O Jogo das Escondidas – Capítulos 71 ao 80

71

Esperou por Amoroso. Sabia que ele viria. Iria inquiri-la e tentar colocá-la contra a parede. Conhecia a táctica psicológica do torturador: dividir o mundo entre “nós” e “eles”. A crueldade desencadeada na vítima é sempre promovida por o torturador necessitar de acreditar que o seu mundo é justo. As vítimas merecem o que lhes está a acontecer, segundo eles. Era uma boa defesa. Mas o tenente Amoroso não era um santo, nem um justo. Olhou para o relógio de bolso de ouro de Joaquim Palha, que trouxera. Precisamos de relógios para nos lembrar que somos apenas mortais. Era verdade. Nós passamos pelo tempo. Os relógios ficam. Sentiu que o tenente estava atrasado. Finalmente ouviu um ruído. Eram passos. A criada estava a indicar o caminho a Amoroso. Escutou a porta a abrir-se, sem aviso. Através do espelho, viu um corpo a aproximar-se dela. Ele parou e ficou a olhar para as suas costas e para a sua face no espelho.
– Boa tarde, senhora Palha.
Seguiu-se um breve silêncio.
– Sabe o que me traz aqui.
– Boa tarde, tenente. Presumo que sim.
Ela não se virou e ele puxou uma cadeira para que ela pudesse ver a sua cara através do espelho.
– Escuso de lhe recordar que o seu marido morreu. Aparentemente, suicidou-se. Sabemos que Max Wolf fugiu. E também temos a certeza que ambos eram sócios com um chinês, Fu Xian, para colocar heroína à venda em Macau e Hong Kong. Isto para além do seu marido conspirar para que, se Macau fosse vendida à Alemanha, lucrar com isso, algo que é pouco patriótico. Resta-nos resolver duas coisas. Quem matou o seu amante, João Carlos Silva? E até que ponto estava a senhora ao corrente de tudo isto?
Sofia Palha levou um lenço aos olhos, como se uma lágrima traiçoeira ainda estivesse por ali.
– Meu caro tenente, aqui em Macau temos a nossa terra e o nosso mar. E a nossa energia. Acreditei demasiado nesta cidade. E nas suas pessoas. E, claro, no meu marido. Seguiu-o como se faz a uma luz que ilumina o nosso caminho. Nunca me questionei sobre a bondade das suas decisões.

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– Isso não a impediu de cobiçar outros homens.
– Esta cidade é pequena. Há sempre rumores de infidelidades. Uns verdadeiros, outros falsos. O meu marido sempre teve conhecimento deles. E, olhando para a sua cara, o tenente também os ouviu. Só um é verdadeiro. E já me confrontou com isso. Sabe que tive uma relação com João Carlos Silva. Vivia um momento de fraqueza. De insegurança. Precisava de ter um ombro amigo onde pudesse descansar. Encontrei-o. Não o amava. Mas escutava-me e confortava-me. Nunca sentiu essa falta, tenente? Foi esse pecado que o meu marido não me perdoou.
– Foi Joaquim que matou João Carlos Silva?
– Eles tinham negócios, tenente. O meu marido sabia o que se passava no Governo através dele. O João Carlos era viciado no jogo. Devia muito. Mais do que ganhava. E queria ganhar mais. Houve um momento em que o Joaquim perdeu a cabeça. Eu ia para a cama com o João Carlos e isso fragilizava-o. E depois não estava disposto a dar mais dinheiro a ele. A chantagem e o ciúme levaram à sua morte.
– E como aconteceu isso?
– Suponho que o Joaquim contratou um chinês, um pirata qualquer, que o matou. Eu quase enlouqueci, mas sou resistente. Percebi, depois, que eu não era a culpada. Era o dinheiro. Joaquim estava disposto a fechar os olhos à minha relação com o João Carlos desde que terminasse. E tinha terminado quase duas semanas antes da sua morte.
Sofia Palha levantou-se, voltou-se e olhou fixamente para Amoroso. A sua face estava contraída, como se estivesse prestes a ser vencida pelo choro. Este levantou-se. Ela continuou, numa voz sumida:
– Eu não sabia quais eram as suas lealdades e os seus negócios. Mas sei que, mesmo jurando, não acredita em mim.
Aproximou-se do tenente até ficar a pouca distância dele. A sua voz era doce:
– Não acredita em mim, tenente?
Amoroso não respondeu. Sondou a face dela. Parecia sincera, mas algo não batia certo. Sofia Palha não poderia ser alheia a todas as conspirações cruzadas que tinham a impressão digital do falecido marido. Ela não poderia ser cega, surda e muda. A forma como ela o abordara no hotel Boa Vista provara isso. Sabia manipular os homens e as suas emoções e fragilidades. Mas não existiam provas contra ela.

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– Veremos o que nos dirão as investigações em curso, senhora Palha. Tem mais algo para dizer?
– Tenho, senhor tenente. Preciso de fazer o meu luto. E saber o que irei fazer no futuro.
– O senhor Palha deve ter deixado um bom legado. Não terá problemas financeiros, por certo. Se estiver inocente de tudo isto…
Ela fez um ar de espanto, sentindo que duvidavam da sua honestidade. Uma lágrima escorreu pela sua face. Amoroso tentou manter-se frio. Ela parecia aguardar um abraço acolhedor. Mas ele não o fez. Não o podia fazer. Pensou apenas: este é o momento em que ambos fingimos que Sofia Palha não está a mentir.

19.

Parecer inofensivo é uma vantagem, disse Benedito Augusto. Os seus olhos estavam cansados, mas a voz estava tão viva como quando desaparecera, há quase duas semanas.
– Parecer inofensivo é rentável, porque as pessoas inclinam-se perante quem não parece ter armas para as ferir. Ocultar-se é uma delicadeza. Quem é inofensivo tem o dom de conseguir a escassez de reacções. Esconde-se perante o olhar de todos.
Falava como se nada se tivesse passado. Ou se quisesse esquivar-se a isso. A ausência era uma boa desculpa. O tenente Félix Amoroso vigiava-o com o seu olhar inquiridor. O padre regressara, segundo dizia, de Xangai. Acabara por não ir até Singapura, como tinha combinado com Fu Xian para cumprir um acordo secreto entre ambos. Mas, na cidade chinesa, mudara de ideias e regressara a Macau. Estavam numa taberna do Porto Interior, frequentada por marinheiros, piratas e batoteiros, como era habitual naqueles locais soturnos. O aspecto de Benedito confundia-se com o de muitos deles, com a sua cabaia negra muito suja, o cabelo desgrenhado e a barba por fazer. Dava-lhe um ar mais velho e duro. Amoroso não fazia parte daquele ambiente e era olhado com desconfiança. Não se sentia muito seguro ali. A sua mão direita estava junto da pistola, apenas por precaução. Porque Benedito era ali conhecido e respeitado. Talvez temido. Mesmo num mundo de homens que perderam a fé, um padre merece sempre algum respeito. Porque nos momentos mais terríveis, tem de se acreditar em algo. Nos deuses ou no Céu. Numa salvação qualquer.

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– Porque é que decidiste regressar, Benedito?
– Senti que algo se passara. Às vezes antecipo os acontecimentos.
– Ou tens informações que te permitem tirar essas ilacções…
Benedito fez um esgar. Agarrou no copo de cerveja e levou-o à boca. Desviou a questão.
– Estava cheio de sede. A cerveja aqui é melhor.
Amoroso não se conteve:
– Qual é o teu jogo, Benedito?
Este mostrou-se espantado:
– O meu jogo? Conhece-me, meu caro tenente. Procuro sobreviver. E tenho sido leal consigo. Às vezes fico quieto para não espantar os demais.
– Espanta-me que saibas tanto sobre a vida de Sofia Palha e do João Carlos Silva. E tão pouco de outras coisas.
– Que outras coisas? Sei agora que a tua amiga Ding Ling montou uma cilada ao alemão e a Fu Xian. Sobre este fez-me um favor. Desapareceu um problema. Deixei de ter uma dívida para pagar.
– Sim, ele fazia chantagem sobre ti. Sobre as tuas aventuras amorosas. E talvez sobre outras coisas que eu não sei. Mas saberei em breve. Mas como soube Ding Ling da táctica de Max Wolf para assaltar o vapor?
Benedito encolheu os ombros e bebeu mais um pouco de cerveja. O tenente tamboriou os dedos da mão esquerda na pequena mesa de madeira suja que estava entre ambos.
– Saíste mesmo de Macau?
– Duvida disso?
– Duvido. Acho que foste tu que contaste os planos de Fu Xian e de Wolf a Ding Ling. Esta resolvia-te um problema.
Benedito deu uma gargalhada. Amoroso não esboçou sequer um sorriso.
– Meu caro tenente, estive em Xangai. E nem sequer conheço Ding Ling.
– Isso não sei. E também não precisas de conhecer Ding Ling para lhe fazeres chegar qualquer informação.
Benedito olhou fixamente para Amoroso. A sua voz endureceu:
– Meu caro tenente, ninguém é inocente aqui. Todos fugimos de algo. Sobretudo do nosso passado. É o que fazemos em Macau, não é verdade? Eu fugi do meu passado, mais escuro do que o que conto, é verdade. E o tenente, faz o quê? Fugiu do seu passado na guerra, no cemitério de França. E foge do seu passado recente, aqui mesmo, não é? Quer esquecer isso?

75

Amoroso sentiu um tremor. Mas Benedito continuou, ameaçador:
– Abriu a caixa dos fantasmas, tenente. Agora é tarde para a tapar. Recorda-se do que aconteceu o ano passado? O que se ia passando em Macau, com a agitação levava a cabo pelos agentes de um senhor da guerra de Cantão contra os portugueses? Onde se situaram então os apoiantes de Sun Yat-sen? Estavam no meio e arriscavam-se a ser trespassados. Que sucedeu então?
Amoroso engoliu em seco. Naquele momento desejou levantar-se e sair dai. Ou então, puxar a pistola e…
– Quer matar-me, tenente? Esteja à vontade. Mas até lá tem de ouvir e engolir o resto.
Fez uma pausa, antes de continuar:
– Eu sei o que se passou. No meio da confusão, em Junho do ano passado, aconteceu algo que quase passou despercebido. Entre mortos por causa da sublevação organizada por Wong Pik-wan, a soldo do general Ch’en Chiu Ming, também pereceram inocentes. E houve lugar a ajustes de contas. Mesmo que alguns fossem por causa do seu apoio aos que atraiçoavam Sun Yat-sen. Lembra-se tenente, de corpos encontrados em diversas casas de Macau? Uns nunca foram identificados. Presumia-se que eram piratas, ou elementos das tríades, ou infiltrados por cada uma das facções. Não interessavam para as autoridades portugueses. Mas houve um caso que me mereceu a atenção…
Parou propositadamente, suspendendo a respiração. Sondou a cara de Amoroso. Este estava calado, preso às palavras de Benedito. Os seus olhos pareciam blocos de gelo, que nem o calor dentro da taberna derretiam.
– Lembra-se tenente? Encontraram um casal dentro da sua casa. Mortos a tiro. Sabe quem eram, não sabe?
Amoroso acenou com a cabeça.
– Claro que se lembra de tudo. Apesar de estar profundamente apaixonado na altura. E de estar muito dependente do ópio. Nada de anormal em tudo isso. Mas voltemos às nossas comuns recordações. A polícia não deu relevância ao caso, porque estava mais preocupada em conseguir que a paz fosse restabelecida em Macau. Mas eu sei quem era esse casal. Ele chamava-se Huang Sen e ela Lu. Tinham bons negócios em Macau e Xangai. E odiavam Sun Yat-sen, por razões que desconheço.

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Benedito continuou:
– Mera coincidência era, claro, eles serem os tios de Ding Ling. E de esta ter herdado tudo o que lhes pertencia. Incluindo o “Noite Tranquila” e as lorchas e juncos que traficam ópio para Macau. Eu fui ver. Mesmo assim fiquei de boca caada. Não hava armas para eles se defenderem. Mas tu disseste que tiveste de disparar em legitima defesa. Não te recordas do que disseste?
O olhar de Amoroso ia-se tornando cada vez mais incandescente. Mas continuou sem responder. Benedito insistiu:
– O que nos leva à questão mais importante. Quem os matou? Foi Ding Ling? Era rapariga para isso. Tem fibra. Gosto dela. Mas não foi. Foi o tenente. Matou-os para a proteger, acredito. Mas liquidou-os a sangue frio. Ele não tinha a arma na mão, pois não? Tenente, não julgo que, moralmente, esteja ao abrigo do Inferno.
– O que te leva a dizeres-me isso? Isso não é verdade.
– É. E o tenente sabe-o. E, curiosamente, todo o jogo se virou a seu favor. Tornou-se quase chefe da polícia secreta. Tudo parece uma comédia. Perguntas-me muitas vezes o que faço. Eu escondo-me nas sombras. E isso não é o que faz o tenente desde esse dia? Eu não quero iluminar esse mundo de trevas onde vives, Amoroso. Mas não te admito que atires coisas à minha cara. Elas fazem ricochete.
Suspirou, antes de dizer:
– É a ironia do destino. O tenente tenta esconder os seus próprios segredos, enquanto procura descobrir os dos outros.
Xeque-mate, costumava dizer-se numa partida de xadrez. Era assim que Amoroso se sentia. Derrotado. Benedito não parecia gozar a sua vitória, porque também ele era um derrotado pela vida. Ou parecia sê-lo. Mas ainda conseguia guardar uma última palavra, como se quisesse enterrar o punhal na terra:
– Eu compreendo-te melhor do que me entendes a mim, tenente. Eu sei que uma mulher fatal, como Ding Ling, é a que se vê uma vez e se recorda para sempre. E tu não a querias ver uma única vez na vida. E assim entregaste a tua vida nas suas mãos. Mesmo ficando as tuas cheias de sangue. Chama-se a isso uma coisa: amor.

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Não era um momento fácil para Félix Amoroso. Mas Benedito não parecia querer tirar dividendos do que sabia.
– Sabes que não será necessário encontrares desculpas se ninguém te pedir que as dês. Podes continuar a falar e a disfarçar, sem dizer a verdade ou parte dela. Não te preocupes. Eu olho para o outro lado.
Era confortável, mas o tenente continuava sem perceber qual era o verdadeiro jogo de Benedito Augusto. Talvez nunca o viesse a saber. Ou só viesse a descobri-lo tarde demais.

20.

A tarde estava muito quente. E muito húmida. Não se levantara sequer uma ligeira brisa para acalmar os corpos e as almas. O governador Ricardo José Rodrigues trazia um leque para se abanar. É da minha mulher, desculpou-se. Mesmo à sombra a varanda do hotel Boa Vista não era o local mais convidativo para se estar a conversar. Mas era calmo e discreto aquela hora. Félix Amoroso sentia-se exausto, mesmo sem ter feito muito para o justificar. O empregado serviu-lhes duas limonadas frescas, que poderiam servir para arrefecer os corpos. O governador levou o copo aos lábios e depois virou a sua atenção para o tenente:
– Parece que estamos a chegar ao fim de um ciclo, meu caro. Os alemães foram afastados de cena. Os conspiradores morreram ou estão exangues. Lisboa tem, entretanto, outros assuntos políticos e militares que a animam. E que vão minando a República. Mas isso são outros temas que não são agora chamados para esta nossa pequena conversa. Sabe, ainda tenho dúvidas sobre quem matou João Carlos Silva, mas penso que dificilmente chegaremos a uma conclusão. Não lhe parece?
– Acho que sim, senhor governador. Não tenho certezas, ou provas, sobre se foi Joaquim Palha ou Max Wolf que o mandaram matar. Mas um está morto e não nos vai responder. E o outro está em fuga.
– Pensa que ele já estará em Xangai?
– Possivelmente conseguiu fugir para lá. Mas a sua situação não deve ser muito confortável. Alguém investiu muito dinheiro naquela heroína. E vai querer que Wolf lhe preste contas. Não deve ser fácil. Nem heroína, nem dinheiro. Nada numa mão. Nada na outra.
– As apostas são assim. Arrisca-se e pode-se ganhar ou perder. E ninguém gosta de perder.

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O governador olhou para o horizonte. Talvez estivesse a pensar em algo que não era para ser partilhado.
– Sabe tenente, tenho a certeza que o futuro é como o xadrez quando é mal jogado. O xadrez não é um jogo de intuição. Tem a ver com a memória. Mas não deixa de ser curioso que todos o disfrutemos mais se for intuitivo, porque só assim acontecem coisas novas. Uma vez tive o prazer de conhecer um mestre xadrezista que esteve em Lisboa, um russo, e perguntei-lhe se era possível antecipar dez ou vinte movimentos. Ele espantou-se e disse que não fazia isso, apesar de todos nós pensarmos que é isso que fazem os profissionais. Ele disse-me que cada jogada era fruto do momento. Acho que é assim que também se constrói um país ou uma cidade: movendo algo ao sabor de uma intuição, de um momento. Preocupando-nos com o presente.
Amoroso acenou com a cabeça. Parecia-lhe uma meditação sensata.
– Vamos ter de estar com os olhos e os ouvidos atentos, tenente. E, nesse especial aspecto, conto consigo. Há muitos desafios que se nos colocam nos próximos tempos. Sabe, está a terminar o acordo que nos permite importar ópio da Índia. Sabe a dependência que temos das receitas de produção de ópio em Macau. Elas são muito importantes para a nossa saúde financeira. O certo é que têm vindo a decrescer nos últimos anos, até porque há muito contrabando. Algum vindo das colónias francesas. Como é evidente estamos de mãos atadas: por um lado precisamos do ópio e das suas receitas, por outro o ópio cria dependência, transformando muitas vezes os homens em vegetais. É uma questão moral. Assim, o que pesa mais na nossa balança?
O seu olhar era vivo e dirigiu-o na direcção de Amoroso. Também este tinha um dilema entre mãos. Era consumidor, embora de forma moderada. Por outro lado, uma das grandes fontes de rendimentos de Ding Ling era proveniente da venda do ópio, a maioria importado clandestinamente da Indochina francesa. O governador continuou:
– O certo é que, segundo as informações que tenho, as críticas na Sociedade das Nações à nossa posição é de crítica moral. Mesmo vinda de nações que, nas sombras, lucram com o negócio do ópio.

79

– Chegue à China e verá os lençóis de papoilas espalhados por tantos sítios. Irão cortar essas papoilas? É duvidoso. E os ingleses e os franceses vão deixar de fazer negócio nas sombras, tendo a Índia e a Indochina. Quem é que pagou a revolução industrial dos ingleses, meu caro tenente? O ópio vendido aos chineses.
Parou um momento, antes de prosseguir:
– A política também é isto. Hipocrisia. Mas temos de viver e sobreviver com isso. Que faremos então, tenente?
– Confesso que não sei, senhor governador.
– Não sabe ou não quer saber porque também é parte interessada?
Amoroso notou o sorriso irónico de Ricardo Rodrigues. Ele conhecia os seus dilemas.
– A propósito, como vai a sua amiga chinesa, tenente?
A frase era mortal. Mostrava que o governador estava atento. E já tinha fontes de informação próprias.
– Vai bem, senhor governador. Conseguiu vencer todas as adversidades, incluindo a morte de uma sua estimada colaboradora.
– Eu sei. Sinto muito. Dê-lhe as minhas condolências. Mas a vida continua, não é verdade? Tem de continuar.
Amoroso não respondeu. Depois voltou a beber um pouco da limonada. Já estava quente.
– Senhor governador, desculpe a pergunta, e a senhora Sofia Palha?
– Ainda tem suspeitas sobre o seu comportamento, tenente? Nunca se sabe, é verdade. Mas agora está calma. Era uma mulher que não se amedrontava perante gigantes ou moinhos de vento. Acho mesmo que era mesmo ela que soprava o vento, se o posso dizer.
– Compreendo-o. Tenho a mesma dúvida.
– Ela é como Portugal. Este é um país milenar e labiríntico, um país que tanto é novo como velho. Mas que ama a vida. Ela também. Se não houver provas contra ela, sossegará e renascerá. Aqui em Macau ou em Lisboa. Quais são os seus planos? Ela sempre usou conceitos abstractos para se esquivar à realidade. Fala de convivência, de concórdia e de diálogo da mesma forma que fazem muitos políticos desejosos de ter o poder concentrado nas suas mãos. O senhor Palha julgava dominá-la, mas pelo pouco que conheci de ambos, era ele o dominado.
– Não consta que ela alguma vez tenha feito reféns. Nem o senhor Palha, nem o senhor João Carlos Silva.

80

O governador deu uma pequena gargalhada.
– Ninguém, é verdade! Por isso penso que, no seu olhar inocente de viúva ainda jovem, se escondem muitos desejos. Não acredito que não mantenha ligações aos capitalistas chineses que dominam o monopólio dos jogos e que utilizam portugueses ou macaenses como máscara. Há muito dinheiro em jogo, do monopólio do fantan à da lotaria da Misericórdia. A senhora Palha, se mantiver o escritório do seu falecido marido a funcionar, poderá ser uma aliada preciosa para muitos destes negócios. E nós pouco podemos fazer. As receitas do jogo são para nós tão essenciais como o oxigénio.
– Estamos condenados a ver com um olho e a fechar o outro, não é senhor governador?
– São as leis da política e das finanças, meu caro tenente. E são elas que mandam em simples mortais como nós.

21.

Sofia Palha sentou-se na confortável cadeira que pertencera a um administrador da VOC e, depois, a Joaquim José Palha. Abanou-se com o leque e, olhando para o tecto, decidiu que uma das suas primeiras medidas seria colocar uma ventoinha. Era preciso fazer circular o ar. O calor, ali, tornava impossível utilizar o cérebro. Estava na altura de se considerar vítima de si própria e dos seus desejos. Agora os homens olhavam-na como se ela transportasse consigo o céu e o inferno, ou o amor e o ódio, ao mesmo tempo que arrastava para o abismo todos os que se aproximavam dela e do seu mundo. Mas eles não compreendiam nada. O que parecia emoção, na sua relação com os homens, era apenas tensão. Não amara Joaquim José ou João Carlos. Ou amara, à sua maneira, de forma desprendida. Sempre se considerara uma bailarina entre crocodilos. Iludia a fome deles com a sua graciosidade.
Agarrou na carta que recebera de Max Wolf. Ele sobrevivera e ainda vivia em Macau, ao contrário do que se supunha. Escondera-se entre os amigos de Fu Xian, naquela selva de juncos e lorchas que enchiam o Porto Interior. A cidade flutuante, alguém lhe chamara. Seria difícil descobri-lo ali. Mas não impossível. Ele dizia-lhe que precisava de dinheiro para regressar a Xangai, para recuperar o crédito junto dos que lhe tinham colocado a heroína nas mãos. Sofia Palha fechou o leque e bateu com ele, levemente, na face. O que deveria fazer?

(continua)

10 Set 2021

O Jogo das Escondidas – Capítulos 61 ao 70

61

15.

Nas histórias chinesas de amor muitas vezes um ou ambos os amantes morrem ou nunca se juntam. Mesmo assim consideramos isso um final feliz, porque o que conta é a grande paixão que os uniu, algo que a sorte e o destino permitiram, disse calmamente Ding Ling, apesar dos seus olhos estarem estranhamente incandescentes. As suas mãos tremiam um pouco quando passaram pelo corpo deitado à sua frente. A bela Wei Zi ali estava imóvel. No cheongsam que vestia notava-se, à altura do coração, um orifício, sinal visível do punhal que rompera a sua pele e penetrara no coração. Bei Li estava de pé, com os olhos fechados, aparentando uma serenidade que não tinha naquele momento. O tenente Félix Amoroso sentiu um amargo na boca e a sua mão direita cerrou-se. O assassinato de Wei Zi acertara também no coração de Ding Ling. Não sabia como ela iria reagir. Quem a matara? Porquê? O choque emocional ia-se desvanecendo e Amoroso via surgir a visão mais lúcida do facto, mais fria, lógica e racional.
A sua própria vida também estava em jogo.

Wei Zi fora morta dentro da “Noite Tranquila” por um cliente que a acompanhara até aos lugares mais reservados. Ele saíra tranquilamente e, só depois, tinham dado com o corpo dela. O eficaz golpe, que a matara imediatamente, fora obra de um profissional. Era uma vingança. Para pagar o que ela descobrira. Para mostrar a Ding Ling que Max Wolf ou Fu Xian utilizariam todos os meios para espalhar o medo. Para a assustarem, porque sabiam que fora ela que incendiara o armazém onde tinham os seus pacotes de heroína. Perderam muito dinheiro. E a face. E homens como aqueles não tinham duas caras.

– Esta é uma terra em disputa. A partir de agora muita coisa pode acontecer.
As palavras de Ding Ling eram firmes.
– Eu sou boa para aqueles que são bons.

Mulheres como ela têm o poder da persuasão, pensou Amoroso. Os olhos dela estavam cravados nos seus. Ele não baixou os seus. Ela ficou com a convicção que esta não seria ma luta dela. Nem de Bei Li. Seria também dele.

62

– Há um tempo para guardar o silêncio. E outro, bem diferente, para actuar. Mesmo o silêncio pode ser uma arma. Importa saber ver, quando mais ninguém o consegue. Isso é que nos traz a vitória. Wei Zi nunca esperou morrer de velha. Dormir com um olho aberto e saber que cada dia pode ser o último, era uma das condições para trabalhar comigo. Ela sabia-o. E não se importou. Os homens podiam atraiçoá-la por um punhado de patacas, os inimigos poderiam seguir os seus passos, mas ela seguiu sempre em frente. Mas não esperava que o seu fim fosse assim. Aqui, na minha própria casa. Com ela cercada de amigos.
Não há intocáveis, pensou Amoroso. Gota a gota enche-e um copo, até que ele transborda. Era o caso. A paciência desaparecera dos olhos de Dng Ling. Mas isso não queria dizer que ela iria deixar-se atraiçoar pelas emoções. Os seus inimigos tentavam-na, mas ela não cairia no seu jogo. Esperaria o momento certo. Ding Ling roçou o seu corpo pelo de Amoroso e começou a andar. Ele seguiu-a até a um local discreto de onde podia ver grande parte do “Noite Tranquila”. Nada parecia estar diferente mas, na realidade, tudo mudara.
– Sabes que a palavra Qing significa claridade ou pureza? E o certo é que aquele que foi o último reinado imperial andes da República nunca foi nada disso. É por isso que sigo Sun Yat-sen. Quero conhecer a pureza que há nas pessoas. Há quem diga que a morte é um mistério. Mas, na realidade, o que é verdadeiramente misterioso é a vida, não achas, querido tenente? Quem somos? O que fazemos aqui? A única certeza que temos é que morreremos. Como é que dizem os católicos? Pó eras, em pó te converterás?
Amoroso via homens a jogar, sem pensar no pó em que se tornariam. Via-os a beber, sem procurarem, no fundo do copo, uma resposta para as suas atitudes. Cobiçavam raparigas que cirandavam entre eles, sem terem remorsos. Ding Ling passou-lhe os dedos pelo pescoço e, depois, tocaram-lhe na orelha. Ficaram ali durante segundos, os suficientes para ele sentir um arrepio de desejo. Olhou-a e ela agarrou-lhe na mão e puxou-o.

63

Caminharam os dois até ao pequeno quarto que ele tão bem conhecia. Aí, na escuridão quase completa, Ding Ling abriu o seu cheongsam e deixou-o cair. Ficou completamene nua e aproximou-se dele. Foi-o despindo e quando acabou de lhe tirar as roupas encostou-se a ele. Sentiu o desejo de Amoroso. Afastou-o e ficou a olhar para ele, até ue se deitou na cama e lhe fez sinal para que ele se colocasse em cma dela. Ding Ling entregou o seu corpo, vibrante, mas os seus olhos estavam molhados. O prazer misturava-se com a dor, num daqueles mometos em que a bondade e a maldade travam um duelo final. Naquele momento Amoroso percebeu que entre ele e ela não havia absolutamente nada, excepto a obstinada independência dela. O laço forjado no passado deve amarrar-nos mais do que um juramento, sussurrou ela. E ele tinha a certeza disso.

16.

O mundo está cheio de ciladas. Aprendemos a viver com elas e a utilizá-las. Sabe-nos bem, quando os outros caem nelas. Clamamos contra a injustiça, quando elas nos fazem tropeçar. Joaquim Palha sentia-se atraiçoado pelo destino. A estratégia fora cuidadosamente montada, desde há muitos anos. Tudo corria bem, dentro da ambiguidade onde se movia como um dançarino. Saber dançar como poucos ajudara-o no mundo dos negócios e da política. Conhecia os ritmos todos, os compassos de espera, a força de fazer bailar o seu par. Mas há sempre algo que não se controla. E isso só poderia ser devido a uma traição. Alguém o traíra, ele que estava habituado a enganar os outros. Não era justo, pensou Joaquim José Palha. Os dedos contorceram-se e as unhas, bem tratadas, cravaram-se na carne. Para doer. Para perceber que tudo o que estava a acontecer era real. Traídos. Joaquim Palha amaldiçoou o mundo por ser assim. Esqueceu-se, claro, de pensar que ele era construído por pessoas como ele. Max Wolf andava na sala, de um lado para o outro. A sua face estava vermelha e a respiração parecia indicar alguém que estava prestes a deixar sair os pulmões pela boca. Por fim, explodiu:
– Tem a noção real do que aconteceu?

64

Os olhares dos dois cruzaram-se, como num duelo. Nenhum deu parte de fraco. No escritório de Palha fez-se um silêncio ensurdecedor. Este mudou de posição na cadeira, num esforço inútil pra ficar confortável depois de ouvir as notícias que Wolf lhe trouxera e que confirmavam os rumores que que se escutavam junto ao edifício do Leal Senado. Todo o castelo de cartas que tinham construído nos últimos meses desmoronava-se defronte dos seus olhos. Primeiro, tinham ficado sem a heroína, que se desintegrara em cinzas. Agora o assalto ao vapor correra mal. Tudo correra ao contrário do planeado. Quando Wolf lhe começou a dizer o que se passara, Palha arregalara os olhos, como se estivesse diante de um fantasma:
– Não pode ser!
Mas era. Wolf, fora de si, só abanava a cabeça e cerrou os lábios. Não havia muito a dizer. E o melhor era não tentar dizê-lo, apesar dos esforços de Palha para o fazer falar. Por fim, foi dizendo:
– O que sei foi que se fez o assalto ao vapor Sui-An, como estava planeado. Este partiu de Macau e dirigia-se a Hong Kong. Não era a primeira vez que os piratas o tomavam e roubavam o que havia de valor a bordo. A tripulação estava habituada as estes infortúnios e, para salvar a pele, deixava-se ficar tranquila. Mas, desta vez, como sabíamosmos, o barco levava algo especial: o cofre com dinheiro e ouro que tinha como destino o Hong Kong Shanghai Banking Corporation. Era uma verba considerável que alguns comrerciantes de Macau queriam transferir para Hong Kong e por isso a sua segurança revestiu-se de cuidados especiais. Iam vários guardas armados a vigiá-lo. Sabíamos tudo isso. Como estava planeado, as lorchas de Fu Xian surgiram de repente e cercaram o vapor. O funcionário do Banco Nacional Ultramarino, que seguia a bordo, estava confiante no poder de fogo dos seguranças, mas, para espanto deste, estes nada fizeram e os nossos homens ocuparam o navio.
– Até aí nada de novo. Era essa a nossa estratégia delineada com Fu Xian. Os homens da segurança tinham sido substituídos por fiéis nossos ou subornados. Mas o que é que sucedeu a seguir?


65

Wolf encolheu os ombros.
– Só há relatos contraditórios de alguns passageiros e do funcionário do BNU. Mas o que se percebe é que uma série de passageiros tiraram as armas que tinham escondidas na roupa e os seguranças que eram homens de Fu Xian viraram as suas espingardas e pistolas contra os piratas deste e cmeçaram a disparar. Mataram-nos todos. Não queriam testemunhas. Quem podia contar algo, morreu. A polícia portuguesa está no Porto Interior a ouvir os passageiros. Mas a maioria está confusa ou, então, cala-se. Quem lá está também é aquele teu amigo, o tenente Amoroso.
Palha não acusou a indirecta e questionou:
– Isso não faz qualquer sentido. E Fu Xian?
– Pelo que consegui saber também foi morto. Os piratas e os seguranças levaram o seu corpo para as lorchas deste, assim como o cofre, e desapareceram rumo a uma das ilhas que há por ali.
Palha perdera, naquele momento, a serenidade:
– Quem são estes homens? São de Ding Ling?
– Ninguém sabe. A polícia está a investigar. Mas é como te digo, deveriam ser. Ou de outra tríade. Sei lá. Quem sabe ou está morto ou desapareceu.
Palha rosnou:
– Deve ser uma vingança dela. Puxámos demasiado a corda. E matar a miúda chinesa também não ajudou. Mas foi ideia de Fu Xian. E não podíamos dizer que não. Foi demasiado sangue. Mas como é que ela conseguiu subornar os homens de Fu Xian? Em caso de sarilhos aqui é fácil subornar a polícia. Mas comprar os homens de Xian…
Tentou fazer um sorriso conspirativo, mas estava demasiado nervoso para isso. E tudo resultou num esgar rancoroso.
– E agora?
– Tenha calma, doutor Palha.
Este revolveu o corpo na cadeira. Wolf continuou:
– Eu vou voltar para Xangai. Preciso de falar com os meus sócios. Explicar-lhes o desapaecimento da heroína. E também não tenho dinheiro para lhes levar. Contava com os valores que estavam no cofre.
– E eu?
Max Wolf fez um olhar sórdido:
– Tu? Que achas? Não há-de faltar muito tempo para o teu querido tenente aparecer aí para te prender. Se ainda aqui estiveres. Essa, de resto, foi uma bela ideia tua. Suborná-lo…
– Ele parecia estar convencido.
– Parecia. Deve ter sabido o que planeávamos. E deve estar conluiado com aquela bruxa chinesa.

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Palha estava embaraçado. Wolf não confiava nele. Nunca confiara. Agora largava-o como caça, enquanto ele fugia. O alemão talvez tisse certezas. Daquelas que resolvia com uma pistola. Não lhe era conveniente confrontá-lo.
– A guerra é a guerra. Alguma vez combateu, doutor Palha?
– Eu? Nunca.
– Eu estive na guerra. Combati em França. Nas trincheiras. Escondia-me enquanto os obuses passavam por cima de mim ou explodiam ao meu lado. Vi morrer muita gente. Hoje não me faz confusão. Temos é de manter os olhos abertos e saber sobreviver. É isso que planeio fazer. Voltarei.
Palha franziu a testa.
– Desaparecer é a melhor opção. Vou deixá-lo, doutor Palha. Tenha um resto de bom dia.
Ao dizer isto, piscou um olho. E desapareceu. Palha ficou atónito. Tinha de tomar uma decisão rápida. O tempo corria depressa. Demasiado, para o seu gosto.

17.

O sol ainda não se tinha posto quando Félix Amoroso chegou ao “Noite Tranquila”. Li Bei esperava-o. Ele sabia porquê. Os seus espiões eram mais rápidos do que ele. A luz, à entrada, era melancólica, como se aquela fosse uma noite como as outras. Não era. Lutar e não ceder, era o que transmitiam os olhos dela por detrás do seu ar enigmático e doçura meditativa. Parecia ter o sorriso de uma estátua em jade de um Buda khmer que lhe tinham trazido da Indochina. E que ele guardava no seu quarto. Ela aproximou-se dele e disse:
– A vida é amoral. E é sempre violenta. Por vezes temos de atacar não apenas as forças do inimigo, mas a sua força moral. É aí que verdadeiramente vencemos.
Não esperava resposta. Fez-lhe sinal para que o seguisse até à sala onde estava Ding Ling. Também ali a luz era mortiça, e não deixava ver bem os contornos da face dela. Mas Amoroso não duvidava que a serenidade, a sensualidade e a sensação de dever cumprido se uniam no seu olhar. Ela aproximou-se e finalmente Amoroso conseguiu ter uma imagem mais nítida da cara dela. Nunca lhe parecera tão bela e radiante. Ele tocou-lhe, como se ela fosse irreal. Não era. Sentia o calor do corpo de Ding Ling, a milímetros do seu. Dela imanava uma força que o invadia e conquistava.
Ding Ling, naquele momento, era a civilização chinesa no seu esplendor: a harmonia pura. Tentou afastar a magia que o deixava inerte:

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– Como boa deusa, a Fortuna, esteve do lado dos deuses.
– Esteve. Tal como nas melhores óperas de Cantão, as máscaras que usámos representaram diferentes emoções até atingirmos o nosso objectivo. Encenámos da melhor maneira a nobre arte da paciência e do engano. Quando julgavam vencer, os traidores foram vencidos. E com eles desmoronou-se o sonho de Max Wolf e dos alemães. Não há ouro e dinheiro para subornar, nem heroína para corromper. Os portugueses ficariam felizes se algum dia soubessem o que fizémos. Com a heroína Wolf teria conquistado o submundo de Macau e o poder ruiria sem disparar um tiro. Quem controla a escuridão, domina a luz que os outros julgam ser sua. Os alemães teriam Macau, mesmo que em Santa Sancha existisse uma bandeira portuguesa.
Ding Ling aproximou os seus lábios dos de Amoroso. Bei Li observava, muito perto. Os seus corpos pareciam sombras inertes, mas repletas de vida por dentro.
– Sem ti, querido tenente, não teríamos conseguido uma vitória justa. O inimigo não se teria distraído o suficiente. Não teria achado que, por matarem os que nos são queridos, quebraríamos como um tronco de madeira. Somos feitos de bambu. Vergamos. Não quebramos.
A voz de Bei Li não quebrou o encantamento:
– Muitas das histórias que terás escutado talvez tenham ofuscado as tuas ideias, tenente Amoroso. Agora que a luta terminou, não tens de ter receio de nenhuma de nós. Apesar de ela também ser a tua batalha. Era a escolha do nosso verdadeiro inimigo. Do teu verdadeiro inimigo.
O seus olhos fecharam-se, como se a ténue luz lhe ferisse a visão. Continuou:
– Tinham fraquezas. Os homens de Fu Xian sempre estiveram à venda. São mercenários, que escutavam promessas de riqueza. E, até agora, viam poucas recompensas. Não confiamos neles. E eles não confiam em ninguém. Só no dinheiro que lhes pagámos.
– Todos temos as nossas dúvidas, gentil Bei Li. Duvidamos de nós. Da justiça. Dos outros. Do bondade do mundo.
Bei Li sorriu. A sua missão agora tinha terminado. Disse apenas:
– Pensas em espiões, não é, querido tenente? Nós não precisamos de espiões, enquanto a verdadeira China existir. É melhor ter amigos.


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Fechou os olhos e rodou o corpo, confundindo-se com a penumbra. Amoroso, que voltara a olhar para Ding Ling, não a ouviu sair da sala. Esta disse:
– Quem vem da escuridão tem mais resistência ao sofrimento. E nós voamos lado a lado. Não o esqueças.
– As deusas quebram promessas?
– Nunca o fiz e nunca o farei, seja por força do Bem ou do Mal. Sabes que a minha missão é ajudar Sun Yat-sen. Contra as potências que retalham a China. Contra os seus inimigos internos. Só isso. Estou serena. As sombras podem agora dançar à volta da alma de Zu Wei.
Os seus lábios tocaram os de Amoroso. As suas mãos percorreram o corpo deste. Muitos minutos depois, estavam juntos na cama. A luz deixava ver os bilhantes olhos dela e os lábios cerrados. Parecia estar prestes a chorar mas isso, claro, não aconteceu. Ele passou a mão pelas costas dela e foi descendo até encontrar o início das pernas. Mas Ding Ling agarrou-lhe na mão e levou-a até junto ao seu seio, não o deixando mexer-se. Ficaram assim a olhar um para o outro, pensando no que queriam fazer a seguir. Tudo ou nada? Troca os meus desejos pelos teus, parecia dizer ela. O desafio era intolerável e o seu corpo sabia. Afastou a mão e comprimiu o seu corpo contra o dele. O sol passava entre duas nuvens e mostrava o seu esplendor. Era uma metáfora queDing Ling muitas vezes partilhava com ele, quando, após um momento de tristeza e incerteza, a energia renascia e a tentação do sexo estava viva. Era o que estava a acontecer, enquanto os seus corpos chocavam e ambos murmuravam coisas que ninguém percebia. Naquele momento o rosto de Ding Ling era meigo e simples, como se não tivesse nada a esconder. E, no entanto, ambos sabiam o segredo que compartilhavam. E de que nunca mais tinham falado.

18.

Sofia Palha conhecia a versão mais tortuosa de Joaquim José. Se dissesse que mentira, não estava a mentir. Se dissesse que não mentira, estaria a mentir. Não importava agora. Os seus sonhos estavam comprometidos, pelo menos em Macau. Ela poderia dizer que não sabia de nada. O seu único ponto fraco era a relação com João Carlos da Silva. Tudo o resto eram suposições, teorias, imaginação. Não existiam provas. Enquanto se dirigia para o escritório do seu marido, arquitectava um plano.

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Para Joaquim Palha a derrota de Fu Xian e de Max Wolf deixara-o num beco sem saída. Tinha agora a certeza que o tenente Amoroso fizera o jogo dos seus inimigos, o Governador e Ding Ling. Como conseguira ele ser tão dúplice? Max avisara-o para não confiar nele. E Sofia, que sabia ler os homens como ninguém, também. Mas ele confiara nas suas capacidades de persuasão, testadas durante anos em Macau com os melhores resultados. Sabia que nada contara a Félix Amoroso sobre o que planeavam fazer. Como teria ele descoberto?
O seu caminho estava agora bloqueado. A discussão com Max Wolf mostrara-lhe que lhe restava pouco espaço de manobra: ou o ódio dos governantes ou o desprezo dos seus opositores. Ou se fazia invisível ou seria erradicado. Que fazer? Fugir de Macau? Meios não lhe faltavam para fazer isso, mas seria era a vida que coroaria todos os seus sonhos? Poderia sobreviver a tudo mas não ao gozo dos seus antigos amigos, que se rapidamente tornariam inimigos. Poderia voltar a Portugal e recomeçar de novo. Mas as notícias chegariam a qualquer parte. Renegar o amor à pátria onde nascera e aliar-se a um alemão para conseguir benefícios contra os interesses de Portugal, quaisquer que estes fossem, não tinham forma de ser apagados. Os mexericos venceriam o que dissesse para se defender. Regressar a Portugal era impossível. Restava-lhe fugir para uma cidade qualquer da Ásia. Ou então tomar a decisão final.
Quando Sofia Palha chegou ao escritório de Joaquim este estava deitado de forma grotesca na cadeira. A pistola caíra para o chão. A cabeça tinha sofrido o impacto da bala que o matara. Nada a impressionava. Quando soube o que acontecera no vapor, Sofia sabia que se tinha despoletado o início de um caminho trágico. Não havia remédio. Ficara em casa e abrira uma garrafa de vinho tinto Periquita e fora bebendo e olhando pela janela, de onde se viam as águas calmas do mar. Assim esteve até ao momento em que recebeu a mensagem da secretária de Joaquim a dizer-lhe o que tinha acontecido. Foi como um relâmpago que interrompeu a sua letargia.

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Tinha construído uma ficção de vida. Até aí pensava habitar num mundo ordenado, estável, que ela própria ajudara a construir com precisão matemática. Tinha um fim previsto. Os meios para lá chegar poderiam ser pouco morais, mas o poder ou o dinheiro nunca se tinham preocupado com pormenores dispensáveis. Todos, conhecidos, amigos, aliados, eram peões de um jogo mais vasto. A sua fria ambição permitira-lhe guiar as ideias e as acções de Joaquim José. Mas a tempestade regressara forte, como sempre acontecia em Macau. Devia ter antecipado possíveis acontecimentos futuros que pudessem fugir às suas rédeas. Só que era impossível suster o vento com as mãos e os furacões surgiam do nada, indomáveis. Em Macau deixavam sempre um rasto de destruição.
Vasculhou as gavetas da secretária de Joaquim, mas nada de incriminatório encontrou. Depois ordenou que informassem a polícia do que se passara e voltou a casa. Sentou-se defronte do espelho e vislumbrou-se demoradamente. Continuava bonita e atraente. Era ainda capaz de conquistar qualquer homem. Talvez o seu futuro não estivesse completamente traçado. Estranhamente não sentira nada perante o corpo de Joaquim. Reagira como se se tivesse libertado de um fardo. Agora só tinha a certeza que o mundo de amáveis monotonias tinha-se esfumado. Sentia isso, mas não chorava. Só quando o amor não existe é que se costuma sentir a sua ausência, pensou. Só lhe interessara, até aí, o luxo do domínio e do poder. Odiava o tenente Amoroso, o Governador e a sua mulher, Max e as suas promessas, a sinuosa chinesa Ding Ling. Odiava Macau. Suportara aquela cidade porque queria voltar a Lisboa como uma senhora rica e poderosa. Franziu a testa. Talvez ainda fosse possível. Afinal, para ela, o adversário de hoje poderia ser o correligionário de amanhã. O amigo de amanhã podia ser o inimigo de hoje. Seguiria o ritmo do vento, conforme soprassem as circunstâncias e as conveniências. Um dia Joaquim dissera-lhe que ela tinha menos luzes do que um barco pirata. Sorriu com o pensamento.

(continua)

20 Ago 2021

O Jogo das Escondidas – Capítulos 40 ao 50

– E a tua protegida, Wei Zi, já soube algo do subordinado de Max Wolf?
Antes de responder Ding Ling foi em busca de um roupão de seda e vestiu-o.
– Ele sabe alguma coisa. Mas não sabe tudo. Se o soubesse teria dito a Wei Zi. A questão resume-se a uma: ópio ou heroína? É isso que separa Macau do senhor Wolf. Se ele introduzir aqui a heroína destrói o negócio de muita gente. Mas ele está disposto a isso, mesmo que tenha de destruir os seus opositores. Para isso promete riquezas sem fim a piratas e elementos das tríades. É assim que se cegam os homens sem princípios. É preciso fazê-los acreditar, não no presente, mas no futuro. Desviar a sua atenção para o que ele vos pode vir a dar. E não o que ele te dá agora. Assim conquistam-se os tolos. Poderá ser uma luta terrível.
– Acho que estávamos mesmo a necessitar de um beco sem saída.
– Querido tenente, o problema não está muitas vezes na infinita crueldade de alguém. Está mais na sua cordialidade. Talvez por isso o senhor Wolf tenha escolhido a estratégia errada. E é isso que o pode fazer perder a guerra que se adivinha.
Ding Ling não lhe contou que Wei Zi conseguira saber a estratégia de Wolf para conseguir dinheiro. Ele tinha a mesma intenção que ela: assaltar o barco que transportaria ouro e dinheiro de Macau para Hong Kong. Wei Zi soubera quando, como e onde ele atacaria. O tenente começou a vestir-se, sem deixar de olhar para ela. A voz da chinesa voltou a escutar-se:
– Recorda que uma cobra nunca se pode transformar num dragão. Houve um sábio na China que nos disse que um sábio que se dedica a pôr ordem no mundo deve saber de onde vem a desordem, e só assim poderá cumprir a sua missão.
– Quem disse isso?
– Um senhor chamado Mozi. Para ele era claro que a desordem tinha origem na falta de amor mútuo.
– É isso que separa as pessoas?
– Sempre o será, não te parece querido tenente?
– Para isso é necessário que elas saibam distinguir o sabor amargo do que é doce. E nem sempre o sabem.

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– Esse será sempre o eterno problema dos homens. Por isso, na história da China quem atacou bem sempre ganhou. Quem teve dúvidas, perdeu. A vida também é assim. Foi assim que me conquistaste o coração.
– A ti ninguém te conquista. Tu deixas-te conquistar.
– Às vezes tu não me compreendes. E eu não te compreendo. Há assim algo de comum entre nós.
Amoroso sorriu.
– Não podes cometer um erro sem aprender uma lição, adorável Ling.
– Já pareces um chinês a falar, querido tenente.
– Aprendi contigo.
– Talvez. Mas não esqueças que quem nada deve é sempre senhor do seu destino.
Amoroso sentiu que alguém estava na escuridão. Não se enganou. Bei Li aproximava-se. Trazia um vestido transparente que deixava visível todo o seu corpo. Aproximou-se de Ding Ling e os seus corpos tocaram-se, por momentos. Ambas ficaram a olhar para ele. Mas o tenente não reagiu e saiu.

11.

O Bazar guardava segredos que nunca revelaria. Quando a noite caía e os silêncios e a escuridão convidavam ainda mais ao sigilo, as suas ruas estreitas e becos sem saída escondiam ainda mais um mundo que não se regia pelas leis escritas nos centros do poder. Ainda não anoitecera, mas o Bazar recordava, a Félix Amoroso, Alfama. Talvez fosse isso que aproximasse os portugueses dos chineses, o seu gosto pelos labirintos de onde não sabiam sair. Caminhava calmamente, mas sentia que olhos invisíveis o seguiam. Voltou-se mas não viu ninguém. Era uma sensação estranha, mas sabia que alguém seguia a sua sombra. O tenente tinha consciência do seu erro. Não fora prudente e tornara-se um alvo. O calor impiedoso ofuscava o seu pensamento. Não tinha nenhum mapa do tesouro entre mãos, que pudesse ser cobiçado. Era apenas o senhor de suspeitas que ameaçavam alguém. Percebera que, ao alertar Sofia Palha e, eventualmente, Max Wolf, poderia estar a pôr em causa um grande negócio. E quem queria lucros não se importava de colocar alguns prejuízos alheios nas contas finais.

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Chegou à Rua do Matapau e escutou o som de diferentes pássaros, cantando o que parecia uma pequena ópera. Vinha de uma loja que conhecia, e onde há algum tempo adquirira um periquito. Parou por um momento para escutar a agradável disputa entre os pássaros, fechados em gaiolas. Depois passou por um pagode, de onde vinha um cheiro agradável do sândalo das oferendas queimadas. Lá dentro, sabia, um Buda observava os que ali vinham depositar as suas preces num altar. Entrou depois na rua das Estalagens. A actividade ainda era ruidosa e frenética. Chineses andavam de um lado para o outro, transportando mercadorias e produtos diversos. Muitos deles destinavam-se aos juncos do Porto Interior, que não ficava longe. Numa das lojas viu algumas pérolas, colares e braceletes. Pensou em comprar uma para Ding Ling. E assim fez. Adquiriu uma bracelete de jade, depois de ter regateado o preço. Pagou em patacas e dólares de Hong Kong.
Sentiu uma espécie de felicidade quando colocou a bracelete no bolso do casaco. No ar notava-se um odor de ópio que vinha de uma casa de chá. Muito perto estava a cozinha aberta para a rua assinalada pelo padre Benedito Augusto para o encontro entre os dois. Pediu um pouco de arroz com porco assado e um chá. O chinês ficou a vê-lo comer e beber e, depois, fez-lhe sinal para avançar até dentro do beco. Amoroso seguiu por um corredor muito estreito entre paredes esverdeadas da humidade até que chegou a uma porta que estava entreaberta. Entrou e, ao fundo, na semi-obsuridade, estava sentado um homem, com um cigarro que não estava aceso entre os lábios, e uma navalha na mão direita que ia retalhando um pedaço de madeira. Levantou a cabeça e fez um sorriso acolhedor. Benedito Augusto, de vez em quando, marcava encontros em locais que o tenente desconhecia, mas que faziam parte da cidade chinesa de Macau, o seu Bazar. Ali o padre movia-se como se estivesse em casa. E quem ele convidava entrava num labirinto de que não conhecia a saída. Era a sua forma de mostrar que controlava os movimentos e as informações. Amoroso não tinha dúvidas que ele criara uma rede de contactos muito rica e secreta.

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– Não sou um fantasma, tenente. Pode aproximar-se e ver que sou real. Se quiser tem aqui uma cadeira e uma cerveja para beber. Ou um cigarro, se quiser fumar.
Ao contrário do que dizia, Benedito gostava de se mostrar como um fantasma que governava as almas a partir do mundo subterrâneo. O universo que muitos não conheciam e outros não desejavam conhecer. Não era inocente esta escolha. No seu jogo, Benedito gostava de ser dono do baralho de cartas ou das das peças de mahjong. Ali não se estava num território neutro. Amoroso sentou-se e agarrou na garrafa de cerveja que o padre lhe estendeu. Bebeu um pouco e voltou a focar a atenção nele.
– Este mundo é curioso, não é tenente? Hipnotiza-nos. Vai mudar, não tenhamos dúvidas. Eu, por certo mudarei com ele. Mas ao contrário da sua amiga Ding Ling, não o quero mudar. Vou adaptar-me ao que me espera. E o tenente, que pretende fazer? Adaptar-se ou mudar o mundo?
– Eu já tentei mudar o mundo, meu caro Benedito. Mas sobre o futuro tenho apenas uma certeza: não conheço as respostas para a pergunta que me estás a fazer.
Benedito fez um sorriso e acendeu o cigarro. O seu rosto, por momentos, pareceu ficar rijo, como pedra.
– Realmente a minha pergunta era errada. E é inútil procurar respostas para questões como esta. Ninguém sabe que decisões tomará. Eu compreendo-o, tenente. Percebo como se sente. Não há muito tempo, eu também me sentia perdido. Sem amigos. Sem identidade. Achava que não havia vida para mim que fizesse sentido. Melhor, sentia que não havia via nenhuma. Depois houve um momento, em Singapura, em que descobri o meu espaço.
Fungou, antes de continuar:
– Não me pergunte o que aconteceu. Não lho vou dizer. Mas há sempre uma vida. Há sempre um futuro, se o quisermos construir. Mas há limites para o que sonhamos sozinhos. E se amamos alguém compreendemos melhor esses limites. Mas eu não sou como o tenente. Acho que há vida para lá do amor por uma mulher.
– Acha mesmo isso?
– Para percebermos essa dura realidade temos de ter informação. E termos bons espiões.

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Deu uma pequena risada. E tentou ver a reacção que as suas palavras despoletavam na cara de Amoroso. Este manteve-se silencioso.
– Esta conversa não nasceu do acaso, ou porque me apetecia vê-lo. Tenho uma uma informação útil para lhe dar. Fu Xing colocou ao serviço do alemão Max Wolf a sua rede de espiões e de marinheiros. O negócio de heroína parece-lhe ter futuro. Pelo que sei, Macau será apenas um entreposto discreto para Hong Kong. Ali é que pensam fazer dinheiro. Aqui têm já um depósito bem defendido. Max prometeu-lhe que este pode ser o início de outros negócios. Legais. E ele quer a minha colaboração.
Amoroso fez um sorriso cínico e olhou-o fixamente. Seria possível ler a alma do padre Benedito? As suas motivaçõs eram obscuras e a sua história também. O tenente tinha recebido um relatorio de um dos seus novos agentes, colocado em Singapura. E percebera que o homem que tinha defronte dele tinha outras vidas. Não eram cartas que utilizaria agora, porque o jogo era outro. Mas, no futuro, nunca se saberia. Até porque ele sabia demasiado sobre o tenente.
– E que vais fazer, Benedito?
– Não tenho como fugir à teia de Fu Xing. Ele sabe que caminhos trilho e onde me encontrar. É um inimigo que não desejo ter.
– Compreendo. Farás o seu jogo. E o meu. E, sobretudo, o teu. Será um equilíbrio difícil, senão impossível. Tu o saberás. A luz é só a outra face das trevas.
– Também tem de decidir de que lado do tabuleiro está, meu caro tenente. O senhor Palha e a mulher não lhe darão tréguas. E investigar a morte do senhor Silva não lhe traz amigos. Pelo contrário. Eles cercam-no. Já descobriu mais alguma coisa?
– Não. Mas há indícios.
– Cuidado, tenente.
Era uma despedida. Benedito acendeu outro cigarro e ficou a olhar para Amoroso, enquanto este caminhava para a saida. Cá fora, a noite conquistara o Bazar. A única luz que via era a de um candeeiro de petróleo, junto a um local onde alguém vendia comida. Ouviu vozes abafadas. Na sombra estavam homens, mulheres e crianças sentadas em pequenos bancos ou no chão a comer o que as pequenas taças que tinham na mão continham.

47

Continuou a caminhar para sair do Bazar. Ouviu um sussurro à sua esquerda. E um estronho, seguido de um silvo. Sentiu um impacto forte no ombro esquerdo. Caíu com o embate. Levou a mão ao braço e depois retirou-a cheia e sangue. Procurou a sua pistola, mas antes de o conseguir fazer, levou um pontapé na mão direita. Olhou para cima. Viu o cano de uma pistola apontada a ele e, mais acima, o de um chinês que o olhava fixamente. Ouviu a sua voz:
– Zōi gīn!
Ia puxar o gatilho. Mas o som do tiro não saíu da sua pistola e o homem que estava defronte de si caíu. O seu sangue jorrou para cima do tenente. Espantado, viu o rosto de Li Bei e de outros dois chineses que empunhavam pistolas. Agarraram-no e puxaram-no. Do nada apareceu um riquexó para onde o transportaram. Percebeu que seguiam a caminho da Rua da Felicidade. Antes de chegarem à “Noite Tranquila” pararam numa casa sem luz à porta e levaram-no para dentro. Amoroso deitou-se numa cama e procurou tirar a sua pistola Luger do coldre. Não lhe servira para nada, porque o ataque fora rápido. Alguém começou a tratar-lhe da ferida.
– A bala entrou e saíu do seu braço esquerdo. Não vai haver problemas.
A voz de Li Bei era reconfortante. A do tenente, um murmúrio:
– Como sabiam que estava ali?
– Ding Ling estava preocupada consigo. Tem sido seguido, dia e noite, tenente. Para seu bem. Descanse um pouco. Depois levá-lo-ei até ela.
Passada quase uma hora, em que dormitou, Bei Li veio acordar o tenente. Depois levou-o até ao “Noite Tranqila”. Ding Ling esperava-o. Agarrou num copo com vodka e deu-lho.
– Bebe. Faz-te bem.
Ele assim fez. O olhar dela era preocupado, mas doce. Disse, com uma voz aveludada:
– Sabes, às vezes sonho que quando estamos na cama, colados um ao outro, há algo no meio. Uma pistola. Pergunto-me: será sempre uma pistola o que nos junta e nos separa?
Ding Ling atravessava a fronteira do silêncio que tinham jurado respeitar. Falava do passado e, também, do presente. Fora uma pistola que os juntara. Aquela Luger que agora não lhe servira para nada.
– Queres falar disso, querida Ling?
– Não. Mas penso nisso.
– Porque me mandaste seguir?
– Foi o que fiz de bem, não foi?
– Talvez. Neste momento estaria morto, por certo.

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Ela não respondeu. Ele fechou os olhos e depois procurou no bolso do casaco cheio de sangue e tirou uma bracelete de jade. Deu-a a Ding Ling:
– É para ti. Comprei-a antes do atentado.
Ela aceitou-a e retorquiu. Não simulou os seus sentimentos:
– Já não sabemos o que é a bondade. Ficamos surpreendidos quando nos confrontamos com ela. Obrigado.
Ele sorriu e depois disse:
– Imaginas quem foi? Só vejo três hipóteses. Max Wolf. Joaquim Palha. Sofia Palha.
– Eu riscaria o primeiro. Não lhe interessa problemas com as autoridades portuguesas. Os outros, sim. Podem ter tudo a perder com a tua interferência.
Amoroso levou a mão ao braço. A dor continuava lá, para o recordar dessa noite.
– Precisas descansar, querido tenente. Eu estarei aqui. Mas tens de dormir.
Ding Ling falou com doçura. O seu rosto enigmático estava agora exposto à luz que iluminava a sala. Amoroso sentiu-se protegido. Algo que não acontecia há muito tempo. Muitas horas depois, Félix Amoroso foi levado até a um riquexó por Bei Li. Esta, com voz cândida, disse-lhe:
– Tanto somos filhos do que queremos recordar como do que queremos esquecer. Mas é bom que o tenente não esqueça o que se passou.
– Não esquecerei.
– Faz bem, tenente. O problema não é a dor nem o amor. É sempre as desculpas que as pessoas dão para ficarem com o dinheiro. E sobre o que fazem para o ter. O resto, seja a violência, as traições ou a guerra não são os problemas principais. Só o dinheiro o é.
Amoroso concordou. A luz encadeava-o. Despediu-se e partiu. O caminho, cheio de solavancos, foi penoso. Quando chegou a casa deitou-se, relembrando as últimas horas. Depois foi lavar-se e mudar de roupa. Quando voltou à rua foi até ao Grémio Militar para almoçar. Comeu um bacalhau cozido com grão que lhe fez recordar uma velha tasca junto ao quartel do Carmo, em Lisboa. Cumprimentou colegas militares e depois saiu, procurando evitar o sol inclemente que queimava as ruas e os prédios de Macau. Sentia-se dorido mas mais determinado do que nunca.

49

12.

Às vezes as coisas são o que parecem. Para Ding Ling isso era óbvio. Sentiu a presença de Bei Li e o seu corpo ganhou vida. Olhou para a bracelete de jade verde que Amoroso lhe oferecera e colocou-a no pulso esquerdo. Era luz num mundo de escuridão, onde forças contrárias se opunham. Como num poema antigo chinês, sentia-se muitas vezes a dançar com a sua própria sombra. Mas, em momentos como aquele, parecia que a vida poderia ser um romance. A vida era sempre a história de um caminho e de um caminhante. A dela, sempre entre a força da água e a do fogo. Não sabia, nem podia renunciar, à missão a que se comprometera. Mas olhava para Amoroso ou para Bei Li e sentia que havia um espaço para a esperança.
Nas longas noites observava muitas vezes aqueles que no “Noite Tranquila” buscavam a fortuna e que estavam perdidos num mundo sem passado e sem futuro. Presos por fios num presente onde eram simples marionetas. Personagens de um jogo de sombras que não manipulavam. Eram refugiados do tempo, sobreviventes de um mundo que não tinha contemplações, muitas vezes fantasmas de si próprios, incapazes de ver o reflexo dos seus fracassos. Jogavam a vida numa noite. Viam-se ali, com dinheiro e com uma garrafa e uma mulher nas mãos, e julgavam-se eternos. E senhores de algo que nunca seria seu. Tal como aqueles que se viam ao espelho e imaginavam ser estadistas ou líderes. Mas então chegava o vento forte e destruía esse país de fantasia onde reinavam.
A quem é que interessava a verdade? A ninguém. Bei Li aproximou-se e passou-lhe a mão pelo pescoço e pelo cabelo. Arrepiou-se e Bei Li não deixou de notar isso.
– Os nossos homens estão prontos, Ling.
– Está na hora, não é? Pensas que temos a hipótese de sobreviver a tudo isto? Penso nas coisas que destruí para chegar a este momento.
– Que destruímos.
– Não me esqueço de ti, querida Bei Li. A confiança é uma coisa estranha. Quando te conheci percebi que haveria uma ligação indestrutível entre nós. Não me enganei.
– Nem eu.
– Sim, foi um prémio para ambas. Porque muitos vêem a vida como um tráfico. É certo que passamos a vida a fazê-lo. Traficamos tudo. Mercadorias, ideias, afectos, recordações, amizades. Alguns fazem-no por gosto. Outros, por necessidade. Outros ainda por obrigação. Nós traficamos confiança e lealdade. É uma coisa bela.

50

Bei Li nada disse mas o seu olhar mostrava o que sentia. Amor.
– Vamos?
O caminho até ao Porto Interior foi feito através das ruas mais escuras. Quando ali chegaram, Li Bei dirigiu-se aos homens e disse-lhes o que esperava deles. O ataque à casa dos seus inimigos teria de ser inesperado, rápido e fulminante.
Aquela hora Amoroso regressara ao refúgio de Benedito, aquele local escondido da rua dos Mercadores. Este, quando o tenente entrou, não se mostrou surpreendido.
– Já sabia que tinhas sobrevivido. Sentia o que poderia acontecer. Mas estava longe de imaginar que te tentariam matar aqui, no coração do Bazar.
– Talvez tenham tentado por ser aqui. Para a polícia seria o resultado de um assalto numa zona onde os portugueses não costumam vir à noite.
– Mas tu és militar. Tens uma missão secreta. Não acredito que o Governador não mandasse investigar o que te pudesse ter acontecido.
– Quem sabe?
Benedito não respondeu. Sentou-se para fumar um cigarro.
– Percebeste agora o perigo que corres. E que eu também me arrisco a correr. Quem sabia que estavas aqui, estava ciente de que vinhas ter comigo.
– Quem sabe que vives aqui?
– Fu Xing. Alguns dos meus contactos. Quem vive aqui perto. Eu espio. Mas também sei que posso ser espiado.
A sala onde estavam praticamente não tinha móveis. Três cadeiras, uma mesa onde estava uma lamparina que pouca luz dava e uma escrevaninha encostada a uma das paredes. A simplicidade perfeita. Se tivesse de fugir, Benedito pouco tinha para levar. Este disse:
– A luz garante a segurança na escuridão. Por isso gosto de me refugiar nas sombras. Mas não é suficiente. Especialmente neste mundo onde todos preferem evitar mostrar a cara. Meu caro tenente, estás a aprender uma arte muito difícil e arriscada. Ver sem ser visto, saber sem dar nada, ou quase nada, em troca, seduzir sem ser seduzido. Há quem tenha lido os mesmos livros.
Amoroso aconchegou-se na cadeira de bambu onde se sentara. O formigueiro gerado pela ferida no braço não ajudava à sua concentração. Sentia a falta de ópio para afastar as dores. As físicas e as da alma. Mas isso agora era secundário. Sentia que estava próximo do assassino de João Carlos da Silva. O atentado não fora por causa dos negócios de Max Wolf, estava convicto. (Continua)

23 Jul 2021

O Jogo das Escondidas – Capítulos 31 ao 40

XXXI

Amoroso não percebia o que Benedito invejava na sua vida. Mas não replicou. Mudou de assunto:
– Bem, se Max Wolf quer guerra, vai tê-la. Ela não dará a outra face. Se é só uma forma de pressão, não resultará. O bom senso de Ding Ling é escuro. Selvagem.

– Sabe, tenente, Macau é apetecível. Não sei qual é o verdadeiro jogo de Wolf. Se quer só aproveitar esta desorientação portuguesa aqui e em Lisboa. Não sabemos se há mesmo negociações para vender o território à Alemanha. O dinheiro decidirá. E o patriotismo também. Só que Max pode querer aproveitar a brecha e abrir espaço para se estabelecer. Sabe como é. Dêem poder a um homem sobre os outros, e não demora muito até que ele perceba que não há limites para o seu próprio poder. E nenhum homem a quem se der esse comando será honesto durante muito tempo.

Amoroso tossiu. Estava demasiado fumo.
– Sim, qual é mesmo o jogo de Wolf? E qual será o futuro de Macau?

Os dedos da mão direita de Benedito Augusto cirandaram à volta do copo de cerveja que tinha à sua frente. Disse:
– Portugal, para mim, já não existe. É só uma ideia. Está lá longe. Macau está aqui. E sempre se salvou. E isso interessa-me. É a minha promessa de salvação na Terra. Quando cheguei à Ásia, buscava um clarão, que me iluminasse o caminho. Como dizia alguém, até aí só me tinham dado uma pequena vela para acender. Vi então as cores de um panchão. Encheu-me o coração. Percebi que era possível viver mais perto dos céus.

– Porque te tornaste jesuísta, Benedito?
– Fui um miúdo desobediente. Queria ordem. Com os jesuítas aprendemos a obedecer. É a nossa formação. Funcionamos como algo sem vontade ou juízo, que pode ser mudado de um lado para o outro sem resistência. Sentimo-nos leves. Depois foi a sua história. No século XII viviam na pobreza e abdicavam de qualquer adorno.

Vestiam-se de modo simples, só com batina e capuz, aprendiam a suportar a fome, a sede, a dormir sem tecto. Eram despojados de tudo. A simplicidade perfeita. Que coisa pode ser melhor do que podermos sair daqui para irmos embora, sem nada para transportarmos, para além do nosso corpo e espírito?
– E como concilias isso com o dinheiro que te pago?
– Por um espírito de missão. Só é pecado o que se julga que é. E acredito numa salvação que não tenha medo da fogueira.

XXXII

Amoroso já não tinha a certeza que existia a virtude. Os seus olhos brilharam.
– Onde andará Max Wolf?
– Ele vai aparecer. Ou me engano muito ou, uma noite destas, irá visitar Ding Ling. Ele precisa dela.
– Vou esperar uns dias. Mas depois terei de actuar. O Governador vai perguntar-me o que se passa. E eu não sei.
– Saberemos. É certo que, neste mundo, somos apenas ladrões do tempo. Um dia destes tornamo-nos dispensáveis e colocam-nos uma armadilha onde cairemos que nem tordos.
– Somos fortes, Benedito.
– É bom que pensemos isso.
Quando Amoroso o deixou, Benedito Augusto pediu outra cerveja. Não esperava ninguém. Queria estar sozinho e esconder-se, mais uma vez, do mundo. E da sua vida. Preferia a noite às horas mais malignas do dia, do calor. Pensou no tenente Amoroso, já corrompido, sem o perceber, pelo Oriente. Mesmo que dissesse o contrário, não queria trocar esta vida, de álcool, de mulheres, do jogo, das sombras, pelo que restava do império português. Mas a solidão e a bebida e o ópio deixavam marcas. Mesmo se tinha uma mulher forte a seu lado, Ding Ling. Não conseguira contar tudo o que sabia ao tenente. Talvez porque quisesse ter os seus próprios trunfos nas batalhas que se desenhavam. Ou por medo. Ou porque o seu seu instinto de sobrevivência era superior a qualquer lealdade.
Benedito Augusto pensou na sua própria vida e nos segredos que não partilhava com ninguém. Nem podia partilhar se queria continuar a dizer-se padre jesuíta. Desaparecia durante semanas de Macau. Secretamente, ia até Hong Kong ou Singapura, onde conhecera uma rapariga de remota origem portuguesa a que prometera vezes sem conta que deixaria de ser padre e casaria com ela. Nem sempre se sentia cómodo com estas diferentes máscaras. Mas eram elas que davam sentido ao conjunto de segredos que acumulara desde que deixara Portugal em 1910. Agora sabia que já não abandonaria a Ásia. Aqui perdera uma vida e ganhara algumas outras.
Bebeu o resto da cerveja e pediu outra. Recordou o seu encontro, nessa tarde, com Fu Xing no Grande Hotel, que ficava no extremo oriental da Avenida Almeida Ribeiro. Reformara-se da pirataria e, agora, pensava dedicar-se a negócios legais em Macau. Falava-se que iriam ser licitados os monopólios do tráfico de ópio e da lotaria. E Fu Xing, que tinha dinheiro para investir, desejava ter uma percentagem nesse lucrativo negócio.

XXXIII

Tudo era um jogo, como ele dissera com um sorriso maldoso:
– Vendemos as nossas almas, jogamos com elas e voltamos a ganhá-las.
Fu Xing deixara de usar camisas encarcadas de suor devido ao calor sufocante. Agora vestia um fato de linho claro e ia deixando crescer um bigode. Não cortara, claro, os laços com os antigos companheiros. Estes tinham juncos e lorchas cheias de armamento em pleno Porto Interior, incluindo modernas espingardas Winchester. Pareciam barcos de pesca ou de transporte de mercadorias mas, na realidade, a sua actividade era outra. A polícia não ía ali, por isso não era necessário estarem muito disfarçadas. Fu Xing não temia o passado. Afinal, por ali os piratas eram prezados. Gastavam muito dinheiro e os portugueses desviavam o olhar se eles circulassem, sem muito ruído, pela Rua da Felicidade ou pelo Porto Interior, como se não os vissem.
Fu Xing ocupava agora parte do seu tempo a encontrar-se com comerciantes chineses. O seu centro de operações era o Grande Hotel, onde também podia jogar fantan. Perto do mar, encontrara um refúgio perfeito em terra: um lugar com amplas salas e confortáveis quartos. Só o cenário mudava, porque o resto era igual: ópio, mulheres, falsos amores e traições. Benedito Augusto era agora o seu correio em Xangai e Singapura. Levava mensagens para os seus contactos e trazia as respostas de volta. Ninguém o pressionava, porque andava disfarçado de padre. Perguntara a Benedito:
– Quando partes para Xangai? Tenho recados para levares.
– Dentro de dias, mas ainda não sei. Tenho, primeiro, de resolver um problema aqui.
– Tu tens problemas?
– Soou-me que os alemães poderão comprar Macau. E se isso acontecer…
– Estarás seguro.
– Como sabes?
– Ontem esteve aqui um alemão. Como se chama ele…? Max Wolf. E fez-me uma bela proposta.
– Um negócio?
– Sim. Ele não sabe se Portugal vai vender Macau. Se vender, muito bem. Se não vender, nada correrá mal. O seu objectivo é outro. Ganhar dinheiro. Muito dinheiro.
Benedito viu o olhar guloso de Fu Xing.
– Que te propôs o alemão?

XXXIV

O chinês olhou-o desconfiado, mas depois deu uma pequena risada.
– Posso contar-te. Tu poderás ser muito útil. O alemão tem heroína, uma droga muito mais potente do que o ópio. Traz euforia e também conforto. Os mais novos vão preferi-la. Ele tem uma fábrica que transforma ópio em morfina e, depois, em heroína. Falta a distribuição. E é isso que ele quer que eu faça. Ele tem o produto e eu os meios. Acho que é um bom negócio. E muito rentável.
– E como sabes que isso não é uma grande mentira?
– Padre, eu fui pirata, mas sei mais do que aparento. E sei ler as pessoas. Também tenho bons informadores. Max Wolf tem um químico alemão a trabalhar com ele em Xangai. Numa fábrica escondida, de que nem as tríades desconfiam. Fica numa fábria de cerveja. Wolf e o químico trabalharam numa empresa alemã, a Bayer. Onde aprendeu a extrair a heroína. Eles são negociantes, padre. Eu também o sou. O dinheiro une-nos.
Nos olhos de Fu Xing havia determinação. Por ali não navegavam fantasias contadas por marinheiros e soldados da fortuna, e que muitas vezes embalavam os sonhos de quem as escutava. Estava certo das suas escolhas e elas tinham a ver com o poder e a riqueza. Nada mais. Benedito levantou-se e saíu. Inspirou o aroma da noite, ainda contaminado pelo odor da pólvora queimada. O incêndio ainda não se tinha extinguido. Vivia-se uma falsa paz. Parou, fascinado pelas as águas do delta do Rio das Pérolas e olhou para os barcos chineses com a sua cobertura arrendondada, onde se abrigavam as famílias. Pequenos face às lorchas e aos poderosos juncos de grandes velas. Fora o mar que trouxera os portugueses até Macau. Fora ele que permitira que muitos deixassem Portugal, terra onde era difícil deixar de ser pobre. Mas o mar cansa os povos. Alguns, como ele, queriam afastar-se do mar e dos seus fascínios e encontrar a paz em terra. Onde as águas revoltas não o perturbassem. O mar tudo prometia. E tudo afogava.
Caminhou pelas ruas, polvilhavas de chineses, sentados em pequenos bancos, ou no chão, a comer arroz branco, cozido e sem sal, com pequenos edaços de carne e de peixe e legumes salteados. Habituara-se ao aroma forte das comidas chinesas, dos seus fritos, que como noutas cidades orientais, eram omnipresentes. Sabia para onde se dirigia. O pequeno quarto onde dormia não ficava longe.

XXXV

O mundo muda. Isso é inevitável. Talvez isso seja a única coisa que é inevitável, dizia, com voz serena, o governador Rodrigo Rodrigues. E acrescentou:
– Gosto da forma como vê o mundo e as suas mudanças, tenente. No fundo, como ele é. Observa as verdades e as mentiras e sabe como navegar entre essas duas grandes ondas sem ser submerso.
Félix Amoroso sentiu-se tocado pela amabilidade:
-O senhor tem uma visão demasiado bondosa de mim e das minhas acções.
– Até agora não me desiludiu.
Estavam na varanda do hotel Boa Vista, um local que parecia atrair ambos quando necessitavam de falar de coisas que consideravam importantes. O tenente transmitira-lhe as novidades sobre o assassinato de João Carlos da Silva. Tinha algumas pistas, mas não tinha certezas. Disse que tinha ido à casa deste e a inspeccionara mas escusou-se a mencionar o que descobrira lá. Especialmente uma carta de amor escondida por detrás de um espelho e assinada apenas com uma inicial. Amoroso não tinha certezas sobre quem a enviara. Mas suspeitava.
Lá dentro a festa continuava, num daqueles fins de tarde irrepetíveis de Macau. Escutava-se o som da banda de Borromeo Lou, um pianista de grande talento. Viera das Filipinas, e era a maior atracção do Bodabil, uma espécie de jazz. O sucesso que alcançara em teatros de Manila, como o Savoy e o Lux, e também no Carnaval da capital filipina, fora presenciado por Ana Ledesma, uma filipina que casara com um advogado português de Macau. Para ela era mais do que uma banda, porque eles prometiam um espectáculo total. Aproveitando uma ida de Lou a Hong Kong, tinha conseguido desviá-lo até ao Boa Vista, prometendo-lhe um público entusiástico. Muitos dos temas eram baladas sensuais cantadas por Miss Toytoy, a vocalista chinesa e uma artista completa. Convidavam à dança e ao amor. Mas o espectáculo era mais vasto. Amoroso gostara muito do barítono Datu Mandi (de origem Moro, que também cantava excertos de óperas).

XXXVI

Barromeo Lou, no início do espectáculo, dissera: “Se estiverem doentes, venham e ficarão curados. Se estiverem quase a morrer, venham e dêem uma boa gargalhadas antes disso acontecer. Se estiverem bons, venham e ajudem a transportar as vítimas da fobia do Jazz”. Ninguém deixara de rir. A boa disposição reinava. E depois dançara-se. Lá estava a nata da sociedade macaense, incluindo Joaquim José Palha e a mulher, Sofia. Palha aproximara-se de Amoroso e inquirira-o sobre o acordo que lhe propusera. O tenente respondera-lhe que falaria em breve com o Governador. Não se tinha esquecido. Palha afagara-lhe o braço e sussurara:
– Tem tudo a ganhar, tenente. Sabe que sim.
Deixara-o e voltara para conviver mais um pouco com os seus amigos. E dera espectáculo, quando dançara com Miss Toytoy. Era um excelente dançarino, como Amoroso podia testemunhar.
O Governador colocou um cigarro entre os lábios e acendeu-o. Após a primeira baforada, olhou para o tenente e disse:
– Uma das primeiras coisas que aprendi na vida é que é uma má ideia conheceres os teus heróis porque, geralmente, eles decepcionam-te.
– Aconteceu-lhe isso, Governador?
– Acontece a todos nós. Na política é fácil isso suceder.
Amoroso sentiu que o Governador perdera algumas ilusões que tvera no passado. Talvez com outros republicanos e membros da Maçonaria como ele.
– Ainda assim as pessoas precisam de memórias. Tal como as nações. Sem elas, o que resta? Nada. O que seria de Portugal sem as suas memórias? Sem um passado de que nos possamos orgulhar, como podemos ter alguma fé no futuro? Não é por acaso que nos agarramos a ele. Talvez porque não haja mais nada a que nos podemos segurar para não cairmos de vez. Foi esse o trunfo dos republicanos. Quando a Monarquia não soube o que fazer face ao Ultimato inglês, os republicanos recuperaram Luís de Camões, o patriotismo e o passado. Isso conquista os corações e as almas quando sentimos que o mundo está a ruir à nossa volta. Só que isso não chega.
Eram palavras de um homem cansado. Talvez desiludido. Ou então, isso era fruto daquele entardecer e daquela música que fazia ecoar imagens que o tempo tentara, sem o conseguir, apagar.

XXXVII

– Gosta de história, tenente? Aprendemos muito com ela. Pense numa coisa. Quando os impérios Ming e Otomano fecharam a Rota da Seda, os portugueses descobriram o seu destino. Dobraram o Cabo da Boa Esperança e fizeram da geografia comercial o seu legado à Europa. A Rota da Seda portuguesa fez-se por mar, evitando desertos, seduzida por sereias e atormentada por monstros marinhos. Lisboa tornou-se, por momentos, Veneza e Constantinopla. Foi uma utopia, tão sedutora como a que Camões cantou nos “Lusíadas”. Por momentos os portugueses foram deuses. Portugal deve parte do seu passado à Rota da Seda. Por isso Macau é tão especial para mim. E para si, não?
– Passou a ser quando conheci esta cidade melhor. E em especial as suas pessoas. Tão diferentes, com cada um à procura do seu destino. Uma das coisas especiais aqui é que as coisas nunca acontecem como se espera.
– Nunca acontecem. Não conseguimos manobrar o futuro. Bem, chega de conversa séria. Este é um dia para nos divertirmos. Vou voltar para dentro. Fica?
– Fico mais um pouco.
O Governador cruzou-se com Sofia Palha que caminhava altiva, como sempre. O seu vestido fazia jus à sua estrutura física. Era alta e musculada. A sua face ainda transmitia juventude. Aproximou-se do tenente e, sorridente, disse:
– Gostei muito da apresentação de tango há uma semana. Veio? Não o vi. É a dança do amor. Há demasiado contacto carnal para o gosto do meu marido, mas eu senti a força que transmite. Gostaria de aprender a dançá-lo. Mas, para isso, precisava de um bom par. Dizem-se que agora o que está na moda é o foxtrot. Pelo menos em Xangai. Aquilo é uma cidade…
Mostrava ter ideias firmes, mas a sua voz era sedutora. Aproximou-se mais do tenente.
– O seu nome é curioso. Amoroso. Aplica-se à sua vida?
– A necessidade, minha senhora, não conhece leis. Essa é uma das primeiras normas da diplomacia. Considere o seu marido, por exemplo. O costume, que é quase sempre a base de qualquer lei, dirá que, numa festa em sua casa, ele deve estar presente para entreter os convidados. Mas, imaginemos, que não está, porque tem necessidade estar a trabalhar num dos seus negócios. A necessidade, ignorando o costume, obriga-o a ficar longe, desapontando quase todas as pessoas. Mas alguém pode ter vantagens com base nessa necessidade.

XXXVIII

Ela fitou-o, espantada:
– O que quer dizer com isso, tenente?
O olhar de Sofia era mortal.
– A sua consciência está tranqula, minha senhora?
– Sempre esteve. Mas não compreendo as sua palavras. Elas parecem implicar que não deveria estar.
Amoroso tirou do bolso do casaco uma carta. Abriu-a e colocou-a defronte da face de Sofia Palha. Esta não disse nada, mas os seus olhos mostravam tudo.
– Reconhece a letra? É sua?
– Onde encontrou essa carta, senhor tenente?
– Onde pensa que foi?
Sofia Palha desviou a cara para o horizonte, onde a luz começava a desaparecer.
– E o que pretende fazer com ela? Fazer com que me sinta culpada de algo e comece a chorar?
– Eu só quero descobrir quem matou o senhor João Carlos da Silva. Não me interessa levantar o véu sobre outros segredos. Só aqueles que têm a ver com esse assassinato. Foi a senhora que o matou?
Ela fez um gesto de repulsa:
– Eu? Nunca? Eu amava-o.
– Há, como sabe, uma linha muito fina entre o amor e o ódio. Entre a morte e a vida.
– Não, tenente. Amei-o até ao fim. Foi uma paixão que durou meses. Até à sua morte.
– Sem o senhor Palha saber?
– Sem ele saber. Era um segredo só nosso. E o João era um homem em quem se podia confiar. Eu mandava-lhe pequenas cartas. Só assinadas com a inicial S. E ele sabia que as tinha de destruir logo a seguir.
– Esta ficou.
– Uma recordação. Não o deveria ter feito, mas compreendo-o. Era um homem apaixonado.
Sofia Palha voltara a ganhar a segurança que perdera momentaneamente. Os seus olhos aceitavam o desafio do tenente. Fez um sorriso triste:
– Eu também quero descobrir quem o matou. Mas, diga-me, tenente. Já estamos a falar há algum tempo. Se alguém nos vir aqui, só os dois, o que pensará? Eu espero que goste de estar comigo. Não consigo pensar em nada melhor do que isso. Mas se andarmos um pouco e formos para um local onde todos nos podem ver, não levantaremos suspeitas. E não estaremos sujeitos a mexericos, como se continuarmos aqui e alguém nos surpreender. Eu posso contar-lhe alguns segredos.

39

O tenente sabia que Sofia Palha detinha informação muito útil. Mas o seu jogo era perigoso. E Amoroso, nesse momento, não queria arriscar.
– Podemos ficar por aqui na nossa agradável conversa. Irei saber se o que me diz corresponde à verdade.
– É a verdade.
O tenente fez uma ligeira vénia e foi em direcção do local onde ainda se dançava. Foi despedir-se do Governador e da sua mulher. A noite chegava. À porta do hotel entrou num riquexó que o levou até à Rua da Felicidade.

10.

Os olhos de Ding Ling eram muito escuros. Mas, para Félix Amoroso, olhá-los era como ver o fundo do mar. Vemos tudo, sem saber nada. Tal como eles, a sua alma era insondável. Se fossem claros, de um jade muito límpido, poderiam deixar ler o que ela pensava? O tenente não tinha a certeza, mesmo naquele momento em que a sua mão estava colada em cima do seio esquerdo dela e Ding Ling parecia vulnerável como nunca. Os seus corpos estavam quentes, cobertos de transpiração e colados um ao outro. Ela soergueu-se e beijou-o na boca e no peito. Depois voltou a deitar-se, totalmente encostada a Amoroso. A sua respiração voltara a ganhar a serenidade que ele conhecia, depois de momentos de exaltação.
Quando se tinham deitado ela colocara-se em cima dele. As suas mãos seguraram-lhe o peito. Tinha soltado o cabelo e, enquanto se movia lentamente, este caíra-lhe para a face, escondendo-lhe os olhos. Amoroso tentou erguer-se para se perder nos cabelos dela, procurando os seus lábios para a beijar. Não conseguiu, porque a força de Ding Ling empurrava-o para trás. E ela, parecendo frágil, era mais forte porque também usava a força do tenente. Havia algum desespero na forma como os seus corpos chocavam. Depois deixaram-se cair, em silêncio.
Nem sempre os sentimentos podem esperar, sussurrou Ding Ling. Como se admitisse alguma culpa, coisa que nela era improvável. A sua fortaleza erguia-se sobre a intimidade e a lealdade. Era isso que, mesmo contra o vento, oferecia a Amoroso. Não era pouco. A mão dele voltou a explorar a pele dela, deslizando até ao sexo, onde ficou. Ela não se mexeu. Mas ele sentiu que o seu corpo passara a estar vigilante.

40

“Formosa como um anjo, mas com um punhal na boca”, dissera-lhe ele um dia. Era sorrira. Ding Ling nunca lhe pedira nada em troca das noitas em que o seu corpo oferecia o prazer que Amoroso ambicionava para poder repousar.
Durante quase uma hora deixaram-se estar ali, murmurando perguntas e respostas, com o coração a responder ao coração, os olhos a ler os olhos, e as mãos procurando o corpo do outro. Até que por fim Ding Ling se levantou e foi acender uma vela que deixava apenas um pequeno rasto de luz. Assim o seu corpo nu era mais misterioso e ela deixou-se ficar, por momentos, encostada a uma parede enquanto ele a contemplava.
– Gostarias que eu cantase para ti?
– Não. Isto é, gostaria, mas tu também estás cansada.
– Disparate. Dormi bastante esta manhã. Posso cantar, muito baixinho.
Assim fez. A sua voz recordou uma canção melancólica que aprendera, talvez em Xangai. Falava de amores perdidos na noite, que desapareciam como fantasmas e depois regressavam através de outros corpos. Mas o amor era o mesmo. Depois sentou-se numa cadeira de bambu e deixou ficar-se ali, sem se vestir.
– Está escuro. Queres mais luz?
– Gosto de te ver assim. Impossível de decifrar totalmente.
Ele levantou-se e aproximou-se dela. Afagou-lhe a face e o pescoço e ela encostou a cabeça ao corpo dele. Ele contou-lhe a conversa que tivera nesse final de tarde com Sofia Palha. Ding Ling levantou-se para o fitar nos olhos.
– É difícil que confies neles. Nela ou no marido. Cada um faz o seu jogo. Talvez o mesmo jogo, com cartas diferentes. Eles são mestres do subterfúgio, idolatram a intriga, a sedição. E a sedução. Trairão qualquer pessoa para conseguirem o que querem. Amanhã serás tu. No dia a seguir o senhor Wolf. Ela poderia ter interesse no corpo do senhor Silva. Mas a carne é, muitas vezes, a porta de entrada para a alma. E o senhor Silva era muito frágil. Li Bei sabia isso.
– Achas que algum está ligado ao alemão?
– Não duvido. Se chegasses a Macau com uma ideia de negócio como o senhor Wolf, quem procurarias conhecer? Palha é um homem com muitas conexões. E a mulher não olha a meios para conseguir atingir os seus fins. Um deles, senão os dois, estão ligados a ele. E talvez o senhor Silva estivesse também, por via disso.

(continua)

6 Jul 2021