Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasQue o resto ortigas o cobrem [dropcap]M[/dropcap]arx, Darwin e Freud descobriram, cada um a seu modo, que a história era uma mentira. Causaram, por isso mesmo, atordoamentos a muitas gerações. Nos nossos dias, estes curiosíssimos prodígios já são raros ou mesmo inexistentes. Ninguém hoje verdadeiramente se incomoda com as vertigens que nos ligam ao passado, nem com os sonhos que projectariam as cores do arco-íris nas telas do futuro. Vivemos tempos paródicos que levam muito boa gente a crer que a contaminação pandémica é coisa de fábula noctívaga e que a Europa, uma das últimas utopias, se tornou no vulcão siciliano de que Júlio Verne se esqueceu em casa. Ao contrário da minha gata, a internet não sabe falar, mas se falasse talvez nos confidenciasse que a história é de facto uma mentira pegada, coisa de ‘stand-up’. Tratá-la-ia por larva, o que em biologia corresponde ao estágio imaturo pré-embrionário de um animal que ainda não atingiu a sua maturação sexual. Nos tempos em que vivemos, mentir deixou de ser um problema. Acabámos de chegar à maturação celestial. Trump fê-lo três mil vezes no ano passado, segundo a CNN. Mente tão avidamente que a mentira deixou de ter sentido. Todos sabemos que a mentira atrai dimensões de actor, não é verdade? Searle caracterizou na mentira uma coexistência entre a dimensão da fraude e a dimensão de uma encenação em que não transparece qualquer intenção de enganar. O dizer-verdadeiro é, em última análise, um fazer-crer ou, se se preferir, um pacto como aquele de quem lê ficção e exige do lado do escritor verosimilhança. Tal como os delírios de Derrida deram a ver em Histoire du mensonge, é praticamente impossível provar que alguém mente, mesmo que seja óbvio que não tenha dito a verdade. Torna-se sempre plausível alegar múltiplas alternativas entre o que foi dito, o que haveria a dizer, o que se quereria dizer, os efeitos do que se terá dito, o contexto do parece ter sido dito, a intenção inicial, a objecção intermédia, o furação da véspera, o mal-estar intestinal, etc, etc. Moral da história: a retórica do dia-a-dia é um jogo de damas sem tabus, nem tabuleiro. Pondo de lado estas considerações próprias de quem anda de jacto privado no Atlântico à procura de deus, convém, no entanto, referir que a verdade adoeceu. Estará mesmo em coma, segundo as autoridades sanitárias. Pessoas inteligentes como o senhor Foucault já o tinham previsto há mais de quatro décadas. Vejamos: a verdade centra-se em discursos legitimadores, porque necessita constantemente de bases, sejam elas institucionais, científicas ou tão-só de sujeitos que ainda consigam defender que a terra não é plana; submete-se à incitação dos mil poderes que vincam as sociedades com dentes cerrados; depende das escalas de difusão e de consumo (veja-se o caso da publicidade pós-‘lateral thinking’), para além de ser veiculada através de máquinas sociais que ninguém controla ao modo dos carrinhos de choque. A rematar, segue-se a apoteose final: a verdade passou a respirar a bordo de um mundo onde o sentido (ou a sua ausência) passou a ter muito mais força do que ela própria, coitada. Num território que se veja ao espelho como livre, ou seja, que não caiba em cabecinhas como as de um Erdogan ou de um Putin, a verdade viverá inevitavelmente num mexido aquário de posições e de possibilidades cruzadas. A contaminação andará sempre por ali exposta ao virar da esquina. Isto de ser livre tem o seu preço e o seu peso, já se sabe. De qualquer maneira, tal como Hannah Arendt deixou escrito, convenhamos que as mentiras foram sempre consideradas como “ferramentas para o estado e para os estadistas”, ainda que, “quanto mais bem sucedido for um mentiroso, maior será a probabilidade de que acabe por ser vítima das suas próprias invenções”. Não iria tão longe, pois o meu optimismo é muitíssimo mais reservado. Talvez a palavra final de Fernando Pessoa aclare este mistério que tanto nos atiça a urgência de mentir: “Se tudo o que há é mentira,/ É mentira tudo o que há./ De nada nada se tira,/ A nada nada se dá.” (…) “Mais vale é o mais valer,/ Que o resto ortigas o cobrem/ E só se cumpra o dever/ Para que as palavras sobrem.”. Obras referidas nesta crónica: Arendt, H. Verdade e Política. Relógio d´Água, Lisboa, 1998. Derrida, J. Histoire du mensonge : Prolégomènes, Galilée, Paris, 2012. Foucault M. Microfísica do poder, Graal, S. Paulo, 1979. Pessoa, F. Poesias Inéditas (1930-1935). Ática, Lisboa, 1955. Searle, John R. Intencionalidade. Um ensaio da filosofia da mente. Relógio d´Água, Lisboa, 1999.
Hoje Macau China / ÁsiaIdeologia | Xi enaltece ideais de Marx apesar de abertura do país ao capitalismo [dropcap style=’circle’] O [/dropcap] Presidente chinês, Xi Jinping, enalteceu os ideais de Karl Marx, que teoricamente continuam a reger o país, onde milhares de operários morrem anualmente em acidentes laborais, numa celebração do bicentenário do nascimento do filósofo alemão. “Como um espectacular amanhecer, o marxismo ilumina o caminho da humanidade”, afirmou Xi, no Grande Palácio do Povo, local que acolhe os mais importantes eventos políticos da China, situado junto à Praça de Tiananmen. Durante um discurso de uma hora e meia, proferido perante personalidades militares e civis da China, Xi classificou Marx como “o maior pensador dos tempos modernos”. “Duzentos anos depois, apesar das enormes e profundas mudanças na sociedade humana, o nome de Karl Marx continua a ser respeitado em todo o mundo e a sua teoria continua a ser iluminada pela luz da verdade”, lembrou Xi. Um enorme retrato do filósofo alemão, nascido em 5 de Maio de 1818, ocupou o espaço normalmente reservado aos símbolos do regime chinês no Grande Palácio do Povo. Desde que ascendeu ao poder, em 2013, Xi Jinping tem vindo a promover o estudo do marxismo entre os altos quadros do Partido Comunista, visando um “regresso às raízes”. O segundo centenário do nascimento de Karl Marx foi comemorado na China com várias actividades, incluindo a organização de exposições ou a reedição de clássicos marxistas como o “O Capital” ou “O Manifesto Comunista”. Segundo a sua Constituição, a China é “um Estado socialista, liderado pela classe trabalhadora e assente na aliança operário-camponesa”. O reverso da moeda Em 1979, no entanto, o país abriu-se à iniciativa privada e ao investimento estrangeiro e é hoje a segunda maior economia do mundo, após quatro décadas a crescer, em média, quase 10 por cento ao ano. Desde então, centenas de milhões de chineses saíram da pobreza extrema, num “milagre” sem precedentes na História moderna. No entanto, segundo contas da Organização Internacional do Trabalho, o operariado chinês regista, em média, cerca de 70.000 mortes por ano devido a acidentes no trabalho – 192 óbitos por dia. A desigualdade social é também uma das principais fontes de descontentamento popular no país. O rendimento ‘per capita’ em Pequim ou Xangai, as cidades mais prósperas do país, é dez vezes superior ao das áreas rurais, onde quase metade dos 1.750 milhões de chineses continua a viver.
Diana do Mar EventosFAM | Cartaz assinala bicentenário do nascimento de Karl Marx Foi ontem apresentado o cartaz do Festival de Artes de Macau (FAM) que vai decorrer entre 27 de Abril e 31 de Maio. Do teatro, à música, passando pela dança, a programação deste ano tem um pouco de tudo. Os bilhetes vão ser postos à venda a partir do próximo Domingo É com a peça de teatro “Das Kapital”, uma nova versão do clássico de Karl Marx, que abre o pano do XXIX Festival de Artes de Macau (FAM). O espectáculo, levado à cena pelo Centro de Artes Dramáticas de Xangai, foi escolhido para assinalar o bicentenário do nascimento do filósofo alemão. A peça contem “elementos próprios de Macau, ilustrando as duas faces do capital, com recurso ao humor negro.” O cartaz do FAM deste ano, apresentado ontem pelo Instituto Cultural (IC), é subordinado ao tema “origem”, como simbolismo de “fonte de vida” e apresenta 26 propostas de uma dezena de países e territórios, incluindo Reino Unido, Portugal, Alemanha, Israel, Japão ou Coreia do Sul, num total de mais de 100 eventos. O FAM abre com teatro e fecha com dança. “13 Línguas” foi o espectáculo escolhido para o encerramento. Originalmente uma encomenda do Festival Internacional de Artes de Taiwan de 2016, “13 Línguas” chega este ano ao público de Macau pelas mãos da companhia Cloud Gate 2. Entre os principais destaques do cartaz figuram “Mulheres de Tróia”, uma peça do mestre de teatro contemporâneo Tadashi Suzuki que mostra a miséria e a desolação do Japão no pós-guerra, bem como a adaptação d’ “O Processo”, a obra clássica de Franz Kafka, apresentada pela companhia sul-coreana Sadari Movement Laboratory. No mesmo domínio artístico, sobressai a “Acompanhante”, obra de Eisa Jocson, uma coreógrafa e bailarina das Filipinas, que explora o corpo feminino e a política de género. A companhia Subject_to Change, do Reino Unido, apresenta o premiado “Lar Doce Lar”, desafiando os participantes a construir casas em cartão e a edificar uma cidade. Outras propostas incluem uma adaptação da obra “A Noite Antes da Floresta”, do famoso dramaturgo francês Bernard-Marie Koltès, apresentada pela Associação de Arte Teatral Dirks, em colaboração com uma encenadora irlandesa e a sua equipa internacional de actores; ou a co-produção “Júlia Irritada”, baseada na peça do dramaturgo sueco August Strindberg e representada, com um toque sarcástico, por actores de Macau e Singapura, que foi, aliás, um encomenda do FAM ao grupo de Singapura Nine Years Theatre. Estaleiros e Migrantes em foco Com Macau como pano de fundo, destaque para duas peças de teatro: “Pôr-do-Sol nos Estaleiros”, uma proposta da Dream Theater Association, que conta a história da indústria de construção naval do território, e “Migrações”, criada pelo Teatro Experimental que tem como protagonistas trabalhadores indonésios. Há também, como é habitual, Teatro em Patuá, com o Grupo de Teatro Dóci Papiáçam di Macau a apresentar este ano “Qui di Tacho?” (Que é do Tacho?), à boleia da recente designação de Macau como “cidade gastronómica”, para ver nos dias 19 e 20 de Maio. O teatro tem, de resto, lugar de relevo, em diferentes formatos: há teatro físico, por via do “Rua Vandenbranden, 32”, do conceituado grupo belga Peeping Tom; teatro-dança e instalação em “Murmúrio de Paisagem”, a cargo da Associação de Artes e Cultura Comuna de Pedra. De Portugal, chega “Parasomnia”, teatro imersivo com recurso a instalações de imagens e sons de Patrícia Portela que se baseou no ensaio incompleto “Sobre o sono, o despertar e a ausência de sonhos”, da autoria de Acácio Nobre. Ao programa do FAM junta-se ainda a nova produção da coreógrafa local Tracy Wong, “As Franjas Curiosas – Explosão da Caverna”, que combina dança, artes visuais e instalação. “Esponja”, da companhia “Turned On Its Head” (Reino Unido) e “Quando Tudo Era Verde”, da The Key Theatre (Israel) entram na secção dos programas para a toda a família, a par com “À Procura da Memória”, da associação artística local Cai Fora, e a “Mostra de Espectáculos Ao Ar Livre”, que junta uma série de grupos, entre os quais a Casa de Portugal. O FAM também revisita, como sempre, os clássicos das artes tradicionais: “O Sonho da Câmara Vermelha”, peça de ópera cantonense clássica, é uma das principais sugestões, a par com a “Mostra de Clássicos Chineses Quyi”, que apresenta os destaques dos últimos 200 anos da história da arte Quyi de Guangdong através de canções narrativas naamyam e da percussão baatyam. O cartaz inclui ainda dois concertos (um do maestro escandinavo Henning Kraggerud e a Orquestra de Macau; e outro, de Fado, que junta o maestro Liu Sha e a Orquestra Chinesa de Macau) e uma exposição dedicada a Marc Chagall, um dos principais nomes do Modernismo. “O Festival de Artes de Macau está mais diversificado e mais em contacto com a realidade, tendo expandido a escala do público-alvo, intensificando mais produções locais, manifestando ainda um papel mais relevante na cooperação e intercâmbio artístico, bem como na formação de talentos locais”, afirmou a presidente do IC, Mok Ian Ian. O FAM conta com um orçamento de 22 milhões de patacas, menos três por cento relativamente à edição anterior. No entanto, Mok Ian Ian desvalorizou o corte. “Para aderir à política de utilização racional dos recursos financeiros, assumimos uma atitude prudente na gestão. Não obstante, a qualidade não será influenciada”. Paralelamente ao festival propriamente dito decorre uma série de actividades, como ‘workshops’, palestras com artistas ou projecções de filmes. Ambos os programas encontram-se disponíveis em www.icm.gov.mo/fam