Carta ao artista Jeff Koons

Meu caro amigo,

[dropcap]o[/dropcap] filósofo polaco Laszek Kolakowski inicia assim o seu livro Horreur Méthaphysique: “um filósofo moderno que nunca se sentiu um charlatão demonstra uma tal ligeireza intelectual que a sua obra não merece a pena ser lida”. Como isto se aplica a um poeta pós-moderno! É o meu caso. Aquele que nunca se sentiu um charlatão é vítima de insuficiência ou de cinismo.

Quem não me parece ter dúvidas é o amigo Jeff Koons, mas já lá iremos. Escreveu John Cage que imaginava facilmente um mundo sem arte. Aqui para nós, a coisa sempre me soou a bazófia: que lhe faltou para abandonar a arte e tornar-se mecânico de automóveis? Já o Claes Oldenburg – suponho que conheceu – dizia preferir uma loja de ferragens a um museu – e é mais entendível, aceitando a afirmação como sucedânea do que confidenciou Duchamp sobre a impossibilidade da arte superar a perfeição formal da hélice de avião.

Todavia, e suponho que aqui não concordará comigo, o que se produziu a partir de tais configurações havia-se mostrado até hoje manifestamente chocho e roçava a irrelevância. A estetização do quotidiano condicionou a criatividade, conformou-a, à medida que o gosto médio se mostrou impositivo e a arte volveu “o espelho” que o Jeff se propôs refinar.

Desta vez, chapeau, o Jeff Koons elevou a irrelevância a um supremo acto de tauromaquia de salon. Parabéns. É a terceira vez que uma peça sua, da série Banality, peças feitas a partir de fotos de publicidade, é acusada de plágio. A justiça deu razão a Franck Davidovici, o autor do anúncio publicitário da marca de roupa francesa Naf-naf.

Cito o Diário de Notícias, para não me enganar: “o anúncio de Davidovici, intitulado Fait D’Hiver, mostrava um leitão, que era a mascote da marca Naf Naf, com um barril ao pescoço, muito parecido àquele que os cães São Bernardo usam nas suas ações de socorro na neve, ajudando uma jovem morena. A obra de Jeff Koons não é uma fotografia a preto e branco. É uma escultura colorida que também se chama Fait D’Hiver e que mostra uma mulher deitada na neve e a ser ajudada por um porco com um barril e uma coroa de flores ao pescoço. Ao lado estão dois pinguins”.

O fulcro, a verdadeira essência da arte, mostrou-a o Jeff agora: a sua escultura foi leiloada em 2007 pela Christie’s de Nova Iorque por mais de quatro milhões de dólares e agora, o tribunal condenou-os, a si e ao Centro Pompidou, a pagar a Davidovici, em conjunto, a quantia de 148 mil euros. Realce-se que o juiz não ordenou que a obra de arte fosse confiscada, outro dos pedidos do publicitário, e que agora, dada a publicidade de que a sua peça beneficiou, ela vai ter um reforço de valor.

Esta desproporção terá sido devidamente calculada pelo Koons, que fez aquela série para ser acusado de plágio. As esculturas eram o simulacro para favorecer o que importa: a operação financeira.
Só lhe falta, meu amigo, realizar o acto de síntese, a sua obra magna – aquele haiku do samurai no acto da harakiri: reproduzir num friso escultural um leilão da Christie’s.

Não sou invejoso, escrevo-lhe, saudando-lhe a inteligência, para lhe propor ser plagiado por si. É nesta intenção que aqui divulgo a minha fotografia O Banho da Musa Intermitente.
A foto tecnicamente é mazita, mas o que importa é o teor, o teor, O TEOR (- peço-lhe, imagine esta frase dita pelo Brando).

Saberá, meu caro Jeff, as culturas dividem-se entre as que querem conversar com os mortos e aquelas que querem conversar com os vivos. Uns querem aplainar o mundo, os outros aceitam as suas rugosidades. Eu, e imagino que o meu amigo também, bandeio para o lado dos que aceitam as rugosidades e entendo que o plágio possa ser apenas mais uma dobra da arte, quando o fito é outro. Nisto estou por si, por nós.
Estou certo que o nosso trato lhe convém – encontramo-nos depois nas barras do tribunal. Verá que exporei o meu dorso a uma das suas bandarilhas.

Não pense que só me move o interesse e por isso conto-lhe uma história. Passa-se em Nampula. Daniel conseguiu penhorar todos os seus mortos. Com uma pistola na cabeça do penhorista, que frequentava o mesmo culto que o seu, da igreja Zione. “Tanta cerimónia aos espíritos, tanta saudações aos antepassados”, censurava, Daniel, puxando o cão da pistola, “e agora não os aceita como penhor, para si valem menos que uma torradeira!”

Só não o liquidou ali porque o penhorista, na aflição, antecipou o equivalente a quatro gerações de antepassados. Embora isso não o tivesse livrado da coronhada.

Vê, meu caro Jeff Koons, andamos todos ao mesmo.

Antes pensava, coitada da arte que é apenas combinatória, pois acosta rapidamente ao reino das quantidades, quando a vulcanologia e a formação dos vulcões nos ensinam que há estados que nascem por dentro, com mínima contribuição do exterior – e com um furor que pelo contrário vai, ele sim, mudar a paisagem exterior

Contudo, agora que estou doente, começo a pensar com os tomates, com o coração e os pulmões. Não enxergo modo de pensar que não seja um inquilino do meu corpo (ainda que admita um por outro clandestino). E comecei a entender Parménides, para quem ser e pensar eram o mesmo, pois “raciocino” primeiro com a natural sintaxe do meu corpo o que depois as palavras traduzirão; daí que alinhe com Michel Barat quando ele aventa que a boa nova dos Evangelhos é anunciar não a imortalidade da alma, mas antes a ressurreição do corpo. O que aqui para nós, convém admitir: fica cara.

O seu gesto esclareceu-me: há que aprender a arte dos toreros de salon. São esses quem,
no fim, mais lucra.

Impaciente pelo seu plágio, sem cerimónias, o seu
António Cabrita

15 Nov 2018