Comercialização da Intimidade

[dropcap]P[/dropcap]rimeiro, definimos a comercialização da intimidade de forma bastante abrangente. Hoje em dia podemos comprar tudo, desde o sexo à intimidade. O exemplo comum é o das pessoas que oferecem cuidados mais, digamos, sexuais – como as mulheres de conforto e outras que tais. Mas a literatura pede que olhemos para outros processos também – outras formas de comercialização das relações íntimas – como os cuidadores de crianças e idosos, empregados domésticos, ou serviços de fertilidade e de barriga de aluguer. Qual é a diferença entre uma bailarina exótica e alguém que cuida de idosos? Muita coisa, certamente, mas cada tipo de intimidade está a ser igualmente explorado no mercado (só que um é tido como menos decente do que o outro).

Segundo, assumimos que esta comercialização é global. A procura e a oferta tem feito uso dos movimentos transnacionais, tal como o sistema de produção coloca as fábricas em locais onde a mão-de-obra é mais barata. Os princípios que regem os custos e benefícios de uma transação aplicam-se à intimidade também. A busca por intimidade barata move as pessoas para lá das fronteiras, ora porque procuram, ou porque sabem que são procuradas. Nesta discrepância de poderes e possibilidades, a venda da intimidade traz à discussão temas que dão muito que falar.

Como a mobilidade, e o tipo de mobilidade que desejamos – quem é o bom ou mau migrante e o que vai fazer? Como olhar para o homem branco que vai a países em desenvolvimento à procura de intimidade e sexo, deixando filhos para trás? Como olhar para as mulheres que vêem a oportunidade de mobilidade ao vender o corpo, o cuidado ou o carinho? Ou, de que forma estas transacções tendem a reforçar as forças patriarcais que regem este nosso mundo, insistindo em papéis de género tradicionais? Como é que o neoliberalismo veio possibilitar a transformação dos nossos afectos? Num mundo que consegue estar ‘unido’ porque é muito desigual.

Terceiro, entendemos que as transacções de intimidade existem em detrimento de outras intimidades. Intimidades que se dividem porque uma é paga e a outra não é – como as famílias que se dividem para dar resposta a outras. Tal como as várias mulheres que deixam para trás os filhos para cuidar dos filhos dos outros. Uma espécie de hierarquização de intimidades em que a paga tem que ser mais valorizada se quisermos sobreviver neste mundo capitalista, e assim reforçar a desigualdade em que vivemos.

Quarto, também percebemos a importância de explorar o significado da intimidade para as pessoas, atravessando várias classes e estatutos. Particularmente, de como a intimidade pode ser utilizada como uma ferramenta de poder ou de subjugação, explorando fragilidades ou formas de empoderamento. Conceitos complexos para uma realidade que poderia ser simplesmente demoníaca, como a ideia de que aquilo que nos faz humanos sociais como o cuidado, o sexo ou a partilha podem ser comprados. Mas o foco nunca poderá ser a análise da sinceridade da ligação humana. Mesmo que a comercialização da intimidade nos ofereça o vislumbre do exagero que é a instrumentalização do conforto social, temos que ser mais analíticos que isso. A existência prática de objectivos capitalistas tornou-nos disponíveis para suprimir as necessidades afectivas e de cuidado ou de sexo com dinheiro.

Por último, se a intimidade não fosse comercializada neste estado económico actual, quem seríamos nós? Melhores ou piores?

17 Out 2019

Beijinhos aos avós

[dropcap]O[/dropcap] que se torna viral, torna-se viral, não há muito a fazer. Agora, porque é que certas coisas ‘viralizam’ ou porque são escrutinadas até ao tutano é que pode ser obra de algoritmos, ou talvez de pura sorte ou de puro azar. Falo-vos do que aconteceu na semana passada na televisão portuguesa: alguém proferiu uma ideia que nem achei assim tão polémica ou problemática quanto isso. A questão da obrigatoriedade na infância tem muito que se lhe diga, no exemplo em questão, o intuito era o de alertar para estarmos atentos à auto-determinação e agência infantil. O que poderia ter surgido como uma discussão interessante acerca de como ensinar desde cedo acerca da consciência do corpo e dos limites que lhe damos, ‘viralizou’ para uma conversa que confundia educação com obrigação – e de como comer legumes, ir à escola, ser-se boa gente ou ter-se bons modos e dar beijinhos de cumprimento a quem achamos por bem, é resultado directo de um pulso firme. O tal da obrigatoriedade que julgamos ser a única estratégia educativa. A discussão não foi muito para além disso, mas não deixa de ser uma discussão importante para se ter na esfera pública.

Contudo, se a ideia foi polémica não foi por ser particularmente chocante – valeu-lhe uma combinação de comunicador e comunicado que não caiu nas boas graças de muita gente. Como este alguém não cai nos moldes ideais do homem tradicionalmente português, e da família tradicional portuguesa, muito rapidamente se assistiu a uma sede de sangue e de insulto – e a uma forma de discutir ideias muito fechada, categórica e teimosa. Isto não aconteceu por acaso, foi tudo graças a um jornalismo de baixíssima qualidade que faz uso de formas sofisticadas de bullying (sim, tenho a certeza que esta é a palavra certa) e que se aproveita de uma moralidade barata, para descredibilizar alguém só porque está fora da norma. O que me chateou mais nisto tudo foi a avidez pela ofensa e pela ameaça – sim, o protagonista desta história viu a sua página na rede social a ser saqueada pela indignação popular, e não foi feito de forma simpática, muito menos construtiva.

Perguntei-me se, trocando o comunicador por alguém mais normativo, em todos os sentidos do sexo e do género, a reacção teria sido diferente? A pessoa em questão é poliamorosa, vive numa constelação familiar, usa eyeliner e é professor universitário. E esta combinação começa a ser perigosa e facilmente descredibilizada porque representa uma ‘elite’ de liberdades excepcionais. Já conhecemos bem o fantasma que o sexo e a dita ‘promiscuidade’ representa. Mas o que aprendi com esta história é que há quem nem queira saber de intelectualismos, muito menos quando a intelectualidade põe em causa aquilo que achamos que o mundo é. Aliás – porque é que ouviríamos um promíscuo falar sobre como educar uma criança?

Estamos repletos de vieses e a pouca consciência destes insiste em perpetuar uma forma de pensar muito pouco reflexiva. O mesmo processo que desqualifica a opinião de alguém que percebemos como diferente é o mesmo que vangloria quem julgamos um exemplo de valores contemporâneos de sucesso (sim, estou a referir-me ao menino de ouro do futebol). Na nossa inocência julgamo-nos imunes, julgamo-nos cegos à cor da pele, etnia, orientação sexual ou género. Mas a prova derradeira de que somos realmente afectados por tudo isto é de que frequentemente discutimos as pessoas em si e não as suas ideias (eu sei que parecem uma coisa só – mas uma coisa é discutir educação infantil e outra é falar das escolhas relacionais do interlocutor). Só para reiterar – eu percebo que seja difícil discutir sexualidade, ainda mais a sexualidade infantil. Mas crianças devem, sim, ter a oportunidade de serem ouvidas e compreendidas nos limites que querem definir para si mesmas. Nada disto invalida o amor, o carinho e a ligação que se estabelece entre netos e avós e outros familiares – absolutamente nada (caso duvidassem que isso estivesse em causa). Acho que este episódio foi informativo, não pelo objecto de discussão em si, mas pela indignação que gerou e todos os movimentos subsequentes. Só vos digo que ainda temos muito que caminhar para que as sexualidades e as gentes que falam abertamente sobre elas não sejam ameaçadoras – e é urgente repensar as nossas estratégias de comunicação e de disponibilidade para com o outro.

24 Out 2018

A intimidade nas redes sociais

[dropcap style=’circle’] J [/dropcap] á em outras alturas me debrucei acerca das novas tendências tecnológicas e dos desafios para as relações da nova era. As redes sociais vieram revolucionar a forma como socializamos e como comunicamos com os outros – com o mundo. Com os nossos amigos, com os nossos conhecidos e com os nossos desconhecidos, também. Ultimamente até responsabilizamos estas novas formas de interacção, e de quem está à frente delas, das crises mundiais.

A intimidade também já não se pode definir da mesma forma, afinal o que é que é verdadeiramente íntimo? Como é que o mostramos? Ou, como é que decidimos não mostrar? Muita gente anda a pensar nestas questões porque a interacção humana tal como a conhecemos sofre contínuas transformações. No sexo e no amor vemos aparecer outras formas (inesperadas?) de manter a chama acesa da paixão – novas formas de conhecer parceiros românticos, novas formas de manter relacionamentos à distância, novas formas de nos mostrarmos (de nos escondermos?) ao criar um perfil de usuário, com certas fotos, com certas informações, com certos pontos de vista. Tanta inovação que é levada até certos limites, porque os clichés de género continuam lá, nas mesmas e antigas expectativas do aceitável e do não aceitável. Tudo depende se tiveres uma vagina ou um pénis, ou te identifiques como homem ou como mulher.

Num estudo realizado por Cristina Miguel, sobre o tema de intimidade nas redes sociais, a investigadora explora os significados da intimidade relacional e sexual no Facebook, no Badoo e no Couchsurfing. Os participantes deste estudo consideraram que fotografias sexy, orientação sexual e o estado da relação amorosa eram tópicos, ditos, ‘íntimos’, e por isso a sua expressão nas redes sociais era mediada por certas expectativas – i.e. se fores mulher com fotos de biquíni, és uma atiradiça; se fores um homem de fato de banho, és… normal, não há nada de errado com isso. As fotografias sensuais são íntimas na medida em que queremos que só certas pessoas tenham acesso a elas, mas não deixam de ser uma criação: uma tentativa de ser a máscara na criação conjunta do que eu acho sexy e o que eu acho que os outros acham sexy, dentro dos limites que ditam a minha possível auto-determinação sexual.

A gestão dos relacionamentos e das imagens, ou mensagens, de amor e de carinho que queremos ver publicadas também são preocupações do foro íntimo. Aliás, se calhar podemos dividir o mundo em dois grupos, os que querem mostrar bem claro que a sua intimidade está a ser bem preenchida com a intimidade do outro, e os outros que preferem manter o íntimo em privado, até certo ponto. Esta visibilidade que queremos ou não dar aos relacionamentos provavelmente vem da mesma discussão que os nossos antepassados tiveram sobre, os anéis de noivado, por exemplo. Quanto maior o diamante, maior o amor? Maior a prova de amor aos outros? As redes sociais vieram trazer outra camada de complicação nestas coisas da intimidade e da visibilidade. Quando um namoro termina, já ninguém rasga com raiva as fotografias de quem outrora fora o seu mais que tudo. Agora apagam-se os vestígios dos beijos, dos abraços e das mãos dadas nas redes sociais e desamiga-se ciberneticamente quem já foi muito próximo.

A visibilidade das intimidades nas redes sociais não deixa de ser antagónica. Na minha visão simplista das coisas, os nossos diferentes ‘eus’ nascem da necessidade de nos apresentarmos em relação a certas coisas. Quando estamos numa entrevista de emprego apresentamo-nos de uma forma, quando estamos com a família apresentamo-nos de outra, quando estamos num primeiro encontro tentamos apresentarmo-nos ainda de outra forma – sempre fantásticos, poderosos e incríveis. As redes sociais só trazem mais uma oportunidade para nos recriarmos face aos outros, mas a nossa intimidade que tem tudo que ver connosco próprios (mediada por conteúdos sociais, claro), é daqueles universos que tentamos que seja o mais honesto. Vou ser pessimista e dizer que as redes sociais podem ajudar pouco à criação, manutenção e reinvenção da intimidade – aquela que eu julgo que nos leva para os prazeres do sexo e de estar com outro(s) de uma forma inteira e sensualmente honesta. A intimidade nas redes sociais, poderá ser pouco íntima?

18 Abr 2018