Há os homens

Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 13 Agosto

 

[dropcap]O[/dropcap] mundo não acabou para a Notre Dame de Paris, mas algo se perdeu nas chamas. Assim o mundo rural não acabará, apesar de morrer a cada verão incendiado. Se nas ondas revoltas se naufraga, que palavra espelha o afogamento em mar de chamas? Ardência? Nem todos os finais são abruptos, há formas de ir soltando ser, deixar pele nas silvas, aguentar o amargo do fracasso, o fel da injustiça, a banalidade da desorientação. A Notre Dame não perdeu o seu anjo, aquele que sopra trompa como continuação do corpo, seta disparada ao chão na vez de atirada aos céus, e assim se toca anunciando, a graça ou o fim. Aquando do incêndio do ano passado circularam fotos nas quais com olhar se infantil se vislumbrava anjo de fumo abraçando o pináculo em chamas, figura interpretando o tema derradeiro do instrumento. Blaise Cendrars não desdenharia a potência da imagem, a profecia do gesto. Afinal, já no final de outro século, em 1917 (o século extingiu-se na Grande Guerra e não na folha do calendário) nos dava a ver «O Fim do Mundo Filmado pelo Anjo N(otre) – D(ame)» (edição da Assírio & Alvim, com tradução de Aníbal Fernandes). Os desenhos de Fernand Leger no original fazem paisagem com corpos e letras, palavras, fazendo com elas catedral, cidade, caos. Desfazendo o cima e o baixo, as orientações e os sentidos, brotando em cores básicas do vale das páginas. As letras são estilhaços do fim do mundo. E o Anjo ergue-se sobre o seu sopro, desloca-se empurrado pelo som. Blaise intuiu que o cinema havia acabado de se criar para registar o epílogo, como a revolução foi televisionada e este apocalipse quedo brotou das redes e do santo algoritmo. Mas aquele mundo de antanho havia de ser superprodução com figurantes sem conta e a natureza a recriar-se perante os olhos dos espectadores por haver. No tradicional lugar comum do finamento a vida de cada um passa-lhe em filme, revisão da matéria vivida. Neste do Anjo N.-D. tratou a natureza de se rever em jogo de formas geométricas e orgânicas. «Tudo espirra. Tudo se mistura. Pan. Demónio. O mar oleoso, pesado como asfalto. A terra enegrecida, sangrenta, a liquefazer-se. As ondas transformam-se em montanhas e os continentes afundam-se. Torvelinho.» O crescendo termina quando «o último raio de luz corta o espaço caótico como a barbatana de um tubarão…» Cabe à luz, parceira do verbo nos inícios bíblicos, o papel de ultimar. Um fogo largado à aparelhagem põe o filme a correr às arrecuas. E o Deus-pai de todos os princípios e também deste fim do mundo regressa, capitalista de charuto e automóvel de luxo que havia espoletado tudo com uma grande feira de religiões em Marte. Retrato dos dias nossos nos dai hoje, veja o leitor se não somos de Marte. «A multidão dos Marcianos comprime-se à frente da cavalgada. Vemo-los nas bolas de sabão que lhes servem de habitáculo, como imponderáveis fetos metidos em frascos. Matizam-se como camaleões e adquirem cores, de acordo com os sentimentos que os agitam.» Só que Deus excedeu-se e a feira apresenta-se «demasiado vulgar», uma orgia de anúncios e música em altos berros, o horror dos espectáculos, de certas cenas, dos sacrifícios dos animais, a repugnante exposição dos mártires, a fixidez das máscaras, a crueldade das danças, «todos os meios ferozmente sensuais explorados nesta grande parada das religiões» assustam os marcianos que fervem e explodem empurrando Deus para o deserto onde resolve concretizar as profecias. O homem certo para o «trabalhinho» é o da câmara de filmar, que assim começa a descrever-erguer a cidade-mundo . Aliás, as cidades ajuntam-se frente a Notre Dame de Paris até que o Anjo incha as bochechas. «Tudo o que os homens construiram desaba imediatamente sobre os vivos e soterra-os. Só que ainda tem um resto de vida mecânica resiste mais dois segundos. Vemos comboios andar sem comando, maquinas rodar em vazio, aviões cair como folhas mortas.» Depois o cinema, «acelerado e ao retardador», o da natureza. São frases curtas, lâminas em torvelinho. Descrições exactas, que me fazem hesitar entre Godard e Malick para assistentes de realização. Desnecessários, que o texto revela-se bem, boa companhia neste deserto atravessado a nada. Blaise pariu-o de jacto, «a minha mais bela noite de escrita», sem emenda nem remédio, para nunca se desfazer em luz projectada. Além do brilho próprio, claro. Tinha 30 anos, era editor e estava a fazer contas à vida.

«Hoje, que já não acredito em nada, a vida não me suscita mais horror do que a morte, e vice-versa.
Fiz a pergunta a todos os meus amigos: “Estás pronto a morrer agora mesmo?” Nunca nenhum deles me respondeu. Eu estou pronto; mas também estou pronto a viver mais cem mil anos. Não será a mesma coisa? (…)

Há os homens. Não nos devemos levar muito a sério.»

Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 27 Agosto

Homens há que semeiam no deserto. Dia 8 de Setembro nascerá, ali para Alvalade, novo lugar de cultura, sobretudo fotográfica, com foco e desfoque no fotojornalismo. Francisco Leong, Luís Filipe Catarino, Jérôme Pin e o Bruno [Portela] são as almas penadas que assombrarão o CC11, começando com a exposição «Diário de uma pandemia». Pediram a este escriba que olhasse para dúzia e meia de (façanhudas) capas de jornais e revistas tugas.

«A coreografia revela confrontos, ou melhor, idas e vindas, aproximações e cruzamentos, enfim, dança entre drama e quotidiano, apelos tonitruantes ao épico e a voz baixa do trivial, o dentro e o fora, a vista de longe e o íntimo, heróis e líderes, o tudo na mesma no miolo da excepção.

Torna-se fascinante acompanhar os olhares dos fotógrafos sobre o vazio. Os viadutos, lugar de passagem, canal para o sangue que alimenta a grande máquina em movimento contínuo, tornaram-se traços na paisagem. O homem só em plano próximo repete-se à exaustão. Não apenas como metáfora brilhando sobre a humana condição, mas ligando-o ao acontecimento, essa notável mestria do fotojornalismo. O primeiro plano daquele que passa tem como fundo um santuário das multidões. Que lugar para a fé neste instante? O indivíduo que cruza infindável passeio sob viadutos e prédios altos de cidade futurista leva de sacos de compras, a única razão de saída, e, está bem de se ver, máscara.»

Mouriscas, Abrantes, sábado, 30 Agosto

Alguém passa na estrada e o Cão Tinhoso, depois de coçar com a pata de trás a pulga das obsessões, estica ao máximo a coleira da ignorância e rosna a quem passa, a tudo o que mexe. Baba-se no gesto que lhe parece absoluto e vocacional, ao serviço da mais alta missão moral. Meio cego com a febre da carraça, não distingue a motoreta velha do assaltante ágil, cospe latidos que ecoam pestilentos no quintal a que chama mundo. Há sempre uma alma caridosa que lhe atira restos, não tanto para lhe matar, mas por apreciar o grande circo do patético. Que bem fica a cambalhota da dissonância no deserto!

2 Set 2020

A história está cheia de homens

[dropcap]H[/dropcap]á um aroma de fim do mundo neste 2020. É um ano que parece condensar em si tudo quanto de mau teria de ser distribuído por pelo menos meia dúzia de anos para ser razoavelmente normal. A grande anomalia negativa – uma pandemia de nome manso – tem vindo a fazer sobressair em cada um de nós os aspectos de personalidade que o dia-a-dia normalmente não exige. As circunstâncias excepcionais revelam as pessoas, sobretudo o seu aspecto moral, e a ética é fundamentalmente imprevisível, por mais que à mesa do café se jurem as acções mais nobres.

Há quem ache que, passados três meses de semi-isolamento bem comportado, já chega. A economia está de rastos. A maior parte das pessoas está a ser obrigada a fazer contas à vida e a racionar (ainda mais) as despesas. Há obviamente uma casta de criaturas que passa por isto sem que as suas finanças sejam minimamente beliscadas. São aqueles cuja conchinha protectora lhes permite entrar e sair de casa pela garagem e ver da cidade apenas o que o percurso do costume lhes mostra através do vidro lateral do banco traseiro. Até nisso esta crise tem sido cruelmente reveladora: a maior parte de nós pode perder o pouco que constituiu como barreira para a indigência num espaço de meia dúzia de meses. Ter uma casa e comida na mesa é um trabalho a tempo inteiro. Não há anos sabáticos para o sobrevivente. Não há almoços grátis. O pouco que somos capazes de fazer numa alegria despreocupada surge nos breves intervalos da nossa fixação apreensiva no futuro e no que ele nos reserva.

Embora o Facebook seja território estupidamente fértil para toda a sorte de especialistas poliédricos – num dia as alterações climáticas, no outro a epidemiologia estatística – a verdade é que imediatamente por baixo de uma espuma muito superficial de dados e citações o que se salta à vista é uma ignorância confrangedora.

Uma ignorância como laivos de bully, que se defende da sua própria insegurança atacando em todas as direcções, como um bêbedo socando o ar em seu redor. Uma ignorância que acha os factos desinteressantes e as explicações insuficientes. Uma ignorância que se foca aquém ou além do que está a acontecer e não no que está a acontecer. Uma ignorância que atira para cima da mesa toda a espécie de conspirações descabeladas.

Uma ignorância que por detrás de qualquer acontecimento vê parte de um plano mais vasto de domínio, mentira e controlo. Não chega ser uma pandemia, foi criada. As máscaras não são apenas uma forma de determos a propagação do vírus, são uma forma de controlo. Um medicamento não é só um medicamento, é uma decisão política. E deste espartilho com que se vestem para interpretar o mundo, zangados e tristes, acusam os restantes de medo infundado.

Andámos séculos para conseguir expurgar da natureza Deus e o diabo e os seus inúmeros agentes. Newton ensinou-nos que as maçãs não caem por nos quererem dizer coisas, mas por causa da gravidade. A medicina contemporânea mostrou-nos que o desrespeito às leis de Deus não causa doenças; as bactérias e vírus sim.

Quanto tempo mais será preciso para desparasitar a realidade dos nossos medos subconscientes? Ou dar-se-á o caso de sermos estruturalmente incapazes de viver sem estarmos sempre a tentar encontrar, mesmo que o facto se apresente pornograficamente nu, o lado escondido das coisas?

3 Jul 2020

Violência doméstica | IAS detectou 29 vítimas do sexo masculino

Os homens que são vítimas de violência doméstica em Macau tendem a viver na sombra do medo. Não falam porque não é suposto serem vítimas e muitos temem perder o emprego. O Governo registou 29 casos de violência doméstica que envolvem 11 homens que estão em relacionamentos. Para eles, faltam centros de acolhimento e um diferente tipo de aproximação

[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]anhou coragem quando foi expulso de casa. A mulher agredia-o e a família mandou-o embora. Teve de arranjar coragem para começar tudo do zero: era necessário encontrar uma casa e um novo emprego. O estigma, contudo, era maior do que o medo. “Foi difícil para ele, mas depois conseguiu encontrar um alojamento e um emprego. Ganhou confiança para enfrentar o problema e entrar na sociedade.”

A história, descoberta pela Caritas Macau há cerca de um ano, é contada ao HM por Paul Pun, secretário-geral da instituição. O caso deste homem é apenas um de muitos que acontecem no território e sobre os quais pouco se fala. Dados concedidos ao HM pelo Instituto de Acção Social (IAS) revelam que, no ano passado, o sistema de registo central relativo à violência doméstica contou com 29 casos em que as vítimas são do sexo masculino. Onze desses processos dizem respeito a homens que estão em relacionamentos, enquanto 16 casos são sobre rapazes menores de idade. Não foi registado qualquer caso de violência contra idosos ou homens com incapacidades.

Paul Pun garante que há mais histórias por detectar para além dos números oficiais. “Acredito que há mais casos por descobrir, porque os homens que são vítimas de violência tendem a não falar do que se passa e não procuram ajuda. No passado, as pessoas acreditavam que os homens não eram vítimas de nenhum tipo de violência, mas há vários casos a acontecer. Muitas vezes só podem contar aos profissionais, com os quais têm mais confiança. Muitos perdem o emprego”, apontou o secretário-geral da Caritas.

Tendo em conta a sua experiência a lidar com a comunidade chinesa, Paul Pun fala de casos esporádicos, que raramente entram para as estatísticas. “Temos de fazer um maior trabalho para reduzir os casos de violência, incluindo os casos em que os homens são as vítimas. Não encontrei muitos casos de violência doméstica entre famílias, mas os números avançados pelo Governo podem revelar que há mais situações deste género.”

Melody Lu, docente da Universidade de Macau e membro da Coligação Anti-Violência Doméstica, fala da dificuldade que é lidar com estes casos na prática.

“Sabemos que, em Macau, a violência doméstica é predominante nas mulheres, mas não podemos esquecer que as vítimas também podem ser os filhos e os maridos. Quem esteja numa posição mais fraca na família pode ser a vítima e, neste caso, quando as mulheres são mais fortes em termos de personalidade ou têm melhores salários. Mas isso não está reportado. Os homens sentem mais vergonha do que as mulheres em dizerem que sofrem de violência doméstica.”

Os homens “sentem vergonha, sentem que não deveriam ser eles as vítimas”. “Também estão mais esquecidos porque não é suposto que sejam vítimas de violência física ou mesmo psicológica. É mais difícil ver as evidências”, acrescentou Melody Lu.

Homossexuais na penumbra

Anthony Lam, presidente da Associação Arco-Íris de Macau, mostrou-se surpreendido com o número de vítimas registado no ano passado. “É a primeira vez que oiço falar destes números, porque o IAS não contacta connosco. Basicamente não há qualquer tipo de comunicação. Por um lado, é um fenómeno positivo que a legislação sobre a violência doméstica esteja a funcionar em termos práticos mas, por outro, a comunidade gay está totalmente afastada desta lei e há casos de violência que também necessitam de apoio, tanto da parte da associação, como do Governo.”

Se os homens em relacionamentos heterossexuais vivem na sombra do medo, os homossexuais ainda mais. “Há casos escondidos, mas penso que mesmo que os casais homossexuais reportem os casos de violência junto do IAS, como a lei não os protege, o IAS não irá fazer nada para os ajudar”, referiu Anthony Lam.

O presidente da associação que defende os direitos da comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgénero) continua a defender a inclusão dos casais LGBT na lei, numa altura em que se volta a falar da revisão do diploma da violência doméstica.

“Estamos felizes com o facto de o Governo estar a fazer a sua parte, mas diria que não estamos em contacto próximo com a Administração para monitorizar a situação de perto”, sublinhou. “Se me pergunta como podemos melhorar a legislação, a nossa posição mantém-se igual à de há um ano: queremos que os casais homossexuais sejam abrangidos pela lei da violência doméstica. Os casais homossexuais não estão a ser protegidos pela legislação e não há nada que o IAS possa fazer para os ajudar”, frisou Anthony Lam.

Que medidas?

Paul Pun considera que os casos de violência que envolvem homens e mulheres devem ser tratados da mesma maneira pelas autoridades, mas acredita que “a forma de protecção deve ser diferente”.

“Os homens que são vítimas de violência podem perder o emprego. Se as mulheres disserem que são vítimas de violência, continuam a ser protegidas. Em alguns casos, as mulheres tendem a dizer directamente às pessoas, mas os homens têm de se proteger, há uma diferente perspectiva e sentem-se ainda piores. Deve ser feita uma aproximação diferente ao problema.”

Melody Lu fala da falta de acolhimento para as vítimas de sexo masculino. “Em Macau há poucos casos, não porque não há vítimas, mas porque têm vergonha de contar que o são. Quando o IAS toma conta das ocorrências não há uma divisão, homens e mulheres devem ser tratados da mesma maneira. Mas no que diz respeito ao alojamento só temos dois centros, um deles o Centro do Bom Pastor. Não há um centro para vítimas do sexo masculino”, concluiu.

O IAS divulgou os primeiros dados sobre a violência doméstica, após a implementação da lei, em Outubro do ano passado. Foram recebidas 96 queixas só no primeiro semestre do ano, mais do que os casos denunciados em 2015. Quanto às denúncias, foram feitas 80, sendo que envolveram 82 vítimas. No primeiro semestre as queixas foram 96, afectando 97 vítimas.

À data, a presidente do IAS, Celeste Vong, atribuiu estes números ao facto de a nova lei da violência doméstica ter tornado público este tipo de crime.

Celeste Vong disse que as autoridades esperam que as denúncias continuem a aumentar, na sequência da entrada em vigor da lei, e da elaboração de um guia de resposta à violência doméstica destinado a diversas entidades e instituições. Foi criada, em Novembro de 2015, uma linha de apoio às vítimas.


Juliana Devoy | Número de casos vai aumentar este ano

A directora do Centro do Bom Pastor, que acolhe mulheres vítimas de violência doméstica, garante que os casos de violência sobre os homens são menos comuns do que no feminino. “Todos podem ser vítimas de violência, os idosos também. Estou certa de que há casos de homens que são vítimas de violência, mas os números não se podem comparar. Na sua maioria, os homens são os agressores e as mulheres as vítimas.” Independentemente disso, garante que os casos deverão voltar a aumentar este ano. “Seria necessário fazer uma investigação comparativa todos os anos para saber se há ou não um aumento de casos. Penso que os casos ao longo dos anos têm sofrido uma flutuação, mas não diminuíram, e não me parece que o número de casos vá diminuir este ano. Pelo contrário, penso que vão aumentar. As pessoas vão sentir mais confiança em falar.” Juliana Devoy acredita ser necessária mais formação junto dos agentes da autoridade, para que saibam mais facilmente identificar os casos de violência doméstica. “Espero que haja uma melhor formação dos polícias na identificação dos casos e mais encorajamento junto das vítimas para que possam reportá-los. Esperamos que, em breve, haja uma diminuição da violência doméstica, mas não acho que vá desaparecer para sempre. Na maior parte dos lugares onde a lei foi testada surgiram novos casos de violência, com pessoas que ganharam coragem para denunciar as situações.”

17 Jan 2017