Carlos Morais José Via do MeioO Gu e o Da E É sobejamente conhecido que os excessos da juventude acarretam, por vezes, consequências trágicas e irreparáveis. Infelizmente, a história fervilha de exemplos que vão do malogrado Ícaro a ídolos recentes do rock’n roll, ancorados em razões que ultrapassam o nosso modesto objectivo. Ora também a famosa Montanha do Sino, na parte norte da Cordilheira do Oeste, assistiu a uma história do género com repercussões na fauna que desde então ali passou a habitar. Em tempos já esquecidos, reinava na Montanha do Sino um deus chamado Zhuyin (Dragão-Tocha), que era suposto ser responsável pela luz e pelo breu, pela chuva e pelo vento. Além dele, nesta montanha abençoada, cabriolava também o seu filho Gu (que significa Tambor), geralmente na companhia de Qinpi, seu amigo de folguedos. Com o tempo, as brincadeiras de rapazes tornavam-se cada vez mais ousadas e distantes da protecção paterna. Os dois mancebos atreviam-se a fazer incursões noutras terras, por vezes distantes da sua montanha natal. E foi precisamente numa dessas temerárias excursões à encosta sul do Monte Kunlun que Gu e Qinpi mataram Baojiang, ele próprio um deus menor. A razão que os levou a cometer este teocídio não é relatada em nenhum documento credível. Provavelmente, nenhuma razão os movia, a não ser demonstrarem a si mesmos o seu poder: coisas de rapazes com problemas de afirmação identitária que, pelos vistos, também ocorrem entre seres divinos. No entanto, apesar da tenríssima idade dos dois meliantes, o crime não ficaria impune. Ao saber da morte de Baojiang, o Imperador do Céu (outras fontes garantem ter sido Huangdi, o Imperador Amarelo) condenou-os à morte e ele próprio os executou sobre um abismo situado nos contrafortes da Montanha do Sino. Sendo seres de origem divina, ao morrerem imediatamente se metamorfosearam em dois animais de singulares características. Gu adoptou a forma de uma ave com corpo de coruja, bico direito, marcas amarelas e cabeça branca que, quando resolve emitir sons, o que lhe sai da garganta é semelhante ao canto do cisne, embora no grasnar do Gu não sejam reconhecidas tendências mórbidas. A tradição afirma que avistar um gu é sinal de que uma grande seca vai afligir aquela região. De notar ainda que, na sua primeira vida, antes de ter ocorrido a referida metamorfose, Gu possuía um corpo de dragão encimado por uma cabeça humana. Já da antiga forma de Qinpi não existe descrição. Sabemos é que, depois de executado, se transformou numa fabulosa ave de rapina, com corpo de águia, salpicado de negro, cabeça branca, garras de tigre e bico encarnado. Dão-lhe o nome de Da E, que significa Grande Falcão. A sua aparição, temperada por assustadores grasnidos, é augúrio da proximidade de uma guerra fratricida. E, nestes preparos, assim andam os dois pela Montanha do Sino: duas aves de rapina, talvez inseparáveis, senhoras dos céus e das encostas escalavradas daqueles montes perdidos na imaginação da China Antiga.