferível que cada departamento oficial tome as suas próprias decisões. O balanço deve ser feito entre a necessidade de protecção às grávidas e as capacidades do sector.
A situação em Macau é mais complicada. Os casinos têm necessariamente turnos nocturnos, estão abertos 24 horas por dia. As mulheres também têm de trabalhar à noite. Será que os Casinos podem dispensar as trabalhadoras grávidas dos turnos nocturnos? Como não existe legislação sobre esta matéria, é conveniente deixar cada empresa decidir o que melhor achar. No entanto, o desmaio da enfermeira grávida demonstra claramente o desajuste da actual legislação do trabalho.

13 Jun 2016