Joshua Erlich, autor de “The East India Company and the Politics of Knowledge”: O conhecimento como legitimidade

Em “The East India Company and the Politics of Knowledge”, livro publicado pela Cambridge Press, Joshua Erlich, docente do departamento de História da Universidade de Macau, prova que a Companhia Britânica das Índias Orientais foi mais do que uma empresa meramente comercial, recorrendo ao conhecimento para legitimar a sua presença e acção na Índia britânica no período colonial

 

O livro “The East India Company and The Politics of Knowledge” [A Companhia das Índias Orientais e a Política do Conhecimento] nasce da sua tese de doutoramento e traz-nos a ideia de que o investimento feito pela empresa serviu para legitimar a sua presença na Índia britânica. Como decorreu esse processo?

A empresa esteve sujeita a todo o tipo de pressões e transformações entre finais dos séculos XVIII e XIX. Foi uma empresa comercial que começou a conquistar parcelas de território [na Índia] e a ter de conciliar estes dois papéis, ligados ao comércio e à soberania. Era algo difícil de fazer, sobretudo de justificar, e é aí que entra a questão da credibilidade. Era necessário mostrar, aos olhos da classe política britânica e indiana, que a governação [britânica, através da Companhia] era boa e que era necessário manter os privilégios comerciais e toda a estrutura empresarial. No período de Warren Hastings [primeiro governador-geral britânico da Índia entre 1772 e 1785] dominava a ideia de conciliação junto das classes políticas do império, do Reino Unido e da Índia, através do patrocínio a académicos e concessão de apoios a algumas pessoas ligadas à própria elite indiana. Isso dava credibilidade à Companhia, sobretudo junto da classe política. Toda esta ideia de credibilizar e legitimar as acções da Companhia através do conhecimento e da conciliação de diferentes forças políticas começou, de facto, com [Warren] Hastings e durou cerca de seis décadas, ou seja, durante grande parte da existência da Companhia.

Esta estratégia de conciliação chegou depois ao fim. Porquê?

Foi desafiante [mantê-la] em alguns períodos. A Companhia começou a conquistar cada vez mais território e passou a dominar todo o poder político na Índia britânica. Em meados de 1830 isso significava algo novo, [então] a classe política passou a exigir mais da Companhia, [nomeadamente] uma boa governança. A Companhia decide então partir da ideia de conciliação das elites para a promessa de educar o público, apostando na educação de massas, sendo que esta ideologia levou a uma série de debates em torno da educação. Não só houve investimento, mas também uma grande discussão [sobre este sistema], chegando-se à ideia de que um bom governador seria aquele que educava o seu povo na Índia. Essa é a última fase do compromisso [da Companhia] em relação à área do conhecimento.

O investimento em conhecimento e educação funcionava, assim, como argumento para que o Reino Unido pudesse justificar a conquista de territórios na Índia e a sua administração.

Exactamente. Por um lado, tínhamos uma Companhia que conquistava território e procurava ter lucros, e para conseguir tudo isso era preciso legitimidade, tendo de se comprometer com uma série de ideais, lidando com as classes políticas de ambos os lados, do Reino Unido e da Índia. Não poderia simplesmente operar pela via do domínio [territorial], sendo necessário negociar com outros poderes políticos poderosos, e é aqui que entra a perspectiva do conhecimento. Temos a ideia de que a Companhia das Índias Orientais tinha apenas uma natureza comercial e económica, mas esse é apenas um lado da história. Um dos pontos interessantes do livro é que este mostra que havia, de facto, um lado político [na existência] da Companhia, com ligação ao conhecimento.

Até que ponto é que esta aposta no conhecimento foi importante para educar os locais, na Índia? Foi uma forma eficiente de o fazer?

Nem todos os recursos [da Companhia] foram investidos na educação, foi mais um projecto do que propriamente um sistema concluído e posto em prática. Foram feitas muitas promessas e em 1854 falou-se no plano de desenvolver [na Índia britânica] um sistema público de educação com académicos. Temos de pensar que esta era uma ideia muito primitiva na altura, que estava a começar a ser debatida na Europa. A Companhia estava a fazer muitas outras coisas, dividindo ganhos com os seus accionistas, e acabou por não investir muito na educação. Era uma série de ideias e debates que ocorriam, mas que acabaram por ter a sua importância, porque se as autoridades discutiam estes assuntos acabava por se projectar uma certa imagem junto do público.

Foi criado o “General Committee of Public Instruction” [Comité Geral de Instrução Pública]. Era o principal órgão, dentro da Companhia, responsável pela área educativa e do conhecimento?

Este organismo foi criado em 1823 quando se estava a criar um sistema público de educação, primeiro em Bengali e depois em toda a Índia britânica. Foi prometido um certo montante de investimento para a abertura de escolas e para apoiar académicos, gerando-se vários debates, nomeadamente sobre qual a língua que seria usada no ensino: seria o inglês ou as línguas asiáticas? Seria aplicado o sistema de ensino europeu? Será que a Companhia iria conciliar todas as elites ou tentar expandir a sua influência política junto da sociedade indiana? Tal debate gerou um confronto entre diversas classes, com os reformistas indianos, por exemplo. Essa é a última parte do livro, quando abordo a controvérsia Anglicista-Orientalista.

O fim desta controvérsia levou a uma redução ou fim do investimento na educação?

É mais complicado do que isso, no sentido em que houve um período de bastante indecisão [nas políticas a adoptar] após 1835 e nos 20 anos seguintes. Em 1854 temos este grande projecto com intelectuais, que prometida a realização deste sistema público, mas o dinheiro não foi de facto investido. A Companhia passou a ter uma importância reduzida e os interesses da Coroa britânica passaram a ser outros, com o Governo britânico a assumir o controlo directo do território a partir de 1858. O programa de educação de massas foi totalmente abandonado. Passou a haver novas políticas em relação à área do conhecimento, com a Coroa a abandonar por completo as ideias que tinham sido desenvolvidas pela Companhia.

Quando pensamos em colonialismo pensamos na ideia de imposição de uma cultura sobre outra. Com a ideia deste sistema educativo, a Companhia estava, de certa maneira, a fomentar o desenvolvimento das línguas e culturais orientais, algo que iria contra os interesses de alguma da classe política britânica, que pretendia expandir a cultura inglesa?

Para muitos historiadores há um ponto de viragem quando os britânicos aprendem mais sobre outras culturas e ensinam outras línguas, existindo ainda a fase de expansão da cultura britânica. Há sempre aproximações ou distanciamentos em relação a estas ideias, e não podemos construir noções a favor de uma ou de outra. A ideia central [neste contexto], era como se poderia recorrer ao conhecimento para [atingir] fins políticos.

O livro traz, assim, uma nova perspectiva sobre a Companhia das Índias Orientais, muito além do seu papel comercial durante o Império britânico.

Sim. Tento mostrar a Companhia começou por ser uma empresa global muito poderosa, mas não teve apenas um papel comercial e económico, estando envolvida na política e no conhecimento, publicando livros, financiando investigação e universidades, construindo museus. Este debate que ocorreu sobre o papel do Estado e da Companhia [em termos de investimento] é semelhante ao debate que temos hoje em dia, quando falamos do investimento na investigação e na área das artes e humanidades.

17 Ago 2023

Entrevista | Joshua Ehrlich, académico da Universidade de Macau

A descoberta de três cartas num arquivo em Londres trouxe ao de cima a ligação umbilical entre a academia, as elites intelectuais e o poder político no contexto do império britânico na Índia. O achado foi feito por Joshua Ehrlich, professor assistente do Departamento de História da Universidade de Macau

[dropcap]O[/dropcap] que o levou a fazer esta investigação e como encontrou estas três cartas?

Foi algo que surgiu na sequência da apresentação da minha tese de doutoramento. No ano passado, quando estava a rever as notas, reparei numa referência meio escondida a estas cartas de alguém que era bastante conhecido por historiadores que se debruçam sobre o século XVIII. William Jones, uma figura de prestígio, é-lhe frequentemente atribuída a descoberta de ligações entre algumas línguas, como sânscrito e idiomas persas e línguas europeias que pareciam muito diferentes. Mas como ele era um linguista muito qualificado, apercebeu-se destas ligações. Portanto, é uma figura bastante estudada. Encontrei correspondência dele com alguém que não foi muito estudado por historiadores e que tem uma reputação muito diferente, alguém corrupto, que adaptava os resultados de estudos académicos aos seus objectivos que passavam por atingir riqueza e poder. Duas pessoas bem diferentes, no contexto do século XVIII, a usar o império britânico na Índia para fins diferentes. Um com objectivos académicos, de potenciar o conhecimento humano e mostrar como os povos estão ligados em sítios diferentes. O outro a tentar tirar partido da sua situação em termos políticos. Mas mantinham correspondência, eram amigos e colaboraram em muitos projectos políticos e intelectuais. Conhecia um pouco deste contexto. Há um historial de publicação das cartas de William Jones e algumas apareceram, entretanto. Como tal, peguei na oportunidade de publicar estas cartas que acho que podem contribuir para alterar um pouco a forma como se vê este período histórico.

Para além do trabalho académico, que feitos históricos destaca na figura de William Jones?

Ele viveu e trabalhou como juiz no Supremo Tribunal de Calcutá e expôs a Europa às civilizações antigas indianas. Ainda hoje é considerado como alguém muito tolerante e aberto para o seu tempo. O meu trabalho tenta mostrar como a Companhia das Índias, no geral, sempre arranjava formas de agradar a académicos. Esta gentileza também era uma manifestação política porque tentava melhorar a imagem, porque durante este período, a Companhia das Índias tinha a reputação manchada por violência, desvios de dinheiros e corrupção, entre outras coisas menos positivas.

Que conclusões retira destas três cartas sobre o estado do império britânico na Índia durante este período?

A conclusão mais óbvia é que o mundo académico e a política estavam bastante ligados nesta altura. Por exemplo, havia claros benefícios políticos, tanto em Inglaterra como na Índia, para as elites britânicas e indianas e as classes políticas em serem mecenas de académicos. O facto de o Governador poder usar as suas ligações para ajudar William Jones, um académico apostado no trabalho de investigação, dava uma boa imagem da sua administração e de ele próprio, num momento em que havia muitos distúrbios. Era algo positivo que podia destacar na sua administração. Isso é revelador. Uma citação numa carta de Jones para o Governador (John Macpherson) refere que este era um estadista académico. Macpherson e os seus aliados repetiram muitas vezes esta citação, inclusivamente ficou gravado na sua lápide. Além de ser importante para a concepção que tinha de si próprio, também mostrava que não era um político corrupto que as pessoas pensavam que era. Academia e política eram mundos interligados, havia uma política do conhecimento.

A ideia predominante era que estes dois vultos vinham de mundos distintos?

Acho que, hoje em dia, essa é a ideia geral. O facto de pensarmos destas duas pessoas de formas tão distintas, sem interacção ou objectivos e vidas diferentes. Mas, de facto, estavam em interacção constante. Isso é relevante. Estas ligações entre figuras europeias e intelectuais indianos são muito importantes. Mas também as conexões com asiáticos. Numa das cartas foi transcrito um poema a elogiar o Governador Macpherson, escrito por um poeta indiano em indo-persa. Jones enviou o poema ao Governador na esperança de que ele patrocinasse esse poeta.

A determinada altura, as semelhanças entre os dois salta à vista nos documentos que encontrou…

Diria que tinham alguns objectivos partilhados. Ambos eram homens do Iluminismo, partilhavam a ideia de que através do comércio, além da troca material, existe o comércio intelectual entre pessoas diferentes, e que isso levava à paz, prosperidade e ao progresso em partes diferentes do mundo. Era uma ideia muito utópica, mas tinha significado para quem era académico. É importante dizer que, apesar da reputação de corrupto, Macpherson veio de um dos centros do Iluminismo na Escócia. O seu tutor foi um dos filósofos mais ilustres do iluminismo escocês, Adam Ferguson. Ele conhecia esta gente toda e tinha amigos neste círculo, enquanto era estudante. Continuaram a trocar correspondência quando foi para a Índia. Este era um grupo que o Governador tentava impressionar, os intelectuais iluministas escoceses. Jones compreendia este tipo de pessoas e também se correspondia com elas. Portanto, partilhavam a visão de um mundo de comércio pacífico entre pessoas, levando à compreensão entre povos que viviam muito afastados um do outro. Era nisso que resultava o casamento entre academia e mecenato. Esse é o pano de fundo revelado pelas cartas, não só com impacto no lado académico, mas também no político. Nesta altura, a Companhia das Índias estava a mudar dramaticamente. Ao longo da história do império na Índia, deu-se a mudança no equilíbrio entre os papéis políticos e económicos, eventualmente o comércio reduz-se e torna-se num império territorial que já não se interessa tanto pela troca comercial. Mas, nesta altura, ainda havia equilíbrio. Estas duas figuras estavam do lado do comércio, mais que do lado expansionista que queria tornar a presença da Inglaterra na Índia num império territorial.

Qual a influência da relação entre estas duas personalidades e a estratégia que Londres tinha para a Índia?

Como as comunicações entre Londres e Calcutá eram muito lentas, podiam demorar um ano a enviar ordens e respostas, seis meses para cada lado, como se podem tomar decisões? Londres só podia dar orientações gerais, mudar algumas pessoas, mas muito tinha de ser feito em Calcutá. Nesta altura, Macpherson não tinha muito apoio em Londres. Não era a primeira escolha para ser Governador, estava simplesmente no conselho quando o anterior Governador se demitiu, portanto, assumiu o cargo temporariamente. Ele era o próximo na hierarquia. Foi um quadro temporário, só lá ficou um ano. Portanto, estava desesperado para tornar o cargo permanente. Queria mesmo mais apoio de Londres e estava a fazer tudo o que podia para o conseguir. Parte disso, foi o anúncio desta visão pacífica e filosófica da sua administração. Anunciar estes planos ambiciosos era também uma forma de ganhar nome. Não correu bem. Londres quis substitui-lo muito rapidamente. As pessoas que regressavam a Inglaterra com uma má impressão do Governador também não ajudavam, além das cartas escritas pelos seus rivais.

Durante este período, que outros exemplos de corrupção na Índia destaca?

Corrupção e a percepção da corrupção são elementos chave para a compreensão dos debates da política do império britânico. Parte disso é a distância entre Londres e os territórios e a falta de informação sobre o que se passava por lá. A ideia de enviar pessoas de grande reputação torna-se um imperativo, especialmente quando a opinião pública em Inglaterra desvia o interesse para o que se passa no império. O exemplo mais famoso no contexto indiano parte do Governador anterior a Macpherson, Warren Hastings, que esteve no poder 10 anos. É lembrado por ter aprendido línguas indianas, pelo brilhantismo administrativo. É visto, hoje em dia, como uma figura complexa e interessante. Quando regressou a Inglaterra foi julgado em tribunal e destituído pelo Parlamento. A corrupção na Índia ocupou o centro do mediatismo na política britânica durante 10 anos. Havia a preocupação sobre o retorno de corruptos que vinham da Índia, essa preocupação esfumou-se dez anos depois.

Regressando a William Jones, é entendido que estaria a passar conceitos diferentes da cultura ocidental à sociedade indiana.

Teve alguma interacção com académicos oriundos das elites indianas e estudou sânscrito tradicional, além disso estava também ligado às elites académicas islâmicas, através dos estudos persas. É verdade que através destas interacções, podemos adivinhar que ele estava a trazer para a sua órbita muitos intelectuais indianos e deve ter mudado a percepção dessas pessoas sobre os estrangeiros britânicos.

De onde veio o seu interesse para estudar a Índia no contexto do império britânico?

Enquanto, estudante estava muito interessado no Iluminismo e no Iluminismo escocês. Li muito sobre o assunto e encontrei pontes entre estas personagens e intelectuais britânicos e europeus e a ligação às expansões imperiais. Sempre me interessei pela junção destes dois mundos, academia e política imperial.

26 Fev 2019