Fazer ou não fazer

“Não se pode descer duas vezes o mesmo rio, e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado, pois por causa da impetuosidade e da velocidade da mudança, ela dispersa-se e reúne-se, vem e vai. (…) Nós descemos e não descemos pelo mesmo rio, nós próprios somos e não somos.”
Heráclito de Éfeso

Na minha infância comia amanteigados neste café. Ia buscar tripas de ovos moles a esta barraca. O meu pai estacionava o carro em frente ao mar, precisamente aqui, e passávamos tardes inteiras no carro a olhar para o mar. Ficava no banco de trás às cabeçadas com a minha irmã. Certas coisas mudaram. Puseram outro tipo de corrimãos marítimos para acalmar a violência das ondas. Havia mais dunas e havia mais pinheiros no parque de campismo. A essência é a mesma e eu nunca gostei de fazer só o mesmo. Sempre tive uma tendência natural para o contraditório.

Sempre me pareceu uma das formas mais eficazes de estar na vida: questionar em permanência. Suspeitar de tudo em que toda a gente parece concordar. Se me diziam que as flores eram bonitas, eu ia tentar perceber de que forma não eram bonitas. Se tínhamos que acreditar em Jesus eu ia tentar falar com o padre sobre rituais wicans. Quando me diziam que a paisagem altamente urbanizada não era tão agradável como viver à beira-mar, eu fiz questão de me pôr a trabalhar para transmitir um tipo de beleza menos familiar aos meus conterrâneos. O caos enquanto beleza.

Em Pequim, os meus sentidos colavam-se aos arranha-céus, sobretudo na sua visão noturna. Um céu cinzento, um calor abafado ou um frio seco e, claro, um emaranhado de pessoas, identidades e propósitos. O caos enquanto beleza.

Com o tempo, passei a rodear-me de pessoas que pensavam da mesma maneira que eu. Que sim, que as flores não tinham que ser necessariamente bonitas, que Deus podia ser uma deusa, que a visão mais distópica do mundo pode ser um parque de diversões. Só que chegada a esse ponto em que toda a gente batia palmas ao meu questionamento permanente da realidade, comecei a parar de o fazer. É certo que é para isso que serve a inteligência – colocar-se em infindáveis pontos de vista. Se por um lado, questionar tudo é um bom exercício mental, por outro aceitar que as coisas são como a maior parte das pessoas as vê, é também uma forma de exercer inteligência. Para que conste, não estou a fazer referência a nenhum tipo de relativismo ético. Proponho apenas um lugar de observação em que tudo pode ser o que quiser e eu não tenho necessariamente que me apropriar disso. Aceito sem julgamento todos os atletas de maratonas permanentes em direção ao significado das coisas. Não deixo de me identificar com eles mas passei a aceitar melhor quem decide parar como forma de estar. É falsa essa dicotomia entre fazer ou não fazer. É apenas uma forma de simplificar a realidade mas nada que é simplificado é completamente verdadeiro. Posso sair à rua e cumprimentar os meus vizinhos, mesmo aqueles que parecem relutantes em me cumprimentar de volta. Ter cafés de preferência e outros de que não gosto, como tinham os meus pais e os meus avós antes de mim, aqui, no mesmo sítio. O caos continua a ser belo dentro de mim. A casa pode ser a mesma e o mar o mesmo e as árvores as mesmas mas como diria Heráclito, qualquer tipo de existência é fluida. A casa, o mar e as árvores não são as mesmas todos os dias porque eu não sou a mesma todos os dias.

21 Mai 2021

O silêncio de Deus

A infância é, para cada um de nós e à medida que a vamos abandonando, um lugar estranho e distante. Por muitos, um lugar desejado, mitológico, idílico, um paraíso perdido de que fomos expulsos sem remédio nem perdão. A tal “land of lost content” de que escreve o poeta AE Housman.

Para outros, em que me incluo, é diferente. Nem paradisíaca nem infernal, apenas uma etapa numa corrida que inevitavelmente irá terminar da pior maneira. Para aqueles que tiveram a sorte de a ter, a infância pode apenas ser – e agora chamo em minha defesa o meu poeta Larkin – um lugar de “forgotten boredom”. As mitificações da infância nunca me interessaram muito porque na verdade a minha utopia foi desde sempre a de ser velho, a de saber mais e poder fazer o que queria à beira da inimputabilidade. Não me levem a mal: adoro crianças e tenho gosto em ouvi-las e vê-las na sua bondade e crueldade em bruto. Mas prefiro ser o que sou agora mesmo.

No entanto, e como aconteceu a muita gente, não sou exactamente quem queria ser. Ou o que queria fazer. O leitor conhece a pergunta porque ainda está a ecoar na sua memória: “O que queres ser quando fores grande?”, perguntaram-nos tantas vezes nessa altura em que mal conseguíamos sustentar a nossa personalidade titubeante. E nós respondíamos, encostados aos nossos ídolos do momento ou às profissões que julgávamos mais aventureiras.

Pela minha parte, a escolha é sortida e foi evoluindo com a idade: piloto de Spitfire pela Royal Air Force em 1940 (sim, eu sei, não digam nada, obrigado), detective privado como o Philip Marlowe, vocalista de banda rock, realizador de cinema, diplomata, jornalista (esta lá consegui), escritor, dandy diletante (esta também, mais ou menos).

Mas reparava que muitos dos meus amigos tinham um fascínio comum: queriam todos ser astronautas. O como e o porquê não interessavam: apenas viajar pelo espaço. Tinha cinco anos quando vi a chegada do homem à Lua e também eu fiquei siderado por aquela extraordinária conquista. Mas não me chegava.

Até que há poucos anos descobri que também gostaria de ser astronauta. Corrijo: um astronauta chamado Michael Collins. Este homem, que morreu a passada semana aos 90 anos, foi para mim um exemplo e motivo de inveja. Integrado na missão Apolo XI – aquela que foi pela primeira vez à Lua – na companhia de “Buzz”Aldrin e Neil Armstrong, Collins foi o homem que ficou no Módulo de Comando orbitando a Lua enquanto os seus companheiros davam os pequenos passos para os homens e imensos para a Humanidade. Um trabalho essencial, rigoroso e discreto. Mas o que para mim é o mais sedutor: de cada vez que o Módulo de Comando orbitava a Lua o astronauta perdia o contacto com o controlo de missão em Houston durante mais de 40 minutos. Por causa disto chamaram-lhe “o homem mais solitário de sempre”, embora Collins não concordasse: ouvia música, bebia café, fazia o que queria durante aqueles minutos de “paz e sossego”, para citá-lo.

Nem terá sido esquecido. A cultura popular encarregou-se disso, às vezes com uma maldade injustificada como foi ter um tema dos Jethro Tull com o seu nome; outras de forma mais digna, como aconteceu na série The Crown.

Mas a questão mais bonita é esta: quantos de nós, quantos de nós experimentaram o silêncio puro, lá onde o som não se pode propagar? Mais: quantos de nós o suportariam, ainda por cima agora, em que o ruído é a divindade que se louva e pratica? O silêncio de Collins é o exemplo maior: um silêncio desejado, aceitado e perfeito para estar em condições de ouvirmos o outro e a nós próprios enquanto pairamos docemente sobre a cacofonia do nosso planeta.

Concordem comigo, amigos: poucos ou nenhum de nós serão astronautas. O silêncio, aquele silêncio, é inalcançável. Um lugar onde não existem respostas porque não existem perguntas. O silêncio de Deus.

5 Mai 2021

Da infância

Bukowski escreve algures, num poema dedicado ao pai: «mas sobrevive-se: o suicídio antes dos dez anos / é raro.» De facto, a infância e adolescência do velho tarado não foram propriamente fáceis: a um pai autoritário e austero que lhe aviava copiosamente a malinha quando para aí virado juntava-se uma mãe absolutamente conivente com o programa pedagógico do marido. Como uma desgraça nunca vem só, na puberdade aparece-lhe um camadão de acne tão grande que tem de ficar em casa quase um ano para não ser diariamente humilhado na escola.

A minha infância está longe de comportar tamanha quantidade de desastres. E, ainda assim, foi tudo menos feliz. Nasci em França em 1974, em Clermont-Ferrand, a cidade-sede da Michelin, para onde acorriam imigrantes pobres à procura de trabalho. Escusado dizer que a vida de imigrante não é fácil. O meu pai aprendeu francês já adulto e tinha um sotaque característico ao falá-lo. A minha mãe, como esteve menos tempo em França do que ele, nunca chegou a saber mais do que umas frases balbuciadas a custo. Eu aprendi francês na escola, pelo que o meu vocabulário e sotaque eram os de um nativo (muita coisa, no entanto, se foi perdendo com o tempo). Mas, mesmo assim, os meus coleguinhas trataram de nunca me fazer esquecer de onde vinha. Eu era imigrante. Estava lá como convidado. Tinha de me portar bem, deixá-los passar à frente e corresponder aos estereótipos.

Ser-se muito bom aluno não ajuda a fazer amigos. Ser-se muito bom aluno e imigrante é a garantia de que nunca se será convidado para uma festa de aniversário, que nunca se entrará na casa de um dos colegas de turma, que nunca se será seleccionado para um jogo qualquer no intervalo das aulas. A infância, despida ainda do verniz civilizacional que nos torna relativamente toleráveis e tolerantes, é a altura da vida em que um sujeito arranja cicatrizes que se entretém a lamber até ao fim dos dias. Os putos, capazes do melhor e do pior, conseguem ser extremamente cruéis de modo absolutamente gratuito.

O meu pai matriculou-me num colégio de freiras. Como já estava em Clermont-Ferrand há alguns anos e tivera contacto privilegiado com os resultados do ensino público, decidiu esticar tanto quanto possível os cordões à bolsa e proporcionar-me uma educação privilegiada. Eram poucos os filhos de imigrantes na minha escola. Os nativos – os legítimos – já achavam a minha presença pouco condizente com aquilo que era esperado de mim, enquanto filho de imigrantes pobres, em França. Ser bom aluno era apenas acrescentar insulto à injúria. Os filhos dos emigrantes portugueses eram conhecidos em França – com mais ou menos justiça na composição do retrato – por serem uns rufias semi-abrutalhados com apetite precoce por vinho tinto. Os seus pais eram homens e mulheres atarracados, com modos campestres, que resolviam desavenças de vizinhança de machado em punho. Nem eu nem os meus pais correspondíamos ao retrato-robô.

Não me foi difícil escolher entre ficar em França ou regressar a Portugal quando o meu pai me propôs, aos 10 anos, essa escolha (note-se que «regressar» nesse sentido era um conceito vagamente metafísico – como regressar quando nunca foi a casa o sítio para onde se «regressa»?). Nada tenho contra os franceses, muito menos contra os miúdos que, à altura, apenas estavam a ser o que são os miúdos um pouco por todo o lado. Mas eu era tremendamente infeliz em França. Tão infeliz que sair dali para Portugal e chamar-lhe regresso ou para qualquer outro sítio era irresistível.

Que guardo de bom? O sabor das galettes na padaria perto de nós; alguns gestos esparsos mas importantes de amizade e de carinho; a forma como alguns professores olhavam para mim e que me enchia de orgulho e acendia alguma esperança.

A minha sorte, em relação a quase tudo o resto, foi ter péssima memória a longo prazo. Quando olho para trás é como se aquela criança fosse outra pessoa e não eu. Acedo aos vestígios do seu passado com algum distanciamento saudável. E, ainda assim, não consigo evitar sentir pena dela.

16 Abr 2021

O Paraíso Perdido da Infância

[dropcap]O[/dropcap]lho para o meu filho, ausculto-lhe o nascimento. Nasce-se e nunca se está verdadeiramente pronto para sobreviver, quanto mais para existir. Existir começa com o contacto com o outro. Eu só existo por oposição ao outro. É do contacto com os primeiros cuidadores que o universo inteiro se desembrulha, com todas as assunções subliminares que a nossa micro-relação interpessoal com os nossos guias-protectores no mundo nos incutem para sempre, como uma genética emocional, gravada, perpétua por ser a primeira aprendizagem, a primeira experiência. Os primeiros medos, as primeiras formas de amar, tudo surge dessa cartografia afectiva que nos foi deixando mapas inconscientes aos quais regressamos sempre para explicar um fenómeno ou para reagir a um determinado estímulo.

Este mundo que nos é atirado para as mãos como um presente é um privilégio que vamos ter de justificar, muitas vezes, para nós mesmos, para o resto das nossas vidas. A infância é o laboratório social que nos modela a personalidade e por isso precisamos de voltar a ela. Não é aqui a psicanálise o mesmo que uma teologia da personalidade humana, a criação de uma mitologia pessoal que vamos tentar descortinar, sem qualquer certeza. Foram a secularização e o desenvolvimento da economia e da sociedade burguesa que permitiram esta afirmação sem precendentes do poder do indivíduo como único, quase omnipotente.

Podemos verdadeiramente depender desta assunção?

“Dichtung” em alemão significa simultaneamente poesia e verdade, é Goethe quem traz à humanidade esta brilhante ideia de relacionar o passado com o presente, a criança com o adulto, a criança interior que fica para sempre lá dentro, dentro do adulto. Goethe usa o termo “Dichtung” para descrever a sua vida, porque ele a sabe inabitável, uma passagem onde se mantém algumas derrapagens na desarticulação natural da memória.

A infância é uma carapaça com língua. A infância é poesia e verdade entre o acontecimento empírico e factual, e a projeção idealizada. É ficção e racionalidade, o lugar de todos os encontros. Saímos dela inconscientes, regressamos a ela com um espírito científico, analítico, sedento de consciência, sedento de se apropriar do que é inconsciente para o tornar consciente. Primeiro existir, depois criar, primeiro a nossa infância, depois a infância dos nossos filhos. O “confrontamento hermenêutico com o conteúdo vivido” (Jacobs). O sujeito escava-se, encontra material, lê nisso as intervenções mais ou menos intencionais do próprio sujeito para lhe conferir perspectiva e significado. É desta forma que podemos esquematizar o privilégio emocional como soldados intelectuais com ferramentas psicanalíticas, colectar dados, procurar de padrões, tornar a vida em ciência. A poesia em facto.

Por isso, a superação anual dos níveis de privilégio emocional entre a população deveria ser estipulada prioridade política. Uma educação para o amor. Amar o ser, ausente de socialização, primitivo, amar a sua existência sem condicionamentos, amar um filho como quem explica o fogo.

28 Ago 2020

Na infância

[dropcap]A[/dropcap] infância é fonte de doçura e melancolia. Havia uma fusão entre o cada um de nós e as pessoas e os lugares, uma integridade entre aqui perto e lá longe. Não porque não houvesse diferença entre próximo e distante, à superfície e no fundo do mar, mas porque tudo era tão estranho à superfície, na proximidade como era na profundeza e à distância. Cada um dos outros não era nunca um indivíduo, um sujeito, fulano, beltrano ou sicrano. Eram verdadeiras personagens reais com uma densidade disposicional que vibravam o seu ser em todo o nosso ser. Em nenhuma outra época da vida a música invade e alastra para todos os outros sentidos. O papão indefinido é o pior dos monstros porque não é definido com nenhum rosto, mas é em potência o mal que mete medo apenas por assustar. Mal nós sabíamos que já na infância encontraríamos todo o mal e todos os papões e que mais tarde na vida a distância entre o possível e o concreto é ténue, absolutamente ténue. O mal espreita-nos descaradamente invisível para nós. Está no nosso quarto, atrás de nós com o rosto pousado no nosso ombro ou a olhar-nos frente a frente com a sua testa encostada à nossa. O mal está nos becos, em ruas pouco iluminadas, mas está também nas praças públicas, na praia cheia de gente em Agosto, está na cidade inteira, no país. O mal pode ser o poder de fazer mal, causar dano, infligir dor, provocar sofrimento. O seu objectivo final é a destruição da essência da coisa que ataca. A essência do ser humano é a vida. É isso mesmo que quer atacar, se for lentamente, será lentamente, mas se tiver de ser rápido, quererá ter-nos a si por uns instantes. Mas o mal é sobretudo individual. Temos, cada um de nós um mal individual. Não falo apenas do mal que sabemos que podemos infligir a cada um de nós, tenhamos ou não a tendência para o masoquismo. Sabemos como todos temos um pouco de S&M em nós. Mas não é a essa que me refiro. É o mal que está a desdobrar-se de nós que nos olha a cada instante, que está connosco em cada momento, coincide com o nosso corpo, está continuamente a deixar-nos vulneráveis, expostos a si. Na verdade, o nosso nascimento é um triunfo sobre o mal, a nossa sobrevivência até agora, meus caros, é do outro mundo. O mal está contra, desde o princípio. O mal é o princípio fundamental da negação. Quando dizemos sim, diz não. Quando queremos, o mal quer mas quer que não. Quando alguém deseja, deseja também que nós desejemos, mas só para elevarmos a nossa fasquia às alturas do sonho para que a nossa frustração seja maior. Quanto maior é a altura a que o desejo nos eleva em voo, assim também o mal nos incute ímpeto, eleva com as asas de Icaro, leva a querer sempre mais e mais altura, mais e mais velocidade, a ter mais e mais extensão, mas só para nos precipitar no abismo que é o seu elemento, nos fazer cair continuamente, sem rede, não necessariamente para nos destruir, pelo menos não logo, mas mais tarde. Quando respiramos, o mal quer tirar-nos a respiração, quando vemos, quer cegar-nos, quando bate o coração, quer arrancar-nos, a pele que nos envolve é para ser arrancada e todos os ossos que nos mantêm é para serem partidos e desossados. O mal é o caos. O mal quer-nos para si, se for do Caos que nascemos como diziam os antigos. O caos não era só a desordem nem o desregramento sem lei. Era o abismo da negrura, situado nas profundezas. Ainda hoje dizemos que somos atraídos pelo abismo.

O caos é a desordem porque a noite escura da eternidade é informe. Ao adormecermos temos por vezes a sensação de queda, de que vamos cair. Ao perdermos a atenção, sentimo-nos fora. Ao perdermos a concentração, dá-se o desanuviamento. A morte é a grande noite que nos engolirá, a garganta do abismo que tudo está a engolir, o buraco negro que desde sempre nus suga na sua direcção. O mal é cada instante que se oblitera, que não volta mais. Nada nunca é ultrapassado. A vida é agora e não volta nunca mais. Talvez volte toda ela para ser repetida, mas é uma suposição metafísica.

Tenho sido atirado para dias da infância, dias das férias grandes do mundo. São na verdade dois momentos de dois dias de férias grandes diferentes que não consigo datar. Ou estou com outros miúdos a brincar, jogando um qualquer jogo colectivo, ou estou na praia. No primeiro momento, senti pela primeira vez o êxtase de estar vivo, tudo rodopiava numa dança extravagante e centrífuga que sacudia o meu corpo. Não era só bem-estar, nem apenas satisfação ou contentamento, nem alegria. Era êxtase, embriaguez. Estava completamente em mim e fora de mim. Era a vida a expandir-se por todas as minhas células com todos os seus átomos e moléculas, numa extravagância sem limites. Era a vida a apresentar-se. A deixar o seu cartão de visita. A dizer-me como era possível. No outro momento, estou na praia à tarde na hora do calor. Não está ninguém ou muito pouca gente. A areia escaldante e o rio com água transparente. Do cimo das dunas, olho a foz. É um vislumbre muito mais simbólico. Estes dois momentos surgem-me. São a euforia da infância. Não ordenam a desordem. São o que o universo dá a sentir quando traz cada ser da garganta abismal do caos para a luz, para a transparência.

Na euforia do encantamento daqueles dias em que me confundia com a totalidade, estava já presente a melancolia do princípio do fim. A euforia, a transparência, são o nascimento espiritual e ao mesmo tempo o princípio da precipitação, quando o espírito que sempre nega começa a actuar. Ou foi ele que nos fez nascer?

5 Jun 2020

Uma vida simples

[dropcap]A[/dropcap] despeito de tudo quanto penso ter aprendido ao longo do titubeante percurso a que chamo “a minha vida até agora” – de certa forma bastante privilegiado por contraste com a vida dos meus pais, por exemplo – há coisas que me descubro a fazer nas quais as figuras de pai e de mãe se intersectam em mim, pequena roda dentada movendo a intemporal engrenagem do cuidado e da preocupação que em cada geração e sob diferentes roupagens transforma um ser humano banalmente autocentrado em mãe, e, com alguma sorte e mais trabalho, em pai.

Ao contrário do que imaginava na adolescência, ser mãe ou pai não é de todo fácil. E a dificuldade não reside “nas grandes questões” mediante as quais os adolescentes fazem questão de ridicularizar a geração que lhes precede. O problema, como quase sempre, não são os grandes ideais, o abstracto ou as questões morais da época. O problema é mesmo o dia-a-dia, as pequeninas coisas que conformam a teia mais ou menos segura da quotidianidade: o lugar da pasta de dentes, a conta da luz, o facto de ninguém se parecer importar com a forma como o tapete fica geometricamente desalinhado em relação à cómoda quando se passa por ele sem ter o cuidado de o endireitar depois.

Apesar dos inegáveis avanços técnicos, sociais e culturais que o império a prazo a que chamamos humanidade tem produzido, ainda ninguém nasce herdando qualquer tipo de conhecimento. A enormíssima vantagem do humano – a sua indeterminação cognoscente originária – implica, por outra parte, que cada um tem de aprender tudo outra vez: a andar, a falar, a comer com talheres, a namorar, álgebra e metafísica, a mudar uma fralda, a fazer o luto. Somos todos repetidamente principiantes. E isso nota-se quando se tem um filho: aqueles que nos precederam sentiram aquilo que estamos a sentir em cada fase do processo pelo qual se consolida paternidade ou maternidade. As mesmas inseguranças, as mesmas dúvidas, a mesma incapacidade de confessar a ocasional vontade de desistir de tudo.

É quando muito cedo pela manhã e em modo automático preparo o meu filho para o deixar na escola que mais sinto o quanto cresci enquanto pai (há outras ocasiões em que sinto precisamente o oposto, pelo que o saldo oscila entre neutro e suficiente menos, não dando lugar a qualquer assomo de orgulho). A necessidade acaba por instalar alguma disciplina nos lugares das coisas, nos gestos, na sequência dos actos. A pobre criança, que outrora tinha de acordar muito mais cedo para parecer vagamente humana ao passar pelo portão da escola tem agora a oportunidade de, acordando uma hora mais tarde, sair de casa mais compostinha. Deve ser a isso que os economistas da nossa praça chamam eficiência. Talvez me tenha tornado alemão na questão da paternidade.

Há um conto do Tolstói, chamado Padre Sérgio, no qual um clérigo tomado pelas dúvidas em relação ao comportamento adequado em terra para chegar ao céu acaba, depois de muitas atribulações particularmente gráficas, por compreender a simplicidade e a sua necessidade, a segurança da rotina, os pequenos passos indispensáveis para percorrer um caminho que ele queria atalhar num salto grandioso. A vida é muitas vezes isso mesmo: uma difícil e demorada tensão para a simplicidade.

21 Fev 2020

Da infância

[dropcap]O[/dropcap]que fazemos da infância? De que nos serve, como usamos esse prefácio de nós mesmos? Demasiadas perguntas retóricas para um início de crónica, talvez. E no entanto.

Sobre a infância e a sua influência no que mostramos que somos muito se pode dizer – sobretudo nesta era pós-freudiana, que justifica análises de personalidade com acontecimentos e memórias dessa época de crescimento. Mas daqui desta varanda só vejo o dia-a-dia, e é isso que me interessa. E desta varanda proclamo: a infância está sobrevalorizada. Um pouco como a juventude, de resto. Mas essa será outra conversa.

O mais importante da infância é garanti-la. Fazer com que exista, com carinho, protecção e amor. Quando isto acontece – o que é uma sorte, diga-se – toda a idealização me parece descabida e menor face ao adulto que somos. Para variar, socorro-me da literatura para dar a perceber duas maneiras antagónicas de enfrentar o nosso inicio: Philip Larkin dizia da sua infância que foi um “tédio esquecido” (“a forgotten boredom”). Conhecendo a biografia do poeta sabemos que estava a exagerar um pouco – mas só um pouco. No outro extremo, outro poeta inglês: AE Housman dedicou belíssimos poemas a esses dias longínquos, e para eles cunhou o seu verso mais célebre: “That is the land of lost content”. O país do contentamento perdido, inalcançável, a que nunca mais iremos regressar. O primeiro, um melancólico; o segundo, um nostálgico. Como de costume, e como em quase tudo, estou com Larkin.

Há algum tempo pude rever alguém com quem partilhei os recreios da escola primária e que desde então não tinha voltado a ver. A vida tem o hábito de desrespeitar qualquer tipo de nostalgias. E se bem que consegui colocar o rosto dessa minha amiga em folguedos e contentamentos perdidos, quem eu conheci foi outra pessoa e foi a essa pessoa a que reagi. De nada me valeram ou interessaram presumíveis momentos dourados de pureza e inocência. Eram fantasmas, por mais amáveis ou bem embalsamados que estivessem; e não é muito interessante conviver com fantasmas.

O que vale mais, uma suposta inocência ou a perda disso mesmo? Eu voto pela segunda. A primeira terá que ser precavida, mas nunca idealizada. As culturas que dão valor à velhice percebem que a infância não é um tempo ideal: apenas uma etapa necessária para uma sabedoria transmissível. Não se pode responsabilizar algo com que crescemos indefesos. É por isso que as nostalgias das reuniões de antigos colegas são falácias suportadas. Ninguém se quer ver como era ou pelo menos comparado com o que é. A infância, embora tenha de ser suportada, é sobrevalorizada.

Compreende-se o culto: por vezes a infância é uma urgência que nos acontece em adultos. Leio o excelente Fotografia Apontada À Cabeça, terceiro livro do mano José Anjos, e pressinto nos versos uma infância entalada na garganta, uma criança que caiu e pede ajuda para se levantar. Interessa-me isto, a infância como motor de criação; mas não como lastro para a vida adulta. A velhice é-me mais grata e bem-vinda porque é sempre sabedoria. E como dizia Píndaro, uma velhice honrada e graciosa é a infância da imortalidade.

 

20 Mar 2019

Eterna aprendizagem

[dropcap]A[/dropcap] minha mãe tinha um hábito que eu, em criança, detestava. Quando me levava a uma consulta médica ou a um bailarico de imigrantes – ocasiões nas quais nos era exigido um aprumo suplementar – humedecia a ponta dos dedos com a língua e alinhava-me as grossas – e perpetuamente desarrumadas – sobrancelhas. Era tanto um gesto de cuidado como um tique incontrolável. Anos mais tarde, ao levar o meu filho à escola – ele que herdou de ambos lados da família umas sobrancelhas de nível florestal – dou por mim a mimetizar o gesto materno: antes de ele entrar na aula, componho-lhe as calças, ajeito-lhe o cabelo e alinho-lhe as sobrancelhas com um dedo húmido de saliva. Como numa das mais belas canções da Elis Regina: “Minha dor é perceber / Que apesar de termos feito tudo o que fizemos / Ainda somos os mesmos e vivemos / Ainda somos os mesmos e vivemos / Como os nossos pais…”

Não foi só esse gesto que herdei da minha mãe; devo-lhe igualmente a teimosia, uma boa porção de sarcasmo, a capacidade de me rir de mim próprio e, tentando futilmente pôr de parte a inevitável lamechice que vem à tona sempre que falo da minha mãe, provavelmente as melhores partes de mim. Do meu pai recebi a propensão a não saber quando estar calado, o gosto pela caça, pelo tabaco e pelo álcool e uma tendência a não acabar algumas das tarefas que me disponho a fazer, sobretudo se implicarem construir ou arranjar qualquer coisa.

Só percebi verdadeiramente os meus pais quando eu próprio fui pai. Sobretudo de todas as vezes em que falho ser pai, em que sou demasiado pequeno ou demasiado fraco para a tarefa incessante de educar e de cuidar de alguém. Nessas alturas lembro-me dos rostos fechados deles, tolhidos pela vergonha de não estarem à altura e pelo medo de nunca o conseguir estar. Conheço agora por dentro esses rostos. Essa declinação visual da impotência que todos os pais e mães desde sempre conheceram e exprimiram. A vivência da paternidade reperspectiva a condição de filho; de repente estamos do outro lado da fronteira, mal preparados, como quase em tudo na vida, e vivemos finalmente o interior dos gestos e das decisões de que víamos apenas, e mal, a casca. De repente percebemos as limitações, a angústia, o cansaço e, sobretudo e de uma forma completa e vertiginosa, o amor e a sua urgência complexa.

A minha mãe nunca percebeu porque é que eu quis tirar filosofia ou escrever. Não aprovou muitas das minhas escolhas na vida, nomeadamente as que implicavam uma relação de custo-benefício no mínimo duvidosa. Mas nunca fez mais do que opor-se-lhes verbalmente. Nunca fez por me condicionar a escolha do caminho ou por me cercear a liberdade. Essa é a majestade suprema do amor materno: amar aquilo que não compreendemos, amar mesmo aquilo que exprime o que não gostamos.

Enquanto pai, sei que nunca vou estar à altura da tarefa que me coube. Nunca ninguém está. Como escreve Philip Larkin, no poema This Be The Verse: “They fuck you up, your mum and dad / They may not mean to, but they do.” A minha módica esperança é a de nunca achar-me na posse da ilusão do conhecimento suficiente para ser pai. De achar-me sempre aquém, em falta e em dívida – sem que estas me esmaguem – para querer ser sempre melhor pai do que o sou hoje. Porque esse é o tributo maior que posso prestar ao meu pai e à minha mãe. Esse é talvez o único tributo possível.

11 Jan 2019

A lapiseira amarela

[dropcap]L[/dropcap]apiseiras era o que eu mais perdia na infância. Sempre as achei fascinantes. Eram lápis sofisticados. Não requeriam aparo. As minas eram substituídas. Eram mais grossas do que as que eu agora uso. As lapiseiras tinham uma estrutura metálica em forma de garra para prender as minas. Havia de muitas cores.

Lembro-me em particular de uma amarela. Transportava-a dentro do estojo em forma de chuteira de futebol com borracha Rotring, que ia dentro da mochila. Houve alturas que sublinhava a vermelho e a azul, a lápis e depois a tinta, mas prefiro os livros sublinhados de leve. Ainda não consigo fazer como em Oxford. Não sublinhar os livros não é ainda para mim uma opção. Uso, não minto, os PDF’s para buscar palavras e ocorrências e as ler em contexto, mas cada vez mais estou dependente do papel, seja em livro seja em fotocópia. Vejo mal ao longe e ao perto, mas as letras em tamanho máximo no ecrã não são tão cómodas como as palavras no papel.

Lapiseiras era o que mais perdia na infância. Mas perdia muitas outras coisas. Não sei se eram roubadas as coisas ou não. Quero acreditar que não. Desapareciam. Estavam ao pé de mim. Depois, sem me aperceber de como desapareciam completamente. Como é que a única coisa de que damos falta, que está ausente, em paradeiro desconhecido, passa a ser a única coisa em que pensamos, a que damos consistência. Li mais tarde a formulação latina praesentia in absentia. Quando perdemos uma coisa, não sabemos onde ela está. É o advérbio interrogativo que faz a pergunta. Onde está a lapiseira? Onde deixei a lapiseira? Onde está X? Sabemos ou julgamos saber onde estão todas as coisas ou não nos importa saber onde elas estão.

Não é por precisarmos dela necessariamente que perguntamos onde estará a lapiseira. Pode ser só para saber onde está, para sossegarmos, porque não lidamos bem com a perda de objectos que são nossos. Não lidamos bem com a perda. É simbólica esta perda? Ou não será porque damos valor ao que temos. Damos o valor ao dinheiro que resulta do esforço do trabalho para podermos comprar coisas. Damos valor afectivo às coisas. “As nossas coisas” dizemos.

Queremos saber da sua disponibilidade. Queremos saber onde estão as coisas, as nossas coisas.

Mas aquela única coisa que julgamos perdida é interrogada a respeito do seu lugar. Não achamos que evaporou, mas é como se se tivesse evaporado. Abre-se um campo de latência mais ou menos definido dos sítios onde pode estar. Debaixo das peças de mobiliário da sala de aula, das cadeiras e das secretárias. Revolvo a mochila, procuro em todos os cantos e recantos. Lembro-me de ter tido a lapiseira na mão e depois sobre a secretária.

Não pode não estar senão ali. E nada. Em casa, procuro-a por toda a parte. Afinal, posso ter-me confundido. Não não posso ter-me confundido. E a mãe diz que sou desleixado e distraído. A distração sempre foi uma maleita confesso. Depois mais tarde foi objecto de trabalho aturado, mas está sempre à coca. Mal sinta que baixo a guarda, aí vem ela.

Tantas lapiseiras que tive. “Agora, vê lá se a perdes”. “A” é a nova lapiseira. É amarela e preta como alguns lápis antigos.

Mas onde é que raio foi parar a lapiseira amarela? Assaltou-me agora essa memória da infância. A memória da lapiseira, a memória da perda de objectos do passado. Sou transportado para o Santa Maria de Belém, numa rua onde fui há pouco tempo jantar com o João Paulo Cotrim. Uma rua que tem um externato, onde eu andei. Foi há mais de 40 anos. As ruas são engolidas pelos bairros que não frequentamos e desaparecem da vista e do quotidiano.

Onde estará a lapiseira amarela e a minha infância e tudo o que havia?

7 Dez 2018

Verões

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]stes dias de calor abrandam o dia. Mesmo o vento nas ruas que lhe estão expostas é quente. Ou então não mexe uma palha. Percebe-se a lentidão dos gestos como uma tentativa de arrefecimento. O mais pequeno gesto convoca uma libertação energia. Apesar da inércia destila-se. O céu azul e as praias lotadas atestam a persistência do verão no outono. Outrora, havia um mundo vivido pelas férias grandes, início de anos lectivos, reencontros. Há quem nunca tivesse saído de anos escolares. Talvez só saia desse ritmo anual quem não tenha contacto com escolas, por não ter filhos.

A pujança do verão impõe-se, ainda. Agora, pelas suas características meteorológicas. Ou alguém nos traz os verões passados. Os verões da infância eram cheios de noites de calor insones, antecipando manhãs de praia e sestas a seguir ao almoço. Os da juventude eram dias e noites sem amanhã, com os ruídos da idade, céu estrelado, romance, feliz ou infeliz, pequenos almoços nas padarias de um qualquer local e dias mal dormidos no parque de campismo ou, pior ainda, na praia.

Também podia haver o resguardo. A antecipação de um ano lectivo particularmente exigente suscitava a leitura. As tardes desses verões passadas no campo ou na praia tinham o ritmo voraz das leituras, variavelmente feitas de pé ou deitados, gramática, poesia, romance. Acompanhada de café com limão e gelo lia-se a Crítica da Razão Pura de Kant a inventar as condições de possibilidade da experiência.

Há os verões da doença de familiares. Há os verões com as mortes de familiares, no princípio, meio ou fim. Há mortes que se antecipam e outras, não. Esses verões são oceanos em que não se mergulha. Atravessa-se a estação sem estar nela. O alívio vem com as primeiras chuvas, os primeiros dias frios, quando se passa a usar a roupa de inverno e se arruma a roupa de verão. Delineia-se, contudo, sempre o mesmo verão, um verão que está inscrito em nós pelo universo, pelos dias grandes, pelo calor, pela luz. Ou talvez seja o próprio princípio, a própria ideia de princípio. O primeiro ano cósmico inculca-se-nos nas nossas cabeças. Não o esquecemos e não podemos lembrar-nos dele, vivido o tempo primordial como o tempo pré-natal, sem verdadeiramente cá estarmos. Mas essa inscrição lança-nos e projecta-nos para um futuro a haver numa outra possibilidade.

E alguém aparece. Não é alguém em abstracto nem é geral. É alguém que tem ainda em si inscrito o verão e põe em prática ainda o da sua infância. É um verão de dias longos de praia, banhos atlânticos, travessias de rios, fins de tarde, jantares à conversa e, quando é noite, abraços e beijos. E se achássemos que tínhamos tido verões, afinal não os tínhamos tido. Foram verões só literários, ficções de possibilidades, atestados pelo que cremos ser os verões dos outros. Mas é possível que, tarde na vida, sem contar verdadeiramente com nada surja como uma brisa ou a leve corrente do rio a encher, um verão partilhado, na verdade, inaugurado por um outro aí comigo.

5 Out 2018

A infância ao longo da vida

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] infância é o território pluripotencial do sonho. Tudo é possível. Podemos ser astronautas, veterinários, bailarinos. Nascemos ilimitados para o mundo, mesmo quando este se revela um lugar inóspito onde só parece vicejar a miséria, e a idade é um funil poroso através do qual vamos actualizando ou perdendo as possibilidades com que todos nascemos. Como se levássemos um grupo de miúdos pela mão a passear e nos déssemos conta, a certa altura, de termos deixado mais de metade pelo caminho.

Quando era criança, queria ser astronauta. O grande mistério – e o grande interesse – era o que estava longe. Longe estava igualmente de perceber que a proximidade não era de todo sinónimo de clareza e que as motivações dos homens podiam ser tão insondáveis como a mais distante estrela.

Com sete ou oito anos, pedi ao meu pai para me comprar um livro especial: “Astronomia para amadores”. Se queria ser astronauta, era importante preparar-me teoricamente. Tudo me fascinava. Os tipos de estrelas; as suas dimensões e temperaturas incompreensíveis; a velocidade da luz no vácuo; a distância entre os corpos celestes. Estava convencido de que havia uma organização inteligente por detrás da composição de um espectáculo aparentemente tão perfeito. E estava convencido de que tornar-me astronauta era ter a possibilidade de chegar mais perto do mistério.

Como é óbvio, e embora a paixão pela astronomia não se tenha dissipado com a idade, não me tornei astronauta. Como muito de vocês não se tornaram veterinários, actores ou bombeiros. Deixámos isso na infância e pelo caminho alimentámos outros sonhos, outras possibilidades. Ser adulto é também – e sobretudo – isso: conformar-nos com a realidade. Como aquelas ementas deliciosas das quais afinal só sobram meia dúzia de pratos que eram as nossas terceiras escolhas.

Quando olho para trás, percebo que não foram as estrelas ou as constelações que me fizeram apaixonar pelo espaço. Foi o mistério, essa intangibilidade de muitos nomes. O mistério que atrai tanto os poetas como os filósofos e teólogos. O mistério que de algum modo justifica e dá sentido a esta existência infinitesimal que fingimos, logo de manhã ao acordar, ter espessura.

Escrever tornou-se para mim uma forma de tentar acercar-me do mistério. É o meu espaço possível. É onde encontro a infância, o outro, o exótico e o familiar, os meus mortos e os mortos alheios, aquilo que deixei pelo caminho e aquilo com que fui substituindo o que deixei. Dir-se-á que é um fraco paliativo para a contemplação da terra na órbita da mesma. Verdade. Mas há quem não tenha encontrado um paliativo. E há esteja tão distraído com a seriedade que impõe ao dia-a-dia que já não dá conta de que este é apenas um aspecto ínfimo de uma coisa muito mais vasta e permanente.

25 Jun 2018