Os Leões de Daniel

Foi levantada uma questão muito recentemente que deve merecer um pouco da nossa atenção: animais, ou seja, carnívoros, passarem a ser vegetarianos, reportando quase em exclusivo para aqueles mais perto de nós, evidentemente estamos a falar de cães e de gatos. De certa forma, o deixarmo-nos de comer uns aos outros é a mais elevada das utopias e também uma conquista redentora que poria fim ao ciclo sacrificial, só que quando esta proposta foi lançada alguma coisa de genuinamente atávico ficou em silêncio. O amor animal é um valor adquirido, tanto, e de tal forma, que não seria possível viver sem esse laço que partilhamos com viva intensidade e gratidão, mas será que todas as vidas que se abeiram da nossa devem por isso seguir os tramites humanos?

O antropomorfismo é seguramente uma aberração que não é entendida como desrespeito, e para que desejamos nós seres à nossa semelhança?! A resposta mais plausível vai até ao instinto de poder, que não se sabendo, fica suspenso nestas vontades, a modos de combate por um mundo “melhor”. Porventura a ausência de medo provocou em nós uma demência contagiante, altiva e “sonhadora”? O nosso conforto terá dado azo a uma perda de sentido vital, aquela matéria impulsionadora de todos os crimes, e não só, de toda a maravilha? Bem capaz de ser assim.

Esta transgressão chamada “dor de dentes” no corpo físico das gentes deve ser também alongada aos caninos dos nossos amigos, que mesmo não sendo cães (canino é para todos): ou devemos arrancar-lhos para que não mordam, e sobretudo, não denunciem a “atrasada” evolução desse delírio natural? Há de facto, e cada vez mais, espécies híbridas ao serviço inumando de «Sua Majestade o Homem» que já não têm garras, isto, porquê? Para não arranharem os sofás! – Alguns, coitadinhos, repletos de pêlo nórdico no abrasante sul quais fantasmas iridescentes vão até às más réplicas da espécie egípcia para não acumularem matéria orgânica, mas jamais tão distintas como aquelas dos Faraós, e tudo isto, parecendo sedutor, não passa de uma perversão que denuncia desprezo, utilitarismo, e miséria moral num tempo verdadeiramente de arrepiar. Quem gosta de animais – destas animas – que de tão esplêndidas nos incitam a contemplar a sacralidade feroz, sente-se brutalmente ultrajado e sem força para se opor a uma barbárie cor – de – rosa. Sofremos de muitas desertificações… é o trabalho, as relações, a vida, isto e mais aquilo, e projetamos os afectos como uma imposição moral para com qualquer vida, quer ela queira, quer não. As vidas grandes odeiam que o amor seja da ordem do entretenimento, pois que na sua economia do esforço não pode falhar face às leis severas, devemos partilhá-las como os segredos, e tal como eles, sentir-lhes a maravilha, o instante, o último reduto, a transluzente compaixão…

Quanto a Daniel, não desmereceu nem a Deus nem aos Leões por força da sua grande aura de profeta, mas também é certo que os carnívoros se repelem no momento de se consubstanciarem, os carnívoros, só instigados se matam uns aos outros, porém, um dos engenhos humanos foi o de apaziguar as feras, e desde tempos imemoriais as cítaras tocavam nos dedos dos heróis para as acalmar, é que elas são passíveis de hipnose, ficando rendidas, e de olhar fixo e imóvel perante a melodia. Depois de uma semana de transe imobilista elas estavam saciadas pela beleza ímpar de Daniel, mas mal as soltaram estas lembraram-se que tinham fome, e tragaram os imigos do profeta, cumprindo o destino da terra de Judá; e se as abnegadas vítimas cristãs delas não tiveram medo, nem por isso deixaram de ser mortas, pois que o desplante da fragilidade excessiva perante uma força em andamento, faz parecer aos olhos de um predador que estão doentes.

Tudo isto traz à lembrança um vegetariano «serial killer» que enaltecendo o desperdício conseguiu instalar a maior forma de terror de que há memória, e se voltarmos ao início, ainda nos vamos debater com práticas de bruxaria em versão litúrgica, de sangue bebido nos altares, só porque Noé plantou uma vinha. – Parece que sim! A condição das espécies não é “fofinha” e ainda menos, se levarem com este Humano pelos seus magníficos focinhos adentro repletos de usura e transgressão defeituosa. Infecundos, com fêmeas tomando a pílula, e machos eunucos, agora vegetarianos, que andamos a fazer com os animais? Não, não é por aqui! Os lobos têm fome. Fomos nós que assaltámos a pradaria.

12 Out 2021