Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasTurcos e Bordados 6 de Dezembro de 2020 Com a cidade semi-deserta uma das coisas boas é sem dúvida ir lendo os nomes dos estabelecimentos comerciais e tentar entender a nomeação de tais espaços. Se nos dermos conta, só mesmo as lojas chinesas que já estão em maioria por todos os lados, escusam designações de qualquer género, o que se entende, dada a profusão de mercadoria diversa e em nada coincidente. E este deambular numa terra de titularidades é um exercício também ele linguístico acerca daquilo que o denominar abrange, e vamos aos turcos: de repente, pensamos no Império Otomano, em Solomião o Magnífico, Istambul, cidade entre dois continentes, e chás no deserto — mas não — apenas passamos por uma loja com o nome «Turcos e Bordados» e é bonito! Para um qualquer transeunte de outros lados reparar nisto deve causar estranheza, mas há quem conviva com certas coisas com tanta naturalidade que nunca pensou nos turcos, e ainda outros para quem não aquece nem arrefece, e é aqui, na manobra da correlação que entra a temperatura; as toalhas turcas! Um tecido todo feito integralmente de algodão para os famosos banhos que séculos de domínio islâmico aperfeiçoou. Quanto aos banhos, são também eles um legado greco-latino, só que uma religião monoteísta requer práticas constantes de higienização fazendo de tal labor uma prédica mais, por vezes até bastante compulsiva. É, sem dúvida, um facto que um pano por si mesmo não é nada, o que faz que se possa acrescentar toda uma técnica decorativa que transponha o seu carácter de objecto, e, por isso mesmo, na loja lhe acrescentem, bordados, que sendo esses panos “turcos” ainda suportem a delicadeza de tais artifícios, é obra! Mas um verdadeiro exemplar, tributado numa mancha iconoclástica tamanha, levará apenas franjas na ponta e riscas no fundo, o mais perto de um tratado geométrico simples, requerendo-se leve para se tornar absorvente, e quem estiver ainda muito distraído pensará que se trata de um «talit», o manto da oração, que sendo aspectos aparentemente transversais nos mostram bastante da natureza das coisas, que quanto muito, e neste caso, poderia fazer sentido uma loja «Turcos e Molhados». As franjas mostram somente que Deus nos toca indelevelmente, e sempre, em regime de extremidade, quer estejamos a tomar banho ou envoltos na oração, as riscas indicam a impossibilidade, talvez, de recorrer às imagens, mas Lisboa, é como Constantinopla, outra cidade das sete colinas, e no que diz respeito a Impérios sabe também que estes se esfrangalham, e na derrocada, as bases de uns vão formando outros, como as lojas dos tapetes persas chamados «Aladinos» que não raro têm inscrições de Arraiolos. Que os há! Bem perto até dos «Turcos e Bordados». A simulação da oferta é uma mais valia com que os puristas não contavam, e também é neste cruzar de dados com o nosso cristianismo pagão que vamos construindo estéticas desconcertantes e admiráveis. Bom, mas também é certo que a cidade está cifrada. Os nomes em inglês, as ofertas tresvariáveis, as coberturas de pequenos cubículos sem graça nenhuma, a não ornamentação do minimalismo mórbido, mais os eloquentes «Pés de Salsa» convivem como se cada um vivesse num planeta distinto, mas que não deixa de fazer os encantos destes olhares. Como ainda não se pode ir naturalmente a lado nenhum, não raro apetece muito um «-hamame-» e em seguida jantar uma bela chanfana com vinho tinto, o que não afecta de todo a distância a que está cada um destes prazeres. Os “turcos” podem ser bordados, e nós não reparamos nos lindos monogramas que representam o grau de familiaridade: avô, mãe, pai, filho, e se os tecidos engrossam é por que há mais algodão e não precisamos de secar tão depressa. Na cidade antiga, ainda existe a «Camisaria Controle» e os «Lençóis tipo Zé» o que dá uma tónica indispensável à sua humanização. Coisas que já não dizemos nem escrevemos, mas tempo houve em que se podia dizer e não escrever, o que ficou conhecido certamente pela frase popular «o que tu dizes não se escreve». Nestas linhas, como nos fusos de tecer, há ainda muitos Impérios, e os turcos ajudaram à queda de alguns, foram pioneiros nos Holocaustos do século XX, tentaram derrubar o nosso, mas, o seu fascínio persiste, pois que estamos em cidade de califado. «Istanbul (not) Constantinopla» nem o Santo Sudário, uma peça de linho para os dias de maior calor; mas que estes panos são grandes monumentos, isso, ninguém duvida. Lojas abertas com inscrições várias precisam-se para manter a economia de bairro bem desperta (a venda de relíquias está proibida). «Sudário & Filhos» ao lado de «Turcos e Bordados» e ainda Maomé bordado numa nestas toalhas com a inocência estrangeira das multidões.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA vida tem destas coisas [dropcap]«A[/dropcap] vida tem destas coisas» é a frase com que a turca Ülker Uçum começa o seu romance «A Queda de Istambul». Esta indeterminação com que a vida é acusada, logo na primeira frase, rapidamente se desvanece para dar lugar à realidade política da perda de direitos por parte dos cidadãos em geral e das mulheres em particular. À segunda página do livro aquela frase dá lugar ao discurso do presidente da Turquia, Erdoğan, dirigindo-se a uma multidão: «Uma mulher pode ter muito sucesso no seu trabalho, mas se não for mãe não realiza a sua essência.» A vida tem destas coisas é, no fundo, o futuro a abrir clareiras que nunca pensámos existir, clareiras que são prisões, mutilações. A vida pode voltar para trás, podemos perder direitos que tínhamos conseguido, a vida tem destas coisas. E o mundo hoje em dia, um pouco por todo o lado, tem destas coisas. Infelizmente, Istambul é mais do que uma cidade e a Turquia mais do que um país, são metáforas do mundo que está a voltar para trás. A vida tem destas coisas. Estamos diante de um romance político, evidentemente, que nos mostra a decisão de Lale, em deixar a Turquia, depois desse discurso do Presidente. Lale é cardiologista no Hospital Americano, em Istambul, e decide mudar-se para o Canadá, pela vida da sua filha, Esra, que acabara de fazer 13 anos. Não queria que ela crescesse num país onde a mulher não tinha direitos iguais. No romance torna-se claro, que esse discurso do Presidente foi a gota de água que levou à decisão. Ao longo de muitas páginas – o romance tem 324 –, damo-nos conta da mudança da cidade de Istambul, e com ela o país, em constantes e eficazes analepses. Num dos diálogos com a amiga Perizad, outra das personagens fortes do livro, Lale diz: «Se quando for mulher, a minha filha não puder vestir-se ou agir como quiser, nunca será livre. Poderia arriscar a minha vida, Peri, mas não posso arriscar a da minha filha.» Esta amiga de Lale, Perizad, que não abandona o país, apesar de estar contra tudo o que se passa, vai entristecendo ao longo do livro. Se Lale luta para salvar a sua filha das garras de um fundamentalismo religioso que se vai instalando na Turquia, a sua amiga luta para não morrer de tristeza, para não perder a esperança de que a Turquia volte um dia a ser uma república. A tristeza de Perizad não é apenas individual, é a tristeza de um país a acabar. Não tem filhos nem marido e filma documentários sobre as pessoas de Istambul. Tenta preservar em imagens uma Istambul republicana, a Turquia de Ataturk. São memoráveis as páginas em que descreve um encontro de velhos poetas numa taberna de Beyoğlu, comendo mezês e bebendo Raki, como símbolo de uma Turquia que Perizad tenta preservar e que hoje se está a perder para a religião com a mesma velocidade com que Lisboa se perde para um cosmopolitismo para o qual a cidade não tem tamanho. Perizad lembra-nos Xerazade e leva-nos a «As Mil e Uma Noites». O paralelismo é estabelecido. Os seus pequenos documentários de «A Queda de Istambul» é uma espécie de adiamento da morte da cidade, tal como as estórias da primeira Perizad da história da literatura. Há uma passagem do livro que se tornou macabro, pela premonição do que aconteceria à própria escritora, Ülker Uçum, depois do romance ser editado. Lale, de mão dada com a filha, Esra, quando esta ainda tem 6 anos, vê a polícia prender uma mulher na rua, perante gritos e tentativas de impedimento por parte de algumas pessoas, e começa a chorar. A filha pergunta por que está a mãe a chorar e abraça-a com força, dizendo que não deixa que ninguém a leve. A polícia acabava de prender uma escritora, por causa de um artigo escrito contra o regime, no Cumhurriet. Aconteceria o mesmo com Ülker Uçum, que ainda se encontra detida por subversão, assim como vários outros escritores e jornalistas. Talvez «A Queda de Istambul» não tenha a dimensão reflexiva do grande romance de Ülker Uçum, «A Vida de Orhan Veli» (1999), que partindo da biografia do grande poeta turco (1914-1950) – que morre aos 35 anos, ao cair bêbado num buraco, no regressa a casa depois de uma longa noite de Raki – traça uma reflexão acerca da arte em geral e da poesia em particular, mas é um livro que nos mostra com muita clareza situação política da nova Turquia, através de uma escrita que recupera a diversidade de Istambul antes do regime de Erdoğan. Numa entrevista dada ao Cumhurriet, ainda antes da publicação de «A Queda de Istambul», Uçum dizia que não seria possível escrever «A Vida de Orhan Veli» hoje. A Turquia exige acção e não reflexão, mesmo na escrita, e isso é visível neste romance. Mesmo quem nunca tenha vivido em Istambul percebe a diferença entre a cidade antes e a cidade depois das medidas de Erdoğan. Ao ler-se o romance, em Portugal, é-se tentado a comparar com a diferença entre a Lisboa – ou do Porto – de antes e de agora, mas o turismo não é um regime religioso, não nos impõe comportamentos, não destrói por decreto os sonhos de metade dos cidadãos. O romance não se limita, contudo, ao tom político e à clave de melancolia. À página 146, Perizad diz à amiga: «Pudéssemos ser novamente o queríamos ser e não perderia o tempo que perdi. Nunca se sabe quando vamos deixar de poder ver ou ler o que queremos. Estamos presas num país enorme e lindo.» Podemos estender este «nunca se sabe» para além dos condicionalismos políticos. Nunca se sabe nada. Caminhamos às apalpadelas por entre o nevoeiro, tentando não nos acidentarmos. Como uma pequena embarcação em alto mar, a existência está sempre em tempo de naufragar. Aquelas mulheres, tornaram-se prisioneiras no próprio país aos 40 anos, sentindo com isso que também estavam presas na própria vida, com dificuldade em começar de novo e impotentes para corrigir o que se tornou errado no mundo. Em verdade, não é preciso um regime político autoritário para que uma mulher ou um homem se sintam assim aos 40 anos, seja em que parte do mundo for, mas por imposição política talvez seja pior, pois a existência acontece em todo o lado e, felizmente, regimes autoritários ainda não despontam em todo o lado. Para mal daquelas mulheres, a vida tem destas coisas.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasDiários Turcos (I) [dropcap]O[/dropcap] que é que jantámos na nossa primeira noite em Istambul? Pizza. Very typical. Na recepção, um senhor chama-me umas seis vezes pelos nomes do meio, como se fossem um só e ele não conseguisse ler nem o meu primeiro nem o meu último nome. Chego, sento-me no sofá contemplando a hora de jantar. — Então, Gisela, que fazes? — Estou apenas… — Estás a rir sozinha? Estava a olhar para o telemóvel. Éramos cinco à mesa. Alguém me chamou. Levantei o rosto e duas pessoas queriam oferecer-me uvas. Uma tinha duas, roubadas à que tinha umas dez num cachito. Sem saber o que fazer, perante aqueles olhares ansiosos e braços estáticos, aceitei tudo. Um outro interveniente disse, de quem tinha mais, “Ele só queria oferecer-te uma.” Rimos. La Fontaine revisitado. Nos lavabos públicos, rapazes adolescentes e homens descalçam-se e lavam os pés, recolhendo os casacos pendurados à saída. Em sua casa, Zafer dispensa-nos de descalçar os sapatos, por cortesia. Chove e faz frio, mas nem isso impede os gatos de frequentarem a universidade à noite. Somos revistados à entrada dos museus e dos centro comerciais. Fotografo a Lígia no meio de oito chineses, cinco de um lado e três do outro, todos sentados e ela no meio. Quase todos me olham ao mesmo tempo sem combinar e sem desviar a atenção, como se nos conhecêssemos. Fotografo a Lígia a descalçar-se cinco vezes por entre túmulos e mesquitas; por vezes há um extintor ou uma roseira a compor o quadro. Dizem-nos “Quero saber a vossa religião. São cristãs? Porque eu sou muçulmano mas não sou um terrorista.” Mais tarde, numa escola, perguntar-me-ão se sou muçulmana. Mais tarde, numa igreja e numa escola, alguém levará a mão ao peito em vez de no-la apertar, deixando-nos penduradas e perplexas. Zafer disse-me, ontem: “Ainda não te sentiste estrangeira aqui.” À hora de almoço: — Isto é tão bom, lembra-me algo. — É leite condensado cozido. — Pois é. — Comemos quando alguém morre. — Então… Quem morreu? Finalmente cedo e digo, numa sessão escolar e em turco, que İsmet Özel (cuja obra desconheço) é o maior poeta turco. A multidão vibra. Yaya diz-me, através de notas num bloco que ainda tenho, que Rıdvan lhe confessou que quer casar comigo, porque o fiz feliz ao dizer esta frase que me vinha repetindo há dias. Há uma foto do momento preciso em que leio essa frase e rio: é uma das melhores fotos desta viagem. No aeroporto: — Eventualmente todos os turcos vão embora. — Excepto tu. No palácio: — É pá, a bandeira e todas estas luas lembram a Sailor Moon, não achas? — Pois é. Ao fim de um tempo teríamos de ceder às casas de banho à la Bairro Alto. Nem sei como demorámos cinco dias a atingir este marco. Domingo a Turquia fez anos. Segunda, fiz eu. Já me perguntaram algumas vezes se estou aborrecida. Normalmente é quando me calo. Ou há pouco, porque estava em pé lá na rede expressos enquanto fazíamos tempo. Acho que é isso que querem dizer porque fazem a pergunta ao contrário, perguntam, “Estás a aborrecer-nos?”. Espero que não. Respondo que nunca me aborreço e que dentro da minha cabeça estou sempre bastante entretida. A Esra, a nossa intérprete, anui com a cabeça e sorri, acho que começa a conhecer-me. No autocarro para Gaziantep, agora somos nove, (comento com a Lígia que isto é a Sete Rios cá do sítio) sentados à espera que parta, e estou a tagarelar fluentemente, como sempre. Dizem-me, “Esta avó…” e eu penso, deve querer que eu me cale, afinal só se ouve a minha voz, “…Diz que te ama.” Gargalhada geral, e a senhora vai repetindo os seus afectos instantâneos em turco. Vão ser umas lindas seis horas de viagem. Novos diálogos de Konya: — Este catering só no Alfa. — Wifi no expresso para Melgaço. A Lígia bate-me ao de leve no ombro. Passa-me um phone. Notorious B.I.G, “Big Poppa”. Gosto desta miúda. Estamos um pouco lost in translation, tempo e espaço. Já não sabemos bem que dia da semana é nem que horas são em Portugal. Ao telefone a minha amiga diz que são quatro da tarde. Aqui, sete. Não há horário de Inverno, só o Inverno em si. No meio de nenhures, paramos rapidamente pela segunda vez. Desta vez saímos. O rapaz das uvas não fala inglês. Oferece-me o maço. Eu não fumo, digo (pensava que já teriam reparado por esta altura, considerando que sou realmente a única que não fuma). Porquê?! Pergunta um outro. Ouvem-se tambores. Dizem-me que é uma celebração, uma despedida, um rapaz vai para o exército, como é costume aqui quando aos vinte ainda não se foi para a universidade. WC Bayan é casa de banho das senhoras. Dão-me uma moeda para a mão. A sério? Olá, Santa Apolónia nos anos 90, com porteiro e guichet nos lavabos. Por algum motivo agora só me apetece ouvir Beatles: “Here, there and everywhere.” Seguimos caminho.