A última noite do Império I

Por Luis Nestor Ribeiro (1)

Introdução: Uma Macau Multicultural

Viver e trabalhar como profissional num meio de comunicação social em Macau, especialmente nos anos que antecederam a transferência de administração para a China em 1999, foi uma experiência imersiva e transformadora. No coração desse território pequeno e vibrante, não fui apenas um mero observador, mas também um interveniente empenhado, em experienciar na primeira pessoa, uma das mais complexas fusões culturais do mundo. No Passado, Macau não foi uma simples colónia europeia em território chinês, foi primordialmente um lugar onde o Oriente e o Ocidente não apenas coexistiram, mas também se entrelaçaram: – num diálogo constante, às vezes harmonioso, outras vezes tenso, sempre fascinante.

Desde os meus primeiros dias em Macau, fui atraído pela riqueza cultural que moldava a vida quotidiana da cidade. Nos becos e ruas estreitas, havia sinais da longa presença portuguesa, com suas igrejas barrocas e casas coloniais, enquanto os mercados fervilhavam com a energia dos vendedores chineses. O cheiro de chá acabado de preparar pairava no ar enquanto o som de sinos dos templos budistas ecoava ao longe. Essa singular fusão de culturas constituiu sempre a sua essência, e para entender a transferência de administração (2) que se aproximava, era necessário compreender primeiro o que fazia de Macau um lugar tão único.

A Fusão de Culturas

A história de Macau conheceu novos protagonistas no século XVI, quando os portugueses chegaram como navegadores e mercadores, transformando paulatinamente um pequeno lugar num importante entreposto comercial no sudeste asiático (3). Desde então, o território tornou-se num verdadeiro caldeirão de culturas. O impacto dessa colonização portuguesa nunca se limitou à política ou à economia; foi um processo que deixou marcas profundas nas tradições, na língua e no modo de vida dos seus habitantes.

Passei a residir em Macau no início da década de 1980, por motivos profissionais. Ao deambular pelas ruas da cidade no papel privilegiado de voyeur (4) sem pressa, a quem fora permitido observar um grande laboratório multicultural em plena produção no Extremo Oriente, era impossível passar despercebida a ubíqua influência portuguesa: embora o ritmo da cidade fosse marcado pela vertiginosa actividade chinesa nas lojas e negócios, o ambiente do casario e suas elegantes fachadas coloniais convocava as emoções para um distante lugar mediterrânico. As calçadas com seus padrões ondulantes configurados por pedras alvinegras, conferiam às ruas uma beleza singular, ligando-as simbolicamente a Portugal, enquanto a serenidade das igrejas católicas contrastava com o misticismo fumegante dos templos chineses, como o Templo de A-Má, reverenciado pela comunidade chinesa local, em particular pelos pescadores e população flutuante, abrigada em sampanas e juncos no Porto Interior.

Macau nessa época(5) não era mais do que um pequeno anão adormecido à sombra de um gigante. Com escassos portugueses, pouco passavam de mil os que tinham vindo directamente de Portugal. Na generalidade eram funcionários públicos, professores, advogados e alguns militares a prestar serviço nas forças de segurança. A língua portuguesa era falada por cerca de 15 mil pessoas, numa população que rondava os 450 mil habitantes, cuja língua veicular predominante era o cantonense. A maioria comprimia-se numa estreita faixa, a península de Macau, com cerca de 5,7 km2 no que constituía um recorde mundial para a mais alta densidade populacional. Em conjunto, o território de Macau(6), administrado por Portugal, incluía as ilhas de Taipa e Coloane, com uma área total aproximada 15,3 km².

Macau era uma urbe envolta numa languidez entorpecida em contraciclo com a economia dos tigres asiáticos(7). Só existia uma ligação viária entre a península e as ilhas, assegurada pela elegante ponte Nobre de Carvalho, inaugurada em 1974. Apesar de possuir apenas duas estreitas vias de circulação, foi uma obra essencial para o desenvolvimento, facilitando o transporte de pessoas e mercadorias, impulsionando o crescimento urbano. O trânsito era caótico e pouco disciplinado. As viaturas podiam circular livremente pelo Largo do Senado, no coração da cidade. Tinham ainda a possibilidade de estacionar mesmo defronte do edifício do Leal Senado. O lixo amontoava-se nas ruelas e a sua recolha pelos serviços municipais não era eficiente. Ao longo da Rua da Praia Grande, na margem do rio, ainda existiam barracas de pescadores, em forma de palafita, com redes de pesca suspensas e puxadas através de um sistema de roldanas artesanais. No emaranhado de ruas, havia inúmeras tendinhas onde era confeccionada uma profusão de petiscos e comidas, – genuína street food antes de virar moda, – servida mesmo à frente do cliente. Aromas de arroz glutinoso, massa, peixe e carne, com legumes caldeados por molhos e temperos fumegantes que emprestavam ao ar um odor característico, estimulando o apetite dos fortuitos transeuntes. Um ambiente denso e carregado de fumo, não parava de cativar o forasteiro, dia e noite. Em redor dos casinos, era permanente a azáfama.

A gastronomia reflectia esse carácter eclético de forma deliciosa. Nos restaurantes, a comida era uma celebração da diversidade cultural. Nas imensas visitas a casas de chá e restaurantes locais, provei variados pratos que misturavam ingredientes chineses e técnicas culinárias portuguesas. O minchi, um prato tradicional macaense de carne moída com batatas e ovo frito, temperado com molho de soja, era um exemplo perfeito dessa mistura, representando a cozinha do dia a dia dos macaenses. Outros pratos, como o caldo verde e o pastel de nata, conviviam lado a lado com receitas chinesas mais tradicionais, como o dim-sum e o pato laqueado.

Além da comida, havia também a música, uma presença constante em Macau. Nas festas de rua e eventos culturais, ouvia-se o som do fado, cantado em português interpolado por árias de ópera de Pequim, mesclados ao ritmo das danças chinesas e dos tambores rituais das festividades, com destaque para o Ano Novo Lunar. E, claro, o patuá — a língua crioula única de Macau, que misturava português e cantonense, falada principalmente pelos mais idosos e hoje quase em extinção.

Nesse tempo as comunicações intercontinentais eram complexas e de difícil acesso. Para um português residente em Macau o contacto regular com os familiares distantes constituía um quebra-cabeças. As redes telefónicas fixas só permitiam o acesso directo a chamadas locais. A tecnologia de suporte a ligações de longa distância pressupunha a utilização de comunicações via satélite. Para o efeito, era necessário proceder presencialmente à reserva de circuitos na sede dos Correios, para um determinado horário, sujeito a confirmação e na presença de um telefonista de serviço. Essa complexidade acentuava ainda mais a sensação de isolamento em relação ao resto do mundo. Eram também frequentes os apagões de energia eléctrica, em virtude de a central geradora de electricidade no território não ser auto-suficiente. Uma parte substancial da energia necessária era importada da China, revelando uma dependência de Macau, de forma a satisfazer os requisitos de consumo quotidiano, cuja tendência era de aumento gradual.

A Identidade Macaense

Com o tempo, fui percebendo que a identidade macaense era muito difícil de definir, pressupondo uma mescla de complexidade e fluidez. Os macaenses, descendendo primordialmente de portugueses e chineses, com o contributo genético ocasional de outros povos meridionais do continente asiático(8), eram fruto directo dessa fusão cultural. Uma comunidade híbrida que vivia entre dois mundos, com um pé na Europa e outro na Ásia. O que os unia não era uma etnia, mas uma cultura compartilhada — uma cultura que, nos últimos 450 anos, se tinha desenvolvido de forma autónoma, sob o olhar distante tanto de Portugal quanto da China.

Numa observação muito superficial, para os portugueses, os macaenses eram vistos como diferentes, como “os orientais” — assumindo em muitos casos, a face visível da administração local – graças à faculdade que detinham, de poderem comunicar nos dois idiomas principais. Já os chineses nativos de Macau, viam muitas vezes os macaenses como “ocidentais”, portadores de valores e hábitos europeus. No entanto, os próprios macaenses não se reviam exactamente como europeus nem completamente como asiáticos. A sua identidade estava profundamente enraizada na singularidade de Macau, e muitos temiam que essa identidade fosse descaracterizada com a transferência de administração para o controlo chinês.

Essa incerteza era palpável nas conversas frequentes que eu tinha no seio do meu círculo mais restrito de amigos. Alguns sentiam orgulho na dualidade da sua herança; outros receavam que o retorno de Macau à pátria chinesa pudesse significar uma perda de suas tradições e liberdades. Essa identidade complexa era, para muitos, algo que devia ser protegido com determinação.

Notas

1-Author, Media Consultant, TV Director / Producer. Lived and worked in Macau for 25 years, between 1983 and 2008.

2-Neste artigo considero que a Cerimónia de Transferência de Poderes em 20 de dezembro de 1999 foi essencialmente isso – uma passagem de testemunho entre nações que se respeitavam e que souberam manter um entendimento cordial ao longo de mais de quatro séculos e meio, não obstante haver autores que a designam como ‘Transferência de Soberania’, em linha com o que se passou em Hong-Kong em 1997, entre a R.P.C. e a coroa inglesa. No caso específico de Macau, a soberania chinesa sobre o território já tinha sido formalmente reconhecida pelas autoridades portuguesas em 1979. Quando a República Popular da China e a República Portuguesa estabeleceram formalmente relações diplomáticas, o estatuto de Macau em termos de Direito Internacional foi finalmente esclarecido. Na altura, os dois países definiram na acta de conversações por meio de acordo confidencial que “Macau é território chinês sob administração portuguesa”, o que veio a ser confirmado na Constituição da República Portuguesa e no Estatuto Orgânico de Macau.

3-Sobre o estabelecimento dos portugueses em Macau as evidências documentais são pouco claras e por vezes revelam-se ambíguas. Não existe qualquer documento da época que comprove como os portugueses se instalaram no território do Sul da China. Resta acrescentar o facto, esse indiscutível, de os portugueses se terem fixado em Macau desde a segunda metade do século XVI e de ali terem permanecido ininterruptamente, com o acordo, ou pelo menos, a tolerância dos chineses. O seu estabelecimento gradual foi pacífico, não ocorrendo qualquer emprego de força, um acto de guerra que determinasse a sua anexação territorial, em contraste com o sucedeu em meados do séc. XIX com Hong-Kong

4- Inspirado pelo flâneur de Charles Baudelaire.

5-Início da década de oitenta do século passado

6-É oportuno recordar que durante o mandato do Governador Almeida e Costa (1981 a 1986) tiveram início os Grandes Empreendimentos, como o fecho da Baía da Praia Grande e os novos aterros do Porto Exterior (NAPE). Foi possível concretizar um entendimento pragmático com a nova liderança da nação chinesa que visava uma maior abertura ao exterior, criando as condições políticas adequadas para o arranque e concretização de alguns projectos importantes para a modernização do território, como a Estação de Televisão – TDM (1984), o porto de águas profundas em Ka Ho, Coloane (1992), o Terminal Marítimo do Porto Exterior (1993), a nova travessia para a Taipa através da Ponte da Amizade (1994) e a construção numa ilha artificial do novo Aeroporto Internacional (1995), tendo esta última obra levado 10 anos a realizar. Com o passar do tempo, a área de Macau aumentou significativamente devido aos sucessivos projectos de aterro, como a faixa de Cotai (Cotai Strip), que cobre o antigo istmo que ligava Taipa a Coloane e é ocupado actualmente pela maioria dos grandes casinos e resorts.

7-Grupo constituído por quatro economias do sudeste asiático, Hong-Kong, Singapura, Coreia do Sul e Taiwan, que registou um vertiginoso crescimento do PIB entre as décadas de 1970 e 1990. Durante esse período, essas quatro economias passaram por uma rápida industrialização, altas taxas de crescimento e melhorias significativas nos padrões de vida. Essa transformação é frequentemente designada por ‘Milagre Asiático’

8-Com destaque para os antigos reinos e territórios do Sião (Tailândia), Pegu (Myanmar), Malaca (Malásia) Goa (Índia), Batávia (Indonésia) e Filipinas, entre outros.

21 Nov 2024

Dos brasões e dos impérios

Coitado do império romano, um império de mil anos, que foi sempre colonizado mentalmente. Dir-se-ia até que foram marionetes, primeiro dos gregos, depois do Cristianismo – ‘tadinhos!

O que nos ensina, este exemplo? Que a História não é linear, não é um mecanismo que conduza ao estipulado pela caução determinista. A História extravia-se irremediavelmente em becos, desperta energias que diferem em relação ao seu eixo e restitui, nos gérmenes das mentalidades que desperta, o que estava na sombra e agora irradia com uma tremenda força de contágio em direcções não previstas.

Daí que, di-lo Benjamin, caiba ao historiador suspender todo e qualquer preconceito se quiser contar a história tal qual ela é, i. é, no engendramento do que bifurca de si mesmo. E adianta na segunda das suas Teses sobre a História: “o cronista que narra profusamente os acontecimentos, sem distinguir grandes e pequenos, leva com isso a verdade de que nada do que alguma vez aconteceu possa ser dado por perdido para a História.”

Pior, em Benjamin, a utopia não é mais pensada como a crença no acontecimento inexorável de um Ideal localizado no termo mítico da história, antes ressurge – através da categoria de Redenção – como “a modalidade do seu acontecimento possível a cada instante de tempo”. E neste resgate acrescenta-se dignidade aos vencidos, que apenas de forma temporária e contingente, se encontram desse lado da barricada.

A História, portanto, reconfigura-se a partir das particularidades, do que nela jazia subterrâneo e marginal ao sistema em vigor. Pelo contrário, a História mostra-nos como tudo tende para o gradual e fosforescente domínio dos vencidos no plano das mentalidades. Para o bem e para o mal. Pelo que, na dúvida, na colisão das narrativas, é sempre melhor negociar cedências mútuas do que “vencer”.
Até na “indústria cultural” é assim: o rap, expressão das periferias foi assimilado, e, convertido em hip-hop, tornou-se dominante, até à náusea.

A Alemanha fascista ergueu-se sobre as ruínas dum tecido social vencido, humilhado e esquecido; a atracção pelo modelo estalinista nos países comunistas mais não foi que a violência maniqueia do ressentimento com que os vencidos trocaram de posições. A Primavera Árabe não foi pervertida, simplesmente acordou o monstro adormecido, que com um atitude sobranceira se havia negligenciado, etc., etc.

Aquilo que o Freud explicava caridosamente quando dava como uma das leis do inconsciente a sua impossibilidade de esquecer, tudo se retém na caixa negra do inconsciente para ser baralhado e voltar à superfície lá mais para diante. Com os povos e a História é o mesmo. Tudo o que se censura volta, o que foi desdenhado e empurrado para a periferia voltará sem remédio.

Acho por isso delirante a polémica em torno de “abafar” ou não os brasões, no Jardim da Praça do Império. O acto de retirar os 32 brasões do Jardim do Império é tão irrelevante para a dignificação da memória das comunidades afro-descendentes como desnecessário. Afinal, o que representam os brasões? Legumes, pequenos arbustos e flores das diferentes e antigas províncias do “Império”. Porquê vedar às crianças a oportunidade de perceberem que as papaias, a pêra abacate, as mangas, a goiaba, que vêem à venda nos hipermercados, são originárias dos países africanos de que inventámos os mapas – para depois lembrar que os “benefícios” do colonialismo geravam a infelicidade dos povos autóctones.

Já retirar os brasões perpetua o erro de recalcar o que supostamente – no novo império do “politicamente correcto” – é vergonhoso. A História faz-se também das suas vergonhas e crimes e não convém ocultá-los.
Só se adquire uma dimensão crítica quando ficam expostas as contradições do sistema e isso possibilita o recuo que nos distancia da carga ideológica de que os seus vários signos eram portadores.

Como escreveu Sena no poema Chartres ou as pazes com a Europa: «Europa, minha terra, aqui te encontro/ e à nossa humanidade assim translúcida/ e tão de pedra nos pilares sombrios.» A “humanidade” nalguma Europa é ainda (apesar de tudo, confirma-o a condenação de Sarkozy) translúcida porque expõe os seus pilares sombrios, não os esconde com um tapume.

Diga-se: a actual cultura ocidental aceita que a sua academia ou artes contrariem ou forjem narrativas paralelas à da sua “história oficial”, num ventilado sistema de correcção conceptual e de fugas, em sendo os argumentos convincentes. Esta liberdade não é global. Onde se oxigenam os ensaístas pós-coloniais, dos diversos quadrantes e raças, e que minam, tantas vezes com acerto e pertinência, a credibililidade das narrativas europeias; em cujo território, apesar de dissonantes, são tratados com respeito, beneficiando até de um mínimo conforto material para poderem zurzir com habilidade e apoio institucional na civilização ocidental? Na Europa (ou nos EUA).

E adianto já: é assim que deve ser. A saúde democrática demanda a presença de antídotos.
Não podemos é aceitar isto por um lado e querermos apagar, como revisionistas, o lado negro da História.
Nas sociedades conservadoras ou autoritárias os liames que cimentam uma sociedade são mais diacrónicos do que sincrónicos: emerge de um desligamento forçado com o presente a força dos símbolos fundadores.

Hoje, na era pós-colonial e da democracia electrónica, diferentes narrativas e tempos históricos digladiam-se e no tecido do quotidiano notamos a presença de vários tipos de presentes, correspondentes a uma heterogenia na composição do(s) passado(s). Neste panorama, o cultivo da memória e o seu debate são cruciais e não devem ser objecto de demagogia.

Como o fará o Chega, que ergueu a bandeira de partido que preserva “todos os símbolos históricos da nação portuguesa”, os quais vai distorcer e idolatrar. É importante que um pai afro-descendente a passear no jardim, possa comentar aos seus filhos, “Era com estes engodos simbólicos que os filhos da puta endrominavam os soldados que iam para a guerra oprimir-nos”, e que eu possa apontar aos meus, “As nações fazem-se numa soma de erros e barbaridades que convém não serem escondidos para podermos estancar a irracionalidade.”

11 Mar 2021

Tentativa inglesa de ocupar Macau

macau-antigo-av-almeida-ribeiro-ii[dropcap style=’circle’]É[/dropcap] pelos documentos chineses, as chapas, trocados entre mandarins chineses e a resposta do Imperador Jiaqing durante a invasão inglesa de Macau em 1808, que Marques Pereira nos apresenta a visão oficial da China sobre os invasores.

No princípio do século XIX, por três vezes a Inglaterra tentou tomar Macau, sempre com o pretexto de vir ajudar os portugueses de uma hipotética invasão dos franceses. Mas, tal como os portugueses se opunham a tal ajuda, também os chineses não viam com bons olhos esse auxílio. A 21 de Setembro de 1808, os ingleses aqui desembarcaram e os mandarins de Guangdong enviaram vários recados contra essa estadia, só entendidos quando os chineses cessaram o comércio com a Companhia Inglesa das Índias Orientais e por isso, para conseguir reatar o comércio em Cantão, os britânicos retiraram de Macau.

A 12 de Outubro de 1808, a chapa dirigida pelo mandarim da Casa Branca ao Vice-Rei de Cantão diz:

Ao presente os ingleses têm vinte e tantos navios, ou mais, bloqueando Manila, que fica distante da ilha do Ladrão quarenta e oito kings (1440 km). Portanto o expediente de cortar os víveres a Macau não é suficiente para obrigar os ingleses a ceder. Os soldados ingleses em terra são muito fracos, nada podem, mas as suas armas de fogo são em verdade terríveis. As suas bombas de ferro, de dez, três e duas mil libras de peso, são inumeráveis. Têm também muitas de bronze, e algumas montadas em carretas de rodas com seus aparelhos completos, e podem cursar até à distância de dez, a vinte lis (5 a 10 km). Além disto trazem eles espingardas, que por si mesmas dão fogo, sem ser necessário aplicar-lhes o morrão. Têm igualmente máquinas de fogo e água, e as suas bombas para acudir a incêndios podem alcançar a cem e a duzentos côvados de distância. Também trouxeram morteiros para arremessar bombas e expugnar cidades. Conduziram mais de trezentas tendas de campanha, que armaram desde S. Paulo até Patane, de sorte que estão resolvidos a não sair de Macau, e têm já segurado todos os lugares, guarnecendo-os com soldados e armas de fogo.

Além do sobredito, também tenho sido informado de como catorze reinos, que os ingleses antecedentemente dominavam, quase todos têm seguido o partido da França, e agora só restam debaixo do seu governo Malaca, Pinão e Tipú. Madrasta e Bengala, que são as duas terras principais escolhidas pelo seu rei para capitães, são comunicáveis por terra. (Archivo da Procuratura.)

Segundo Gonzaga Gomes, a 16 de Outubro, “as autoridades chinesas pediram, com insistência, ao Governo de Macau, que fizesse sair da cidade as tropas inglesas que aqui haviam desembarcado”. Cinco dias depois, “principiaram os distúrbios entre os chineses e os soldados da força inglesa. O Procurador Manuel Pereira oficiou aos mandarins de Hèong-sán e Casa Branca, pedindo providências para a repressão dos chineses. Os mandarins responderam que não eram precisas leis para castigar crimes que não deviam existir no império, que embarcassem os ingleses e tudo ficaria remediado”. Mas só a 23 de Outubro, “o Vice-Rei Chiun-Kuan, em seu nome e das mais autoridades superiores de Cantão, participou ao Imperador o desembarque das tropas inglesas em Macau, dando também conta das providências que tomara, sem resultado, para constranger o almirante Drury a pôr termo a essa ocupação.”

Pedido aos ingleses para abandonar Macau

Segundo refere Marques Pereira, cada dia que passava desde a permanência das tropas ingleses em Macau, cresciam as dificuldades e por isso, os sobrecargas da companhia inglesa (Roberts, Patle, Brameston, Helphinstone e Baring) escreveram em 29 de Outubro ao Governador Bernardo Aleixo de Lemos e Faria, queixando-se que ele não promovia entre os habitantes de Macau a simpatia que era devida ao auxílio britânico, nem expunha às autoridades chinesas os justos motivos da ocupação. No dia 30, respondeu-lhes Bernardo Aleixo: «Entre as difculdades que vos fiz antever, citei a inevitável complicação com os chineses. Tenho conhecimento do sistema do seu governo por longa experiência adquirida na prática; sei os vínculos que os unem a esta cidade e por isso previ o mau resultado da vossa empresa. Falei-vos com franqueza, e fui considerado como desafecto aos vossos projectos. (…) O senado trabalha para que não sejam reputados sinistros os fins da vossa expedição. Se tem havido desconfiança nos mandarins, não é motivada por este governo, pois tem patenteado com franqueza a sua correspondência.»

Os sobrecargas replicaram a 31 de Outubro: «A carta de V. Ex.a encheu de mágoa os nossos corações pelas circunstâncias em que se acham os habitantes de Macau. Tudo nasceu do comportamento do Senado. Se adoptasse o nosso sistema não teria agora de ver essas lástimas. (…) Em verdade dissemos que o almirante removeria todos os obstáculos em Cantão. Assim aconteceria se o governo de Macau se unisse cordialmente com o almirante. Os esforços que V. Ex.a promete empregar em suas representações ao governo chinês são para nós de grande valor. Sabemos que hão-de produzir bom efeito. Estamos persuadidos de que só o governo de Macau pode remover as presentes dificuldades e misérias.»

Retirada inglesa

A chapa de 4 de Dezembro de 1808, enviada pelo Vice-Rei das duas províncias do Guangdong e do Guangxi ao Almirante inglês William Drury e ao primeiro sobrecarga da Companhia Inglesa, refere o despacho do Imperador Jiaqing (1796-1820) que está concebida nos termos seguintes:

«Eu o mandarim Vú, (…) por esta declaro e faço saber a todos que, constando- -me haverem entrado em Macau tropas inglesas, dei parte desse acontecimen- to a sua majestade o imperador, cujo despacho, ou decreto, que ao presente recebi, é do teor que vai ler-se: O sun-tó Vú-chiung-kuang e mandarins de Cantão me deram parte de haverem as tropas inglesas entrado sem permissão em Macau. Esses ingleses, pretextando haverem os franceses invadido e senhoreado o reino de Portugal, seu íntimo aliado, dizem que, receando que os portugueses residentes em Macau sejam atacados pelos franceses e que o seu comércio seja embaraçado, enviaram um chefe conduzindo soldados da sua nação e navios de guerra para os ajudarem a defender-se, e também para protegerem o seu próprio comércio. Nenhuma destas palavras se pode acreditar, pois nunca houve tal costume.

A tal respeito ordeno por tanto que, se os ditos soldados e navios estrangeiros tiverem já ao presente evacuado Macau, esta pendência se haja por nda; mas, se ainda não tiverem saído, logo se expeça ordem ao sun-tó Vú-chiung-kuang e mandarins de Cantão, para que enviem escolhidos mandarins de letras e de armas, que irão como delegados a Macau intimar este decreto, e os mesmos delegados rigorosamente repreendam e castiguem, segundo as leis proibitivas da celestial dinastia, com suma severidade e sem indulgência, para com este exemplo se evitarem semelhantes atentados.

Na ocorrência de inimizade entre os portugueses e franceses, ainda que eles se combatam e matem, como isto acontece fora dos limites do império, não se intromete este nas suas contendas, nem lhes vai perguntar o motivo delas. Como porém nestes anos os estrangeiros de remotas regiões andam em guerras, se os de dois reinos entre si inimigos, combatendo-se e matando-se reciprocamente, chegarem às portas deste império e solicitarem algum adjutório, ou alívio, prestar-lho-ei sem dúvida, conforme a minha costumada piedade, mas sem a menor paixão por nenhuma das partes contendentes.

O império da China, como os demais reinos estrangeiros, todos têm marcados os seus limites de território. Devem lembrar-se de que os navios da China jamais sulcam os mares em distância, desde que foram aos países estrangeiros demarcar os respectivos limites, ao passo que os navios europeus de guerra têm ousado aproximar-se a Macau, desembarcando ai os seus soldados, o que é uma ambição e cegueira extrema.

Em quanto a alegarem que vieram para auxiliar os portugueses de Macau, receando que eles sejam atacados pelos franceses, – porventura ignoram que, habitando esses portugueses o território do império, nunca os franceses se os mesmos franceses tentassem ofender as leis da celestial dinastia, nunca as mesmas leis lho perdoariam? E que não haveria indulgência alguma para com eles, antes, pelo contrário, seriam logo destacados robustos e valorosos soldados para os combater, devastar e matar? – Sabendo-se isto, por que razão se enviaram soldados para virem prestar semelhante auxílio e protecção?

Pelo que respeita ao outro motivo alegado de se achar a costa infestada por piratas, e assim desejarem fazer serviços a este império, – devem saber que a celestial dinastia não carece de tal adjutório…

Que necessidade temos pois do seu pretendido auxilio? É manifesto que a razão da sua vinda é que, tendo visto o comércio que fazem os portugueses residentes em Macau, querem aproveitar a oportunidade que lhes oferecem as suas débeis forças, e pretendem, a título de protecção, apoderar-se de aquele território, – o que é contra as leis da celeste dinastia.

Os embaixadores da Inglaterra têm trazido presentes ao imperador celeste, e sempre se têm portado com todo o respeito e veneração. Desta vez porem os ingleses tem-se comportado nesciamente, infringindo ao mesmo tempo e gravemente as ordenações.

Na verdade excederam os limites da razão. Convém portanto fazer-se-lhes saber que se arrependidos souberem temer e retirarem com a maior brevidade os seus soldados, enviando-os para a sua terra, ainda poderá ser relevada a culpa e admitir-se a continuação do comércio. Porem, se persistirem na demora, sem obediência às leis, não só continuarão a ser-lhes fechadas as escotilhas dos seus navios, mas também se lhes mandará fechar entrada de Macau, privando-os de mantimentos. Enviar-se-ão além disto numerosas tropas para os cercar e prender. Então se arrependerão sem remédio. (…)

Se vós, os chefes dos ditos estrangeiros souberdes temer e vos arrependerdes, mandando sair os soldados, poderei então dar parte ao meu grande imperador, rogando-lhe que, por muito especial graça, vos permita a continuação do vosso comércio. Mas se, pertinazes e obcecados, não mudardes de sentimentos e insistirdes na demora, não me restará então outro expediente mais do que, obedecendo ao imperial decreto, dispor e ajuntar um numeroso exército, com o qual vos mandarei cercar e prender a todos. Obedecei pois prontamente, para não vos arrependerdes depois.»

Marques Pereira refere ter achado esta tradução numa colecção particular de manuscritos, que “hoje me pertence. Ai se diz que a foi entregue em mão própria, neste mesmo dia 4 de Dezembro, em uma das ilhas deste arquipélago, vizinha de Hang-fui, ao primeiro sobrecarga da Companhia, Roberts, pelo governador da cidade de Cantão e por um mandarim militar de graduação superior, os quais todos se reuniram ali para o acto, achando-se presentes os capitães dos navios da Companhia.”

Gonzaga Gomes adita que a 17 de Dezembro o Ouvidor Arriaga conseguiu fazer reembarcar o corpo expedicionário inglês do almirante Drury. Mas segundo Montalto de Jesus: “A 18 de Dezembro o mandarim de Heangshan informou o procurador de que se à meia-noite ainda lá estivessem as tropas inglesas, o exército chinês entraria em Macau, em conformidade com o decreto imperial. O embarque, que estava então a ser feito, completou-se a 19, para alívio e alegria da cidade. Então, o mandarim insistiu na imediata partida do esquadrão. Antes de partir o contra-almirante Drury manifestou o seu reconhecimento a Lemos Faria, cujas declarações, admitia ele agora, eram verdadeiras e justas.”

A 1 de Janeiro de 1809, o Vice-Rei de Cantão fez “saber a todos os europeus que, por desembarcarem soldados ingleses em Macau, jamais se lhes devia permitir comerciar neste império. Contudo, lembrando-nos que o seu rei oferecera tributo ao nosso imperador, relevamos a ofensa que nos fizeram pela sua entrada em Macau. Agora, depois de enviarem os soldados às suas terras, pedem os sobrecargas, arrependidos, perdão com muita humildade, afim de se lhes permitir comerciar neste império. Conhecendo a misericórdia do nosso imperador, cedemos às repetidas súplicas das sobrecargas, deixando que desembarquem as suas mercadorias e possam vende-las nesta cidade. Devem receber esta graça como um benefício extraordinário. Vê-se que as leis chinesas têm enfraquecido com o tempo; mas no futuro haverá mais rigor. De aqui em diante, se algum europeu se atrever a quebrar as leis do império, será expulso para sempre.”

Quarenta anos após este episódio, os ingleses vieram fazer guerra à China, ficando ela conhecida pela I Guerra do Ópio.

4 Dez 2015