António Cabrita Artes, Letras e Ideias Diários de PrósperoLegente de sombras Lê-se numa carta de Benjamin para Scholem: «(…) como afirma Kafka, existe uma esperança infinita, simplesmente ela não é para nós. Esta frase contém realmente a esperança de Kafka. É a fonte da sua irradiante serenidade». Essa pacificação chegará a Kafka, com certeza, da consciência de não haver traído o vector ético, pois a convicção de que viver a esperança não lhe tocará em sorte não o fez generalizar a sua “despossessão” para os demais. É um sinal de uma rara grandeza não querer contaminar com a sua descrença ou malapata o destino dos demais – o que inclusive talvez relativize a negatividade que o próprio Benjamin associava ao autor de METAMORFOSE. Cada poeta deveria adoptar esta lição ética e forjar um saudável distanciamento em relação à lucidez que calcina, pois se é necessária para revolver a terra também a semente o é, e quando há negrume identifica-o afinal um halo. Por esfiapada que esteja a esperança, em termos pessoais, há ainda um princípio de fidelidade que deve assegurar o elo, a transmissão. Sim, é uma bela coisa “deixar falar a linguagem” (Novalis) e isentarmo-nos de interferir com a palavra, mas isto deve ser matizado por momentos em que um carácter de urgência impõe que a palavra signifique e não seja apenas um estado de suspensão da vida ou um resíduo cantável de “deus ausente”, e antes materialize um grito que – esquecida a vidência -, quer apenas lembrar o horror da fragilidade humana e o modo como a descuidamos. Comecei por apreciar o Pedro Teixeira Neves pintor. O que vai sendo raro, ele deixa-se levar pela “inteligência da mão” e deixa que os materiais e a energia cromática validem as suas composições, sem lhes impôr uma ideia. Aqui, é ainda o romântico que pulsa. Depois, achei graça à leveza de poemas que vi citados do seu último livro OS TRABALHOS MAIS LEVES (Húmus, 2021), onde as palavras conversam e brincam entre si, numa linhagem que nos recupera O’Neill e Henrique Leiria (A vulnerabilidade toca a todos: «nos bicos dos pés/ alçou-se/ nos bicos dos seios/ calou-se») , e onde o humor e a desconstrução cultural caminham paralelamente (Yazujirô: «gostava/ de a ter/ ao nível/ do plano de câmara ozu.»), às vezes com efeitos de grande subtileza que revelam inteligência do ofício (o que está muito para lá de ter graça), como nestes dois versos que aludem a um orgasmo: «exsudação de figos/ no prumo de agosto». E, lido o livro, vi que estes pormenores se repetiam. Tomei-te então de lata e, como estou em terras longínquas onde não chegam os livros portugueses, pedi-lhe outros livros. E o Pedro mandou-me dois. Pude então ler A PARTE QUE NOS TOCA, o seu livro anterior (Labirinto, 2020). É um livro nos antípodas de OS TRABALHOS MAIS LEVES, em termos estilísticos e temáticos, como se fora outro autor a escrevê-lo, e isso não apenas lhe acrescentou ecletismo como seriedade, ficando nítido que não se atém a fórmulas ou a uma “voz” imperturbavelmente mineral. A PARTE QUE NOS TOCA é de uma densidade que contrasta com a airosa fluência de OS TRABALHOS MAIS LEVES (dedicado aos hílares trabalhos do amor) e mostra um poeta que sabe “o seu a seu tempo”, alternando o lúdico e o combate contra a trivialização que hoje importa travar. E fez-me descobrir um poeta confiável, no sentido em que, dominando os seus materiais, não perdeu nem o sentido da “gravitas” nem essa reversibilidade entre a vida e a literatura, tão necessária para romper a vazia tentação dos literatos. A PARTE QUE NOS TOCA é um longo poema, de fôlego narrativo e verso largo, dividido em três partes (Exílio, Travessia, O Princípio da Imortalidade), onde se mostra a anti-epopeia dos refugiados que nos chegam de África e do médio oriente para se finarem em balsas de morte no Mediterrâneo. Os primeiros três versos soam assim: «prende-se ao coração/como animal de trela/ a terra a que chamamos mãe» e não deixam de martelar-nos espírito dentro os seus mais de mil versos, que correspondem ao lento escalpe da peregrinação para a morte. Não há neste “cântico” maiúsculas porque face a este horror são ignóbeis as hierarquias e é-nos pequenino o coração que observa. Tenho mais a sentir do que a dizer sobre este grito-que-nos-toca, a não ser que me espanta realmente que o oportuno carácter de urgência deste poema, de excelente factura técnica, tenha encontrado um caviloso silêncio (ressalvo a revista Caliban, que o entrevistou); sinal de que já não se acredita que a poesia possa ter um papel social ou qualquer dimensão que a torne relevante e necessária. Quando um bom poema como este, que não se faz só das incandescências oraculares e ousa declarar-se como respiração de um testemunho, numa boa bofetada na bochecha da indiferença política, cobardemente, não logra qualquer eco é porque a sociedade está doente e todas as tripas encortiçados. Cito, do fragmento em prosa (poética) deste “cântico” (Travessia) – em prosa porque estamos então na “aventura” de Job, no momento em que atravessa o mar intérmino – selvagem, sem descanso ou cesura – da sua provação: «e foi de noite, noite mais noite, que job e três amigos, encharcados de escuridão, se fizeram fantasmas fortuitos ondulando os sonos dos algozes e como coágulo romperam as primeiras e precárias ondas da incerteza e do desconhecido (…) deixando que a sorte rolasse os seus dados. (…) conheceram a negridão das águas paradas, vidro transparente como a espuma dos ossos, amarga e sideral se eternizando, a boca salgada como se picada por escorpiões, a pele queimada, chamamento de chaga, as cabeças a ferver de tanta bebedeira de luz, o frio à noite rasgando o pensamento, mandíbula.» Obrigado Pedro por nos lembrares que não basta a empatia-diferida, falta a dignidade de dar viva voz à indignação.