Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA sacrossanta soberania da Síria “For the Foreseeable Future, No Government Will Be Able to Rule All of What Was the Modern State of Syria Assad’s forces, with external support, appear to have stalemated a fragmented rebel movement, but Assad will not be able to restore his authority throughout the country.” “The Dynamics of Syria’s Civil War” – Brian Michael Jenkins [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]inda que nunca tenha sido articulada em termos tão rígidos, um dos objectivos principais dos Tratados de Vestefália, que foram assinados para pôr termo à Guerra dos Trinta Anos, em 1648, tinham como ideia basilar a de “nunca mais vir a acontecer”. Os termos dos tratados procuraram, em última análise, assegurar que o mundo pudesse estar para sempre livre do envolvimento de forças externas em conflitos internos, que tornaram a Guerra dos Trinta Anos tão prolongada e catastrófica. As numerosas intervenções estrangeiras na actual Guerra Civil Síria demonstraram, incluindo mais recentemente, os ataques de mísseis de cruzeiro pelos Estados Unidos, em 6 de Abril de 2017, que esta visão está a tornar-se cada vez mais ruinosa. O mundo tem razão em diluir o poder da soberania desde 1945, no entanto, a presença e o impacto de intervenções estrangeiras repetidas na Síria lembra-nos, a razão pela qual a soberania foi concebida, e devemos quiçá, encontrar rapidamente um seu substituto. A Guerra dos Trinta Anos foi uma das mais sangrentas e destrutivas da história, com cerca de sete milhões e quinhentas mil pessoas mortas, devido às batalhas travadas e doenças, além das atrocidades do governo. É de realçar que sendo um assunto predominantemente interno sobre a política e religião das províncias alemãs no Sacro Império Romano, a crise transformou-se numa guerra pan-europeia, que foi dominada pelas intervenções de potências estrangeiras. Essas intrusões, aconteceram principalmente, como resposta ao aumento e diminuição das fortunas dos vários lados, quando os protestantes pareciam estar à beira da vitória, sofreriam a oposição dos Estados Católicos externos, e quando os católicos prosperassem, seriam rejeitados por poderes Protestantes externos, e como resultado, o conflito arrastou-se em um ciclo aparentemente interminável de violência. A imagem de uma miríade de exércitos estrangeiros marchando de um lado para outro pelo solo alemão, deixando a morte e a carnificina no seu caminho, resumem o conflito. O princípio central que emergiu dos Tratados de Vestefália no fim da guerra, foi a deliberação de que o príncipe de cada Estado, decidia que tipo de Cristianismo devia seguir no seu domínio. O tempo fez evoluir para a moderna soberania estatal como a conhecemos, com a sua crença de que os assuntos internos de um Estado estão exclusivamente sob a jurisdição do seu governo. Mas o fundamento subjacente à criação desse princípio é muitas vezes ignorado. Os Tratados de Vestefália foram redigidos com a determinação de que a horrível saga, que a Alemanha tinha experimentado, nunca mais deveria ocorrer. Tendo em consideração essa ideia, o envolvimento militar de um Estado nos assuntos de outro seria considerado inaceitável, pelo menos parcialmente, para impedir que as potências estrangeiras alargassem as guerras civis, através de intervenções repetidas em nome do lado perdedor. O paralelismo entre as intervenções estrangeiras na Guerra dos Trinta Anos e a presença estrangeira na Síria são bastante claros. A lista completa de incursões externas é muito longa. Durante os primeiros anos do conflito, quando os rebeldes ainda estavam a lutar para encontrar o seu caminho, os seus esforços foram assistidos pelo fornecimento de grandes quantidades de armas e outras ajudas pelo Qatar, Arábia Saudita, Jordânia e de vários outros Estados árabes. O arranjo foi formalizado em 2013, quando a Liga Árabe oficialmente aprovou o fornecimento de armas e financiamento para apoiar os grupos rebeldes. Os Estados Unidos e outros estados ocidentais, também forneceram quantidades limitadas de armas e ajuda não letal. Os esforços foram parcialmente compensados pelo apoio limitado ao regime de Assad, pelo Irão, Rússia e Hezbollah, mas os rebeldes foram, no entanto, suficientemente reforçados para que pudessem estabilizar as suas posições e, mais tarde, pressionar o governo. A situação inverteu-se, no final de 2015, e as perspectivas militares pareciam tão sombrias para o governo sírio, que muitos especialistas previram o seu fim iminente. A Rússia, nesta fase, intercedeu mais fortemente para apoiar o regime de Assad, através do envio de conselheiros militares, desenvolvimento de ataques aéreos e o aumento de fornecimento de armamento e ajuda, permitindo ao governo recuperar gradualmente vantagem sobre os opositores. Quando o governo sírio parece aproximar-se de um ponto em que a vitória pode estar quase ao seu alcance, os Estados Unidos intervieram disparando cinquenta e nove mísseis Tomahawk, e ameaçam com novas acções em um futuro próximo, o que promete trazer de novo, o equilíbrio de poder ao “status quo” anterior, uma vez mais, e mergulhar a guerra em um estado de indecisão e mudança. Os numerosos grupos internos apoiados externamente, continuarão a conflituar agressivamente uns contra os outros, causando ainda mais sofrimento humano, mas sem perspectiva de vitória para qualquer um dos lados. Tais intervenções e o seu impacto, reflectem o mesmo modelo que levou a guerra civil na Alemanha a durar trinta longos e dolorosos anos, e não são só as actividades dos poderes externos na Síria que compartilham paralelismos com a Guerra dos Trinta Anos, mas também as motivações por detrás das suas acções. É de considerar que na Guerra dos Trinta Anos, os poderes externos não intervieram, apenas porque queriam defender os direitos políticos e religiosos de certas facções, mas também porque a guerra civil oferecia uma arena longe das suas terras, onde podiam demonstrar o seu poder na cena internacional, fazer valer as suas ideias estratégicas, e controlar as ambições dos seus rivais. O rei Gustavo II da Suécia, por exemplo, decidiu mergulhar-se no conflito, em parte porque temia que os seus rivais estrangeiros adquirissem demasiado poder se a facção católica na Alemanha saísse vitoriosa. A semelhança com a Síria é notável. A Arábia Saudita, por exemplo, possui genuína repulsa contra a opressão exercida pelo governo sírio contra o seu próprio povo. No entanto, também é motivado a apoiar os rebeldes pela realização estratégica de que o derrube do regime de Assad, seria provavelmente mudar o equilíbrio regional de poder. A Rússia, da mesma forma, em 2015, interveio em parte para lembrar ao mundo o seu grande estatuto de potência, estimular um dos seus poucos aliados e exercer maior influência na região. Mais recentemente, apesar das reivindicações formais de ter atacado o governo sírio como punição pelo uso ilegal e desumano de armas químicas, o governo americano parece ter aderido à guerra por várias outras razões, e que incluem o desejo de mostrar a sua rivalidade com a Rússia à sua população, demonstrar a disponibilidade para usar a força militar como sanção contra os Estados que cometam atrocidades dos direitos humanos, e empregar armas de destruição massiva (uma ameaça não muito subtil contra a Coreia do Norte). É sinal de que os Estados Unidos estão a rejuvenescer a sua posição como poder global, sob a batuta do novo presidente. A Síria, da mesma forma que a situação na Alemanha forneceu um motivo distante para que esses e outros estados estrangeiros se esforçassem por avançar nas suas políticas individuais, prejudicassem as dos seus concorrentes, comunicassem a sua força e resolução a outros Estados, e enviassem mensagens a audiências internas. Através da criação de uma versão inicial da soberania, os redactores da paz vestefaliana aspiravam criar um mundo mais seguro, em que o tipo de tragédia criado pela Guerra dos Trinta Anos poderia ser evitado para sempre. Se nenhuma potência estrangeira tivesse sido autorizada a intervir na guerra civil alemã, a lógica provavelmente demonstraria que o conflito teria permanecido predominantemente local, e teria muito menos mortes e devastação. No entanto, séculos subsequentes demonstraram, quão errada foi esta solução. A norma de não interferência permitiu e até incentivou o mundo a ficar de braços cruzados, enquanto centenas de milhões de pessoas foram mortas pelos regimes fascistas, comunistas e outros ditadores, a fechar os olhos ao horroroso genocídio e às campanhas de extermínio dos governos nazi e japonês na década de 1930, até que forçarem a invasão de outros países, e desviar o olhar para o genocídio levado a cabo no Ruanda. Estes e muitos outros casos, demonstraram as insuficiências inaceitáveis do sistema vestefaliano, e a sua ênfase na não interferência. Simplesmente não podemos e não devemos viver num mundo, em que os tiranos podem cometer atrocidades contra o seu povo livremente, e sem consequências. A resposta global às falhas do sistema vestefaliano, foi diluir a robustez da soberania e começar a cortejar o intervencionismo mais uma vez. Vários tratados internacionais, por exemplo, permitem que os Estados possam interceder nos assuntos de outros Estados, quando crimes internos de suficiente grandeza ou tipo tenham sido cometidos. Na sequência dos fracassos da manutenção da paz da ONU, na década de 1990, a Organização libertou as protecções concedidas aos Estados através da soberania, com a criação da “Responsabilidade de Proteger”, que é uma doutrina que concede um direito e um encargo sobre os Estados de intervir nos assuntos de outros Estados, quando determinados crimes são cometidos. Foi criado também um Tribunal Penal Internacional, que pode julgar suspeitos de violação dos direitos humanos quando o seu Estado de origem é incapaz ou não está disposto a fazê-lo. Dadas as terríveis atrocidades que foram cometidas ao abrigo da soberania e das suas protecções, o regresso ao princípio da sua inviolabilidade tem um sentido considerável. Os Estados não podem ficar de braços cruzados enquanto o genocídio e outros crimes contra a humanidade são cometidos além das suas fronteiras, sendo ao invés, idóneos e obrigados a agir nestes casos, o que é certamente algo de valioso. No entanto, quando olhamos para a Síria, é difícil não ver a mesma mecânica que levou a Guerra dos Trinta Anos a ser tão demorada e prejudicial. A intervenção externa de potências estrangeiras está a prolongar e intensificar a guerra na Síria, assim como as forças externas fizeram na Alemanha, quase quatro séculos atrás. A tentativa de solução para este problema que foi alcançado na Vestefália, levou a um sofrimento ainda maior, ao permitir que os ditadores abusassem dos seus súbditos, e é justo que a soberania não seja mais considerada sacrossanta. No entanto, isso não altera a existência do problema original que levou à sua criação em 1648. Ao adoptar a norma do intervencionismo, as maiores potências do mundo estão a redescobrir a razão pela qual foi banido na Vestefália há tantos anos. A soberania e o intervencionismo não são a resposta certa para o problema. É necessário e urgente encontrar uma melhor solução, ou então o povo sírio ainda pode enfrentar mais vinte e três anos de guerra e miséria.