Andreia Sofia Silva EntrevistaKerry Brown, autor de “China Through European Eyes”: “A China continua a ser um mistério” Kerry Brown, professor de estudos chineses no King’s College de Londres, acaba de lançar a obra “China Through European Eyes”, que reúne escritos e ideias de missionários, exploradores e filósofos sobre a China dos últimos 800 anos. O académico realça a enorme importância que Macau teve na ligação do país ao mundo, sobretudo ao longo do século XVI, e de como esse papel deveria ter mais destaque O seu livro compila escritos e ideias de europeus sobre a China nos últimos 800 anos. Neste processo foi difícil para si juntar num só livro tantas ideias? Sim, poderíamos incluir uma enorme quantidade de escritos e ideias. Mas queria incluir os trabalhos das figuras mais influentes, não foram especialistas na China, mas que são sobretudo intelectuais europeus que ficaram famosos em outras áreas, mas que escreveram sobre o país, como Hegel, Voltaire ou Simone de Beauvoir, Carl Jung ou Max Weber. Todos eles foram muitos influentes em áreas que nada têm a ver com a China. Há também personalidades que desenvolveram um trabalho mais ligado ao país. Creio que muito poucos dos filósofos europeus que escreveram sobre a China estiveram de facto no país. Como explica o facto de a China ter estado tão presente no imaginário destas personalidades? Os primeiros contactos deveram-se ao comércio, e pelo facto de a China ter produtos que interessavam aos comerciantes europeus, sobretudo para as companhias do Reino Unido e da Índia, que foram muito activas neste comércio durante o século XVII. Antes tinham sido os portugueses. Os britânicos sempre tiveram muito interesse no comércio com a China. Temos também as missões cristãs na China que decorreram ao longo do século XVI, e temos Matteo Ricci como um dos grandes exemplos, nome que também incluo no livro. Depois verificamos um grande interesse pela cultura e filosofia chinesas nos trabalhos de Voltaire, por exemplo, e outros autores que desenvolveram um grande interesse pelo confucionismo. Falando da importância de comércio para o conhecimento do país. Macau teve aqui um papel fundamental também. Absolutamente. Matteo Ricci foi uma figura crucial para este livro e para a ligação dos europeus com a China. Esteve em Macau, embora grande parte da sua carreira tenha sido feita na China. Mas Macau teve uma enorme importância, tivemos os jesuítas que tiveram influência nos escritos e pensamentos de autores como Voltaire e outros. Macau é um lugar histórico de cruzamento e penso que há uma falta de compreensão e de exposição da sua importância [neste contexto]. O território era mesmo o ponto chave na ligação entre a China e o mundo exterior ao longo do século XVI, e Hong Kong não aparece até bem mais tarde, e quando tal acontece é em circunstâncias muito diferentes. Então este livro não fala muito de Macau, mas penso que este território, enquanto região que permitia um acesso à China, deu muitas informações aos que escreveram [sobre o país] e que surgem neste livro. Há muita literatura e estudos sobre Macau, mas penso que é um trabalho que necessita de ser mais exposto. Em relação aos chineses que viajaram para a Europa, foram decerto em muito menor número se compararmos com os europeus que viajaram para a China. Porquê? Havia emigração a partir da China, e muitos dos comerciantes europeus cruzaram-se com chineses em alguns portos que falavam relativamente bem inglês. Não era algo usual à época. Havia missionários que convidavam alguns chineses a viajarem até à Europa. Havia alguns chineses que vinham de facto ao continente, mas os dados históricos são muito limitados. Eles vinham, mas há poucas evidências, por exemplo, de chineses no Reino Unido até um período relativamente tardio. E julgo que isso se deve ao facto de a frota marítima inglesa ser superior, então os chineses teriam mais dificuldades em fazer estas viagens até à Europa. E também se deve ao modelo económico na China, pois durante a dinastia Ching o modelo económico era mais virado para o mercantilismo, muito contido, então não havia um forte impulso para procurar recursos fora do país. Mas nos últimos 500 anos muitos mais europeus foram à China do que o oposto, mas não é isso que se passa agora, e essa é uma transformação histórica. Já no século XX o panorama dos exploradores ou missionários que iam para a China mudou. Como descreve as grandes diferenças face ao período imperial? O período de governação de Mao Zedong trouxe, de facto, grandes barreiras [às viagens]. Não era fácil viajar até ao país, penso que Simone de Beauvoir levou três ou quatro dias a chegar, passando por locais no Médio Oriente e Índia, e depois viajou para a China via Hong Kong. O acesso à China nesta altura fazia-se sobretudo por convite e não era fácil. Os casos que inclui no livro são de pessoas que foram convidadas pelo Governo e que faziam parte de delegações que visitavam o país. Os escritos de Simone de Beauvoir são relativamente simpáticos em relação à China, Roland Barthes é talvez menos simpático em relação ao país, mas não é frontalmente crítico. Não se pode notar, nestes escritos, um forte criticismo face ao que viram, e muitos terão aceite que o lhes foi mostrado. Mas estas palavras tiveram um grande impacto cá fora, porque o acesso ao país era bastante limitado. A grande questão é, 800 anos depois, e com todos estes escritos, continuamos a não compreender a China na totalidade? Diria que é impossível conhecer qualquer país na sua totalidade. Eu próprio não compreendo o Reino Unido completamente. Mas, claro, que as mudanças que ocorreram na China nos deram uma outra dimensão sobre o país, porque agora é um país comunista com uma economia mais virada para o capitalismo. É um país mais proeminente do que alguma vez foi, então isto dá-nos novas ideias. A ideia que temos sobre a China não é estática, e a ideia que Voltaire, por exemplo, tinha do país não é aquela que temos hoje. Há elementos que se mantém iguais, como a ideia de um Governo centralizado ou da existência de um sistema burocrático. Alguns elementos da cultura chinesa e da sua importância para a identificação dos chineses. Mas sim, a China continua a ser um país com algum mistério. Mas esta questão não é nova e acontece há muitos séculos. Os media e a globalização mudaram a forma como vemos a China, além de que os chineses viajam agora muito mais. De que forma estes factores nos alteram a visão sobre o país? Esses factores trouxeram uma maior complexidade à questão. Há mais fontes de informação sobre a China neste momento, e sem dúvida que a covid-19 alterou a forma de viajar de chineses, incluindo estudantes, que vinham para o Ocidente. Há novas perspectivas e depende sempre de cada pessoa. Não há uma única resposta para aquilo em que o chinês acredita. Claro que o Governo incute um único sistema de pensamento nas pessoas, mas há diferentes crenças e complexidades. Essa globalização de que fala só mostra que a China tem hoje uma forte presença a nível mundial em relação ao passado e só isso trouxe novas perspectivas. Os encontros da Assembleia Popular Nacional terminaram recentemente. Qual o caminho que a China irá fazer nos próximos meses? Já antes da invasão da Ucrânia havia um cenário de muita incerteza. Este vai ser um ano difícil e o mercado chinês está a passar por um período de transformação. A previsão de crescimento económico de 5,5 por cento não é má, mas tudo depende da qualidade desse crescimento. As autoridades devem pensar em questões de investimento, saúde pública, serviço social ou alterações climáticas. É bom que apresentem uma previsão positiva de crescimento porque o resto do mundo está a enfrentar grandes desafios. Embora mantenham relações algo pragmáticas com a Rússia, não acredito que estejam satisfeitos com o que está a acontecer na região da Ásia Central. A grande questão é se vão manter esta lealdade. O comércio entre a Rússia e a China tem crescido nos últimos anos. Como será a sua evolução com esta guerra? É provável que cresça, porque a Rússia vai passar a ter opções muito limitadas em matéria de energia e de comércio. Mas tudo depende do nível de lealdade que a China vai continuar a ter em relação à Rússia, e penso que não vai querer estar muito envolvida. Se Putin avançar para um ataque mais nuclear a China não vai conseguir manter-se em silêncio e ficar no banco. Agora mantém uma posição de neutralidade, mas a certo ponto a situação vai ficar desconfortável. Historicamente, a China e a Rússia sempre tiveram relações difíceis. Para já, a China vai gerindo a situação, mas quantos mais danos se verificarem, mais difícil será manter essa posição.