O Mercador de Auschwitz

[dropcap]T[/dropcap]odos assistimos a um recrudescer ficcional do Campo de Extermínio mais doloroso que a mente humana pôde alguma vez conceber, que o Gólgota ao pé dele fora uma colina amena. Em grandes destaques o insólito mantém-se com narrativas e ousadas manobras de “diversão” para os embotados leitores que morrem de fausto fastio numa sociedade onde o capital das contas púbicas e públicas, acentuam a desgraça de leituras improváveis com uma gritante ausência de vergonha. Misturado com isto ainda há muito “ligth” muito Hitler, que agora a sua obra maior e única está por todos os escaparates, disparates, dispositores, editores… Na visão paradisíaca deste amontoado de «super-lixo» logo nos apercebemos das graves estruturas mentais, este anacronismo existe na lógica da usura que frouxamente interpreta riscas, meninos a brincar no dito Campo e pais mártires que tudo fazem para que não vejam onde estão: salta de lá muito improvável, como criancinhas espreitando por arames farpados e meninos bem-dispostos com tão insólitas amizades. Tudo isto à custa do terror, da mágoa calada (as grandes dores assim se manifestam) como se estivéssemos enlouquecidos, ou, pior ainda, incapazes de saber dos limites das coisas. E estamos em directo para o Mundo!

Por vezes dá que pensar onde estamos metidos. Quem é esta gente que vive a nossa contemporaneidade, os nossos concidadãos aqui tão perto, o nível de suporte mental prestativo dos ensinos, as teorias, e a grande questão disto tudo, a usura.- Que mercadores são estes que ao lado Shylock, tão poético… agiota, fino como brasas ardentes, contemplado na obra como a vítima de uma voraz sociedade que catalogando e catolizando, mais não fez que dar corpo a uma ganância grosseira, oprimente e de pacotilha?! O curso da História também se inverte produzindo a obscenidade da mais valia à custa de uma época e de um local que devia não ser mencionado em vão, quanto mais alarvemente usado para fins comerciais! O oportunismo das sociedades “felizes” que viveram ao lado de um povo que teima em desconhecer, ou se o fez, foi apenas para confiscar-lhe os bens que as teorias mais tortuosas impulsionaram para sossego das inconcebíveis barbáries.

O ouro nazi que andou de Banco em Banco por esta Europa fora produzindo tijolos em quilate, foi, por insuficiência mental de muitos nacionais dos países, tido como uma arte mágica de alguns dos seus líderes, e os pobres povos a eles oravam ainda como se fossem Midas. Era uma espécie de edição sobre Auschwitz, mas sem nada para dizer, tudo para arrecadar. Seja como for, este foi um massacre que ainda rende! O mais tenebroso é o inqualificável despudor que nos ficou de uma supremacia qualquer que ousa tratar este tema para fins comercias e não haja ninguém que repare que estamos muito perto do inenarrável.

O sombrio instante de tempo que nos é dado viver, chega-nos também por aqui, que até aqui, fôramos naturalmente silenciados por um mecanismo de respeito e dor que tal acontecimento nos trouxera. Se um povo, cinematograficamente usou e abusou de o mostrar, dar a conhecer, transfigurar, só eles o puderam ter feito com toda a legitimidade, aos outros, impõem-se-lhes reservas. Os becos sombrios de Veneza ainda têm dentro a alma de Shylock que tem guardadas as suas mágoas e rancores, que perdoar é a última coisa a ser feita perante aqueles que pior que nos quererem mal, desdenharam dos nossos poderes e da ajuda que lhes foi dada, e perante assassinos não devemos ter nenhuma vontade de o fazer. A complexidade psíquica é um atributo de Shakespeare nesta sua obra que a suporta nos tons evanescentes de uma poeticidade sem par, e seria muito mau para o usufrutuário não ter a noção da sua falta no meio de um clima de falsos espelhos.

Querem parecer maiores e melhores à custa dos excluídos e dos que foram assassinados.- Pois não o serão!- Este é também um tema de integração e de reposição da justiça, da falsa riqueza insuflada e do ardil dos canibais. É um tema de que não desejei falar, e só a sobreposição alarmante de uma realidade me permite fazê-lo. Seremos ambivalentes no tabuleiro das estratégias, mas deixaremos de o ser quando se nos depara o interdito. -Também não gostaria que se estivesse a ganhar fama e proveito com as cinza dos meus avós, dos meus filhos, dos meus amigos- Que a usura não pode ser tanta que faça de Shylock um aguadeiro ao lado destes embustes por onde passou uma religião que tudo fez para mostrar também o que não tinha.

Para Auschwitz também não irei. Mas quem quiser ser transportado poderá experimentar a “lúdica” equivalência das suas narrativas em tratados de abjecção consentida. Na vertente mais sinistra há ainda a assinalar a voz que entoa, a tendência para negação do Holocausto, o que provavelmente incita em acabá-lo de maneira mais ficcional. E com duas vertentes probabilísticas estas coisas ainda podem indicar o mote àquelas que haverão de resultar em laboriosas tentativas editoriais. Mercadores e mercadoria falhos de perspectiva, pois que em pouco tempo recuámos depressa: mas, como depressa e bem há pouco quem, acontece que as guelras deixadas há muito num mar de antanho começam a manifestar-se. Em Veneza é assim, um Dilúvio a puxa para baixo! E o ar do mundo é o que agora se vê.

Posto isto, desejo boas leituras, que afinal talvez as coisas até nem sejam tão más como as “pintaram” que pintar certas coisas é descrença, e compor outras, um amontoado de lixo para as enciclopédias do esquecimento, talvez dos livros em chamas. Estamos em contramão para o mais improvável Humano. Se dele não ficar nada, ainda assim, a esperança de que venha uma máquina insuflada de alma, e se converta num ser em novas formas. Parece que vem ainda qualquer coisa do espaço a reboque de uma queda prometida, que seja em cima das cabeças humanas e que os faça esquecer tudo, desde a subida a bípede que produziu uma continuada dor de costas. Se nada houver para vender e para transacionar, a alma também já não é passível de ser adquirida pelo Diabo, que cansado disto tudo, foi pregar para freguesias mais sedutoras da Galáxia.

Numa mensagem aos Vindouros acrescentemos que tudo não passou de ficção, e que a realidade, essa, foi como os segredos, não conseguimos contá-la.

17 Nov 2020

Glenn Timmermans, académico: “Holocausto está além da compreensão”

A necessidade de dar contexto à matéria que lecciona levou Glenn Timmermans, professor de literatura inglesa na Universidade de Macau, a dedicar especial atenção ao período do Holocausto nazi. A partir daí, o docente desenvolveu um programa que tenta trazer todos os anos a Macau um sobrevivente de um dos “períodos mais negros da história ocidental.” A próxima convidada é Eva Schloss, que partilhou a infância com Anne Frank e viveu Auschwitz

 

O que o levou a sentir necessidade de ensinar a história do período do Holocausto em Macau?

[dropcap]S[/dropcap]ou professor de literatura inglesa. Estou em Macau desde 2001 a ensinar e uma das disciplinas que lecciono é literatura do séc. XX. Depois de dois ou três anos a ensinar em Macau, e a falar da guerra e de Auschwitz percebi que era impossível entender a história recente se não se souber o que aconteceu durante o período do Holocausto nazi. O Holocausto é a grande crise da civilização ocidental, foi o ponto mais baixo desta civilização. Como é possível entender a literatura ocidental, pelo menos a literatura da segunda metade do séc. XX, se não se souber o que aconteceu no Holocausto? Os meus alunos questionavam muitas vezes o que era isso. Foi quando parei e pensei que não iria avançar na área da literatura até que eles soubessem o que se passou. Um livro como o “Lord of the Flies”, de William Golding, surgiu porque o autor esteve no exército em 1945, altura em que percebeu a depravação da humanidade. Um livro como este tem relação com o fenómeno do Holocausto. Samuel Beckett em “À espera de Godot” mostra como tudo perde o significado. Penso que se trata de uma consciência pós-Holocausto. É uma crise na filosofia ocidental. Temos muito que nos orgulhar no ocidente, a cultura é extraordinária, mas no meio do séc. XX as pessoas mais cultas, as pessoas que ouviam Bach e Beethoven e todos os grandes filósofos, foram as pessoas que cometeram o maior crime da história. Esta situação ultrapassa todas as assunções do que somos, o que conseguimos, qual é o valor da cultura. Há esta ideia de que se souber tocar piano ou violino, de que se se for culto, as pessoas são melhores. Mas Adolf Eichmann, o “arquitecto” do Holocausto era um conceituado violinista. Isso para mim é incompreensível. Foi assim que comecei a introduzir aos poucos o Holocausto nas minhas aulas.

Agora está à frente de um programa totalmente dedicado a esta matéria.

Senti que precisava de ajuda e em 2007 fui a Israel fazer um curso no Yad Vashem, em ensino do Holocausto. Felizmente, com o apoio de Sheldon Adelson, que faz a sua fortuna em Macau e é um grande doador para o Yad Vashem, todos concordaram que uma pequena parte das doações seria destinada a levar académicos chineses a ter formação em Israel. Vou levar o próximo grupo em Setembro. Temos agora centenas de candidatos por ano, e só podemos levar trinta. Depois, em 2012 a universidade tentou americanizar-se e introduziu a Educação Geral, o que foi uma oportunidade. Pediram-me sugestões de ensino para esta área e eu avancei com a proposta de ensinar o holocausto enquanto disciplina independente. Disse que lhe queria chamar “O genocídio do Holocausto e direitos humanos”. Pediram-me para deixar cair a parte dos direitos humanos, mas eu neguei. Ainda continuo a ensinar esta disciplina que se está a tornar muito popular. No próximo semestre vou ter três turmas cada uma com 70 alunos. Os alunos, inicialmente, na sua maioria, sabiam muito pouco sobre este assunto.

Como tem sido a reacção dos estudantes?

Os alunos dizem muitas vezes: se o Hitler matou tantos judeus era porque existia uma boa razão. Respondo dando exemplos dos próprios chineses e da sua diáspora no sudeste asiático. Tal como com os judeus, há comunidades chinesas que têm muito sucesso e que, muitas vezes, são vítimas de preconceito. Sabemos que na Indonésia muitos chineses são mortos, sabemos que actualmente na Malásia, os chineses são muitas vezes mencionados como ameaça potencial. Porque, tal como acontecia com os judeus, há esta ideia de que os chineses conseguem controlar a economia. De facto, quando emigram, e tal como os judeus que estavam na Europa, acabam por ter sucesso económico e isso torna-os alvo de ressentimento.

Acha que esse ressentimento contra judeus contribui para o Holocausto de alguma forma?

De alguma forma sim. O Hitler andava a procura de um bode expiatório e os judeus que em 1933 eram 500 mil na Alemanha, menos de um por cento da população, controlavam muitas áreas. Quando Hitler procurou um bode expiatório aproveitou para dizer, “olhem estes, não são alemães, mas dirigem orquestras, são responsáveis por jornais, gerem negócios”. Encontrou quem culpar. Não faria sentido culpar pelas dificuldades que se viviam as empregadas domésticas, mas sim aqueles com algum sucesso. Claro que o antissemitismo tem uma história de mais de dois mil anos, mas, de facto, com o que se passou no Holocausto, os judeus acabaram por ser o bode expiatório associado ao colapso económico alemão.

Depois de um período tão negro, como se justificam os crescentes movimentos racistas na Europa?

A Angela Merkel, e isto para seu crédito, abriu as fronteiras da Alemanha aos refugiados na sua maioria sírios, mas a outros também. Ela apenas o fez porque existiu um Holocausto e foi uma forma de reafirmar que a Alemanha não pode nunca mais voltar a apoiar este tipo de descriminação. A Alemanha tinha a obrigação moral, mais do que qualquer outro país de abrir as suas fronteiras. Isto, está agora a criar outros problemas com o crescimento dos movimentos de extrema-direita no país que a culpam pelo problema dos refugiados. Na Europa vemos estes movimentos a ganharem força na Hungria, Polónia, etc..

Apesar da Polónia ter sido muito massacrada na 2ª Grande Guerra Mundial…

Sim, e está a tornar-se muito extremista. Tinha andado muito decente nos últimos 20/30 anos e temos também o ódio aos judeus da velha guarda da direita, na Alemanha e na Hungria. Mas estes sentimentos estão também a crescer na França, e agora dirigido aos muçulmanos. Os judeus acabaram por estar identificados com Israel e na Inglaterra existe antissemitismo dentro do partido trabalhista. Temos uma oposição de esquerda que parece ter um problema com o racismo. Israel era querido da esquerda, historicamente, nos 50 e 60, mas agora que Israel está muito identificado com os Estados Unidos da América, e a esquerda odeia os Estados Unidos, os protegidos passaram a ser os palestinianos.

Todos os anos traz a Macau um sobrevivente do Holocausto nazi. Porquê?

Porque o Holocausto é algo que está além da compreensão. Por mais que estude sobre aqueles acontecimentos e aquela época não entendo e duvido que alguma vez venha a entender. Dentro em breve todos os sobreviventes estarão mortos. Por isso, se os estudantes ouvirem a história directamente de um sobrevivente tem mais impacto do que todas as palestras e todas a aulas que tiverem. Basta uma hora com um sobrevivente e conhecer alguém que esteve realmente lá.

Qual o próximo convidado?

A minha convidada em Janeiro é incrível. Tem 90 anos e é a irmã “emprestada” póstuma da Anne Frank. Elas conheceram-se no início da guerra. O nome dela é Eva Schloss. A mãe, o pai e o irmão eram judeus austríacos e fugiram em 1939. O pai encontrou emprego na Holanda e juntaram-se todos em Amsterdão em 1940, antes do início da guerra. Viviam em frente à família Frank. No Holocausto esconderem-se tal como os Franks, mas foram traídos e o pai e irmão acabaram por morrer em Auschwitz. Entretanto, a mãe de Anne Frank também foi morta. Depois da guerra, o pai de Anne Frank conheceu a mãe de Eva Schloss que acabou por ser criada por ele. Estive com ela recentemente, em Londres, e ela aceitou vir a Macau em Janeiro. Quero que este testemunho, além de ser apresentado na universidade, seja também dado a conhecer às escolas de Macau.

Podemos dizer que há um paralelismo, quando se fala de horror, entre o Holocausto e o massacre de Nanjing, na China?

Nanjing é um acontecimento terrível, mas não deve ser confundido com o Holocausto nazi. Há uma tendência, na China, para comparar esses dois acontecimentos. Em parte por causa da própria linguagem. Em chinês a palavra datusha é utilizada para ambos os acontecimentos. São ambos massacres. Mas o Holocausto não foi um massacre, foi um processo que decorreu primeiro entre 1933 e 39 com propaganda e com as leis contra judeus, e que depois se tornou num processo de matança industrial. Não estou a dizer que o massacre de Nanjing não foi horrível. Todas as matanças o são. Mas o massacre de Nanjing foi aquilo a que se chama realmente de massacre. Os japoneses esperavam conquistar Xangai muito mais rapidamente do que fizeram. Pensaram que iriam ter Xangai em poucas semanas e levou-lhes três meses. Muitos japoneses tinham sido mortos, os chineses combateram corajosamente e, por razões que não são muito claras, Tóquio ordenou que se avançasse para Nanjing. Não havia importância militar em Nanjing. Depois de conquistarem Xangai controlavam o delta do rio Yangtze, aliás controlavam a China. Acho que Nanjing foi o lugar escolhido pelos japoneses para humilharem a China. Quando chegaram lá, os soldados japoneses estavam exaustos, zangados e ficaram loucos. De acordo com os números aproximados, terão morrido 300 mil chineses. Foi muita gente. Mas penso que o mais horrível foram as violações. Sabemos que cerca de 20 mil mulheres foram violadas, e não era apenas uma violação, era o seu horror. Mais uma vez, os alemães eram um povo muito sofisticado e levaram para a frente o Holocausto e aqui, os japoneses eram um povo muito refinado e também cometeram as maiores e mais cruéis atrocidades. Temos estas duas culturas intelectuais altamente refinadas e depois vemos que foram as potências que mais horrores causaram e que cometeram crimes indescritíveis.

A história de Nanjing só começou a ser divulgada muito depois do massacre. Porquê?

A China fez um trabalho muito mau na preservação da sua história. Nanjing, ao contrário do Holocausto, foi durante muito tempo silenciado por razões políticas. Os comunistas não estiveram lá, estavam a combater o Kuomintang e não a combater os japoneses. Ou seja, os comunistas não tiveram nenhum papel nesta história de Nanjing. Por duas razões. Por um lado, por não terem estado lá, e por outro porque se não estivessem a lutar contra o Kuomintang e sim com eles, se calhar juntos teriam derrotado os japoneses. Depois, tanto a China como Taiwan, nos anos 50, queriam investimento japonês. Apenas nos anos 80, quando a China começou a ficar mais forte, se começou a reconhecer o massacre de Nanjing. O primeiro museu dedicado aos acontecimentos só foi criado em 1985, 40 anos depois do massacre. Infelizmente, do ponto de vista histórico perderam-se muitos registos, nomeadamente depoimentos de sobreviventes, fundamentais para documentar aquele período.

2 Jul 2019

Desonra e vergonha

[dropcap]D[/dropcap]urante estes dias lembrei-me bastante de Emil Cioran e dos seus escritos. Não se espante o leitor: Cioran é um autor que admiro. Mas a frequência com que os seus aforismos me vinham à cabeça era surpreendente, não tanto pelo seu conteúdo mas mais pelo facto do autor estar em monopólio na minha cabeça – coisa que nunca antes acontecera. E Cioran, logo ele. Um profundo pessimista, alguém que iluminava a vida com os ténues archotes das masmorras. Beckett conhecia bem os territórios escuros em que o romeno vivia; só que deles se aproveitava para fazer troça da nossa pobre condição, num riso de condenado. Ainda assim escreveu-lhe um bilhete a agradecer um livro: «Nas suas ruínas encontro consolo», escreveu o irlandês. Então porquê esta minha obsessão por esse poço fundo e sem regresso mas cheio de uma terrível beleza? E sobretudo este aforismo em particular, que me perseguiu vários dias: “Todos os seres são infelizes; mas quantos o sabem?”.

Até que um dia percebi a origem desta fonte de escuridão repentina. Deixem-me que a apresente desta maneira: várias fotografias. Uma: um rapaz jovem efectua malabarismos com bolas cor de rosa entre aquilo que parecem ser paralelepípedos enormes. A legenda: “What an incredible place!”, seguido de dois emojis entusiásticos. Outra foto: no mesmo local mas desta vez em cima de um desses rectângulos, uma rapariga jovem e bonita reproduz uma difícil posição de yoga enquanto sorri. A legenda: “Yoga is connection with everything around us”. E há mais, muito mais: raparigas que sorriem para a câmara, selfies de gente divertida a fazer o pino ou simplesmente em poses sexys. Todos andarão entre os 20 e os 30 anos. Todas estas fotografias e respectivas atitudes foram tiradas no Memorial do Holocausto, em Berlim, que homenageia e lembra os milhões de judeus assassinados na Europa pelos Nazis durante a Segunda Guerra Mundial.

Perante isto fico estupefacto. Não tenho respostas, provavelmente porque me lembro das palavras de Hannah Arendt que acreditava que perante o Holocausto a única resposta civilizada é o silêncio. Mas há uma náusea profunda que me leva a desprezar estes seres humanos como eu.

Não sei se o que fazem é resultado de uma profunda estupidez, ignorância ou desumanidade. Provavelmente a combinação desses três factores. Sei apenas que é fruto destes dias, onde ser um anónimo que é tornado célebre através de um botão de um ecrã premido por outros anónimos parece ser um objectivo maior de vida.

E o mesmo se passa em Chernobyl: devido ao sucesso da (excelente) série de televisão os “influencers” – assim se chama esta tribo – migram em manada para tirarem fotos alegres e sensuais que contrastam com a profunda tragédia que os cenários evocam.

Por favor, não quero equívocos, percebam-me. Se alguém decidir dançar sobre a minha campa não irei estar muito preocupado e muito menos espero vir a interromper a celebração. Agora isto não. É inaceitável. Se há algo que ainda pode definir a nossa civilização e, de certa forma, o melhor da condição humana, é a capacidade de lembrar e honrar. Esta gente não faz nem um nem outro.

Se estes valores parecem anacrónicos é porque começam a sê-lo. Quem se promove de forma leviana sobre a memória de quem viu a sua vida destruída de forma brutal e trágica é um imbecil, e um imbecil infeliz que apenas ainda não o sabe. E o pior de tudo: somos nós que os estamos a criar.

Tenho vergonha e revolta. Não sendo nostálgico e gostando de viver nestes dias, estou perdido. Não sei o que fazer. Ao meu lado os Beach Boys cantam I Just Wasn’t Made For These Times. Não sei se é isso que sinto porque nunca saberei o tempo em que poderia viver melhor. Mas aquele refrão responde-me, como um eco: “Sometimes I feel so sad. Sometimes I feel so sad”.

19 Jun 2019

Eva Koralnik conta como sobreviveu ao Holocausto

O fim do Holocausto assinala-se no próximo dia 27 de Janeiro. Eva Koralnik esteve ontem na Universidade de Macau para partilhar a sua história que, ao contrário de muitas, teve final feliz. Aos sete anos, altura em que começou o extermínio dos judeus que viviam na Hungria, conseguiu, com a mãe e a irmã recém-nascida, fugir para a Suíça. Com a memória ainda fresca, a sobrevivente conta como, de um dia para o outro, uma vida normal se transformou num pesadelo

[dropcap]C[/dropcap]orpos enchiam as ruas da bela Budapeste”. É assim que Eva Koralnik recorda uma parte da sua infância no momento em que decorria o extermínio de judeus na Hungria, em 1944. Na altura tinha sete anos, mas a memória não lhe falha, até porque “foi um período muito intenso”.

Filha de pai húngaro, Willi Rottenberg, e mãe suíça, Berta Passweg, Eva Koralnik nasceu na capital húngara em 1936. Durante esse período a lei suíça estava repleta de discriminações, uma delas viria a ser determinante para a história da família: uma mulher suíça que casasse com um estrangeiro perdia a nacionalidade. Um detalhe legal que se tornou fundamental quando a mãe de Eva se mudou para Budapeste, para seguir o negócio de família no sector dos têxteis, onde viria a conhecer e casar com um húngaro.

Eva Koralnik foi a primeira filha, nascida num hospital que se tornou uma recordação maldita. “Quando os russos já estavam a libertar Budapeste, os nazis foram ao hospital e mataram toda a gente: enfermeiras, médicos, doentes, bebés”, apontou perante um auditório cheio de estudantes, na Universidade de Macau.

No dia 19 de Março de 1944, o seu pai regressou do trabalho “com uma cara muito triste e disse só três palavras: eles estão aqui!”. Apesar de ter apenas sete anos, Eva Koralnik percebeu que algo terrível estaria a acontecer.

FOTO: DR

O objectivo das tropas era “matar o maior número de judeus, o mais depressa possível”. “A guerra estava quase no fim. Portanto, estavam com pressa”. Um imperativo fatal, a tempos agigantado pelo facto que “os nazis húngaros, por vezes, eram ainda mais cruéis que os alemães”, referiu.

A Hungria, que tinha uma comunidade de cerca de 800 mil judeus, foi o último território a ser ocupado pelas tropas de Hitler. Entre Maio e Julho de 1944, foram executados mais de 450 mil judeus.

Estrelas amarelas

Assim que começou a ocupação foram aprovadas várias leis, “umas atrás das outras”, que limitaram severamente a vida dos judeus. “Primeiro, todos os judeus passaram a usar uma estrela amarela. A minha mãe coseu-me uma no casaco”, recorda. Além disso, “os judeus só podiam sair à rua duas horas por dia, durante a hora de almoço, quando as lojas estavam fechadas, não se podiam sentar em parques de jardim, não podiam usar eléctricos, à excepção da última carruagem”.

A par das restrições reinava o medo. “Sabíamos que todos os camiões que ouvíamos passar levavam pessoas para uma estação ferroviária onde eram enfiadas em vagões com destino a Auschwitz e às câmaras de gás”, recorda.

A palavra “selecção” ainda ecoa na memória de Eva Koralnik nos dias de hoje pelas razões mais funestas. “Quando as pessoas chegavam a Auschwitz, eram seleccionadas para dois destinos: uns iam directamente para as câmaras de gás, em especial mulheres, crianças e idosos e outros, enquanto os homens eram escolhidos para trabalhar”, explicou.

À medida que os aliados se aproximavam de Budapeste, perto do final da guerra, os bombardeamentos tornaram-se um acontecimento diário. “Dormíamos vestidos porque a qualquer momento podiam soar as sirenes para irmos para a cave”, recorda. Nessa altura, já não havia carruagens para levar as pessoas para os campos de concentração e quem fosse encontrado pelos nazis, era atado, baleado e atirado para o Danúbio.

“A minha tia, assim como centenas de outras pessoas, fizeram a chamada marcha da morte. Como já não havia forma de os transportar, estas pessoas andaram durante dias em direcção à Áustria. Quem colapsava era logo baleado”, recordou.

Entretanto, a sua família foi separada quando o pai de Eva foi levado para um campo de trabalhos forçados. “Levaram todos os homens jovens, vestidos com uniforme e braçadeira que os identificava como judeus, para recuperar os caminhos de ferro dos comboios que levavam as pessoas para Auschwitz”, descreveu. Eva recorda ainda as palavras que ouviu mais tarde do pai sobre as mulheres que tentavam dar-lhes os seus bebés na esperança de que fossem salvos.

Rumo à Suíça

Ao mesmo tempo que o genocídio acontecia, centenas de pessoas juntavam-se em frente do consulado suíço, em Budapeste, para tentar arranjar um visto. O perigo da viagem não assustava quem preferia arriscar a travessia da Áustria, liderada pelos alemães, em busca de uma oportunidade de sobrevivência. Era neste consulado que trabalhava Harald Feller, um diplomata mais tarde reconhecido como um dos “justos entre as nações”, distinção dada àqueles, não judeus, que ajudavam as pessoas a fugir ao genocídio. Oskar Schindler e o português Aristides de Sousa Mendes são nomes que também figuram nessa lista.

“O homem do consulado que nos salvou prometeu fazer o seu melhor para negociar com os alemães a passagem segura até à Suíça para a minha mãe e mais três senhoras. Como não sabia se as conseguiria encontrar no dia em que conseguisse o visto, arranjou um esconderijo para as três”. Foi nesse local, situado no centro de Budapeste que esperaram seis semanas e onde a irmã mais nova de Eva acabou por nascer. “A minha mãe tirou a minha estrela amarela e fingimos não ser judeus porque isso poderia custar-nos a vida. O certificado de nascimento da minha irmã até hoje diz Vera Rothenberg, religião protestante. Isso salvou-nos”, recordou.

Os vistos chegaram no dia 2 de Outubro de 1944. Até à Suíça, mãe e filha tinham pela frente 800 quilómetros de terror. “As carruagens vinham cheias de soldados e a minha mãe tinha medo que eu falasse com eles e lhes dissesse que éramos judias. Estava num medo constante, com uma recém-nascida nos braços e sem comida”, apontou.

Percalços pelo caminho

Chegadas a Viena começaram os percalços. “Surgiram quatro agentes da Gestapo, perguntaram se vínhamos de Budapeste e disseram para irmos com eles”. O destino era o Hotel Metropole (sede da Gestapo), que tinha na cave uma autêntica câmara de horrores onde os presos eram torturados e mortos.

No entanto, nessa noite esperava-as um autêntico milagre: 44 mulheres judias passaram a noite nesse hotel e saíram vivas. “Os documentos falsos valeram-nos um tratamento simpático. Lembro-me bem dos agentes da Gestapo, com as suas botas brilhantes e os pastores alemães na trela. Era muito assustador. Deram-nos quartos lindíssimos e alimentação. A minha mãe estava angustiada porque não sabia se a comida estava envenenada. Eu dormi muito bem, adorei o sítio, mas as mulheres não pararam de andar de um lado para o outro cheias de medo”, descreveu Eva.

Na manhã seguinte, seguiram viagem. “Esperávamos chegar à Suíça nessa noite, mas isso não aconteceu. O comboio parou a 10 quilómetros da fronteira”. Mais uma vez, o receio de serem apanhadas e mandadas de volta instalou-se. “Muitas pessoas já ali tinham chegado antes para tentar passar a fronteira, mas acabaram por ser levadas para os campos de concentração”, disse. A noite acabou por ser passada na localidade de Feldkirach, onde contaram com a ajuda do chefe da estação. “O mestre da estação teve tanta pena de nós – devíamos ter uma aparência miserável, cansadas e esfomeadas – que nos trouxe chá e deixou-nos dormir em cima das mesas”. Na manhã seguinte conseguiram, finalmente, passar a fronteira.

O início da vida na Suíça não foi fácil. A família juntou-se à avó. O pai de Eva acabou por sobreviver ao campo de trabalho, e dois anos depois conseguiu regressar à Suíça. “Não nos queriam dar o passaporte. Éramos identificados como apátridas, mas em 1960 conseguimos obter passaporte suíço”, recorda com alegria. Eva estudou e licenciou-se em tradução, curso que lhe abriria a porta para trabalhar num processo judicial histórico que encerrou um dos capítulos mais dramáticos da sua vida.

Palavras com sentido

A palavra holocausto não existia nessa altura, acrescentou Eva Koralnik. “Estávamos apenas a vive-lo, mas não existia um nome”. As palavras conhecidas, além de selecção, eram “câmaras de gás, extermínio e deportação”. O que existia, sublinha, era o medo. “Apenas vivíamos no medo diário e as nossas ocupações era encontrar comida e esconderijo”.

Agora há um nome. Chama-se Holocausto e o seu fim é assinalado no próximo dia 27 de Janeiro. Mas as preocupações com o ressurgimento de movimentos de segregação racial não são exclusivo do passado. Esta Europa que agora se mostra cada vez mais virada para a extrema-direita é uma preocupação para quem passou por um dos lados mais escuros da história do velho continente.

“Enche-me de medo que tenhamos esta tendência de viragem à extrema-direita por toda a Europa”, confessou a sobrevivente. Para Eva, o que se está a passar neste momento “não é uma acção contra os judeus, mas é dirigira a todos os estrangeiros”. “Isto é uma situação assustadora”, rematou referindo-se às conquistas de poder e de popularidade de Le Pen na França, Órban na Hungria, aos movimentos que ganham protagonismo na Polónia e em Itália.

A única forma de fazer frente a esta situação, considera, é estudar história e saber o que a Europa passou de maneira a que não se repita. “Temos que estar muito atentos para que não se volte a repetir o que aconteceu no Holocausto”, sublinhou.

O processo Eichmann

Em 1961, durante o julgamento histórico, em Jerusalém, de Adolf Eichmann, conhecido como um dos “arquitectos” do Holocausto, Eva Koralnik trabalhou como tradutora na sala de imprensa do tribunal. “Foi um trabalho muito duro”, apontou enquanto recordava o momento em que traduzia as palavras do responsável pela deportação de milhões de judeus para campos de concentração. “Eichmann estava numa cela de vidro para que as pessoas não o matassem a tiro, ou tentassem agredi-lo, mas o pior era quando chamavam as testemunhas que tinham escapado dos campos, mas que tinham de ir a tribunal contar o que lhes tinha acontecido”, apontou. Tratavam-se de depoimentos de pessoas que viram os filhos serem assassinados. A determinada altura, o arguido tentou defender-se referindo que nunca havia visto sangue e que, como tal, estava inocente. “Não viu o sangue porque fez tudo a partir da secretária”, apontou Eva Koralnik. Adolf Eichmann foi condenado à morte por enforcamento.

18 Jan 2019

Óbito | Morreu Elie Wiesel, escritor, Nobel da Paz e sobrevivente do Holocausto

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]izia que a indiferença era o “oposto do amor” e um dos maiores “perigos” de sempre, por isso o seu desaparecimento não pode ficar indiferente. Não pode, porque Elie Wiesel era mais do que um escritor. Era um sobrevivente de uma das épocas mais negras da história da humanidade e foi isso, e a sua auto-obrigação de contar a verdade, que o fez ser o escolhido para o Nobel da Paz em 1986.
Era um adolescente de 15 anos quando foi deportado com a família para o campo de concentração nazi de Auschwitz. Foi aqui que ficou sem a mãe e a irmã, mas foi em Buchenwald que perdeu o pai. E foi em Buchenwald que foi apanhado numa das mais famosas imagens do Holocausto: a desse mesmo campo de concentração, onde dezenas de homens esqueléticos posam nus e que foi captada em 1945, aquando da sua libertação e fim da II Guerra Mundial.
Desde que conseguiu escapar às garras da Alemanha nazi que sabia do seu potencial papel de testemunha, mas não escreveu sobre as experiências a que foi sujeito até 1955. Durante dez anos – anos em que estou na universidade em França e ponderou o suicídio – rejeitou relatar o que viu, sentiu e ouviu. O que quer que seja que o tenha impedido de escrever, contudo, não se conseguiu sobrepor à vergonha de ficar calado. E é com “Un di velt hot geshvign (E o Mundo Manteve-se em Silêncio, na tradução para Português) que rejeita o silêncio. Para sempre.

Horrores

É com “Noite”, onde descreve os horrores dos campos de concentração e da mutilação de judeus, que Wiesel se dá a conhecer à humanidade, depois de aos 19 anos começar a escrever como jornalista. A obra, publicada em 1960 em Francês, é uma versão mais curta do manuscrito “Un di velt hot geshvign”. Fazia parte de uma trilogia, onde se incluem ainda “Amanhecer” e “Dia”.
Autor de mais de meia centena de livros, que versaram sobretudo sobre o Holocausto, foi com “Noite” que Elie Wiesel se obrigou a “nunca esquecer” o que passou – ele e milhões de judeus – “nem que vivesse tanto tempo quanto o próprio Deus”. Foi com esta obra que foi denominado pelo mundo como o mensageiro para a humanidade e tido como a consciência que falta no planeta. Mas, se o livro vendeu mais de dez milhões de cópias em todo o mundo e foi traduzido para mais de 30 línguas, nunca chegou ao cinema porque Wiesel não quis. O convite chegou pelas mãos do incrível realizador Orson Welles, mas o Nobel recusou porque “as memórias perderiam o sentido se fossem contadas sem o silêncio entre as suas palavras escritas”. Silêncio que, apesar de presente, Wiesel rejeitou novamente, desta vez ao se tornar activista pela humanidade.

O Nobel e os outros

Wiesel torna-se defensor dos direitos humanos e denuncia o racismo e a violência em todo o mundo, até porque “a acção é o único remédio contra a indiferença” e “tem sempre de se escolher um lado”. O Nobel escolheu o lado dos oprimidos: os que foram vítimas como ele. Os que sofreram com o Apartheid da África do Sul e os que eram vítimas da guerra do Camboja. Os que ainda hoje são alvo de genocídio e fome no continente africano. E os que ainda hoje estão presos por falarem de consciência.
Foi após ter recebido o Nobel da Paz que o activista e escritor criou a Fundação Elie Wiesel para a Humanidade, dedicada a todas estas causas. E foi ele quem ainda recentemente saiu do hospital contra ordens dos médicos, numa cadeira de rodas que largou para discursar numa cerimónia em honra de Armando Valladares, preso político cubano.
Na entrega do Nobel da Paz, que surgiu em conjunto com prémios como o Prémio Medalha da Liberdade, Wiesel voltou a recordar que lembrar o mal servirá de escudo contra o mal. E que relembrar os mortos é algo tão importante como celebrar a vida. Até porque o oposto da vida “é a indiferença perante a morte”.

Morte aos 87

Nascido em Sighet, na actual Roménia, em 1928, Wiesel tornou-se cidadão americano em 1963, depois de se ter mudado para os EUA.  Casa com Marion Erster Rose, austríaca, em 1969, com quem tem um filho.
Dez anos depois, e vários livros e prémios literários por romances e livros não-ficcionais, lança “The Trial of God”, outra das famosas obras de Wiesel que lança polémica ao descrever a história de três judeus que, perto da morte, conduzem uma audiência contra Deus, acusado de ser opressor para com o povo judaico. O mesmo Deus em quem Wiesel dizia não acreditar – apesar de todas as suas crenças, o Nobel auto-intitulava-se como agnóstico.
Publica mais dois livros de memórias – “Todos os rios vão dar ao mar” (que cobria a sua vida até 1969) e “E o mar nunca está cheio” (de 1969 a 1999). Amigo do ex-Presidente francês François Mitterrand, escreve as memórias deste em 1995.
Em Maio de 2014 o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanhayu, propõe o seu nome para suceder a Shimon Peres como Presidente do Estado de Israel, mas Wiesel não tinha nacionalidade israelita para poder ocupar o cargo. Ao longo dos anos, manteve-se ligado à sua Fundação, tal como a tatuagem A7713 se mantém colada à sua pele. Elise Wiesel morreu este sábado, ao fim de 87 anos, em casa e com a família. Resta, agora a sua memória. Mas, no fim, é ela que interessa. “As suas proveniências e magnitude e, claro, as suas consequências”. Positivas ou negativas.

4 Jul 2016