Novas dos icebergs (3)

Continuam.
Como este universo mais vasto em que queremos ler passado e futuro e em tudo um espelho. A humildade, que o paradoxo de Fermi-Hart nos deveria colocar em mente. A grandeza dos números e a escala do universo, gera uma imensidão de probabilidades da existência de mais vida no universo, mais inteligente e muito mais antiga, e o confronto, ao mesmo tempo, com a estranha e completa falta de evidências, E coloca a questão da insignificância.

Talvez face à desproporção entre os recursos, a inteligência humana, e a vastidão incomensurável do universo a que queremos adivinhar vida, civilizações e inteligências maiores, e, a sê-lo, inimagináveis à nossa escala e á distância de números transcendentes de milhões de anos até ao alcance da capacidade de vislumbre ou pressentimento, tenhamos simplesmente que as imaginar civilizações mais avançadas, sofisticadas e predatórias, que nos achem demasiado irrelevantes para se darem a ver.

Talvez, pensam os imaginários das ciências, tenham cá estado antes. E, à distância de um tempo, para eles ínfimo em termos civilizacionais e para nós a diferença entre já existirmos ou não. A nós que dificilmente, mesmo ignorando os seres enternecedores que nos cercam, conseguimos imaginar que outros mais antigos, mais ocupados com coisas mais avançadas e maiores, nos ignorem. No seu atingido registo inimaginável, mas seguramente de grande vocação predatória e conquistadora, em que a ética a empatia seriam meros atavismos anedóticos de um passado irreversível. A menos que a evolução as determinasse, como um recurso de sobrevivência. Coisas pouco prováveis em civilizações muito mais sofisticadas do que a nossa mas que são já fáceis de reproduzir por uma inteligência artificial.

Ou talvez planeiem voltar na sua próxima primavera. Daqui a milhões de anos. E seremos no máximo vestígios arqueológicos ou restos fósseis e registos microbiológicos, como os que sonhamos encontrar em Marte, nesta paixão pelas dimensões do tempo que nos ultrapassam ainda mais. E talvez descobrir esses vestígios de vida em Marte, camadas de passado, seja a pior das notícias. A de que estamos a contemplar o futuro por uma nesga da janela que abrimos. Fascinante. Indizível curiosidade mórbida de saber ter havido vida ali, que já não há. Como querer saber o momento da morte. O futuro.

Esse futuro, que não parece augurar nada de bom. Chamam-lhe o grande filtro. Um conjunto de variáveis que um dia vai conjugar-se e nos reserva a desaparição. Da qual não ficará qualquer sentimento póstumo mas simplesmente antecipado.

De qualquer maneira, em termos civilizacionais, já demonstrámos o enorme poder e uma espécie de vontade suicida subliminar, de tornar inviável a sobrevivência, acelerando o desgaste do nosso pequeno paraíso terrestre, à nossa escala de pequenos números na vida do universo. Mas imaginar essa escala como realidade presente, é triste e rouba toda a energia para viver o curto instante de cada uma das nossas pequenas vidas, mesmo na insignificância que esse infinitesimamente curto momento, como os segundos, representa na escala de grandeza do universo. Uma coisa muito jovem a terra na qual estamos encavalitados. Não vamos longe. Mesmo quando vamos a Marte numa espreitadela irresistível. A um futuro possível lá. Uma fuga para a frente, para cima, para um futuro como se sempre o houvesse, ou como uma estratégia de terra queimada.

Queimamos e fugimos para cima. Rumo a Marte.

Esta paixão pelas paisagens inóspitas mas quase familiares, desérticas, agora lunares – semeada a metáfora – de Marte. Como uma página em branco do romance terrestre a projectar-se ali. Sem vida, já, sem cultura ou qualquer estrutura social. Uma espécie de visão total de liberdade na ausência dos outros. Que provém de todas as ausências. A liberdade de pensar o futuro e uma civilização, simplesmente com base na ciência. Do possível ou do impossível. Mas não chego a concluir o paradoxo deste olhar. Pensar, ver, o nosso futuro ou pensar o nosso passado numa perversa antecipação. Um relance num passado abismal e num futuro, o nosso, igualmente vertiginoso. Como uma linha do tempo, esticada e visível até perder de vista.
Mas antes de menos infinito e de mais infinito. Porque mais para aquém ou para além, somente deus. Se há.

O que sabemos é que é ali o maior vulcão do sistema solar, o Monte Olimpo. Afinal era ali a morada.
Somente para nós há este aperto de quase emoção presa na garganta quando a vemos, azul e terra, por momentos dissociados da nossa visão de dentro e imersos na fantasia de a ver de fora à distância inócua como se nela não contornássemos ou enfrentássemos dilemas diários. Mas de Marte a visão é mais distante. Um ponto luminoso no espaço para além. Major Tom, não hesita. Mesmo à distância de contornos reconhecíveis, desligou-se do apelo vão do ground control. Uma utopia que talvez nos atormente – a todos – em certos dias.

Esta experiência do corpo raso na plataforma de gelo. Como uma performance na galeria virtual. A monitorização – the new black – do poder. Opostos, o calor e o frio do gelo. Poderes que teoricamente se afectam mutuamente. Destroem. Dissolvendo fronteiras, em contacto um derrete o outro petrifica. Tendência ao equilíbrio. Imagine-se o corpo, o calor como afecto, deitado contra a superfície gelada, o frio ou a força do inevitável. A força do calor potencialmente a derreter o gelo e a enorme combatividade do gelo a transmitir progressivamente a sua temperatura ao corpo. Que nunca vai perder a forma, mas ganha a rigidez do gelo. E este, pelo contrário, perderia a sua cristalização e seria no final água. Poderia ser imagem da desproporção dos valores humanistas face a outros poderes mais determinantes: a política, a economia a ambição da ciência. Ambos, calor orgânico e frio cristalino, com a possibilidade recíproca de se destruírem. O calor é o afecto como o frio a força do inevitável. Sabe-se à partida que vence neste jogo injusto de forças desproporcionadas: a variável sempre imiscuída do tempo. O que define o poder do mais forte.

Talvez por isso e circundados de abandonos, ansiemos seres de além. Mas separa-nos o tempo em unidades que nos transcendem. Tempo e silêncio.
O Grande silêncio, “silentium universi”. Aquele que nos diz que, se nada de lá ecoa, é talvez um intervalo de paz entre as inúmeras possibilidades. O silêncio da noite do universo. Enquanto durar – dizem – é bom sinal.

Mas será sempre à nossa escala de insignificância e imperfeição, o encontro com o que pode salvar. Para uma geração em que muitos avós não acreditaram que poisámos definitivamente os pés na Lua. Volto a encostar-me, numa lassidão de alheamento, talvez “floating in a most peculiar way”, ao ombro quente da vida. No sofá da sala. Mais meia hora, a esta escala, e há que desligar o forno. Os aromas a inundar a casa são uma sólida realidade, como a da veemência invisível de pegadas no chão. Na telefonia Lulu Monde cor-de-rosa, quase vejo Major Tom “stepping through the door”. O que deixa um sabor melancólico, a imortal paradigma de juventude.

16 Mar 2021