Grada e a linguagem inventada

“To speak…means above all to assume a culture, to support the weight of a civilization.”
— Frantz Fanon

 

[dropcap]D[/dropcap]a Gulbenkian vou para a Graça. De Sophia de Mello Breyner para Grada Kilomba, também ela presente na Gulbenkian, que acaba de adquirir a sua instalação em torno de Eco e Narciso. Não é um mau momento para estar viva. Sou contemporânea de ambas, afinal. Quando descobri a poesia, a única mulher que lia era Sophia, e assim foi durante o que parece ter durado muito tempo.

Tenho tempo e faz frio. Escolho o restaurante indiano de que toda a gente gosta e, assim que me sento, vejo-a passar para atender um telefonema. Chamo suavemente o seu nome, incrédula, digo olá e recebo um sorriso. Escolho água, uma chamuça de frango e o camarão com amendoim (não tivesse eu acabado de voltar de Moçambique). Um casal senta-se e assiste ao meu ritual distraído de repetir vezes sem conta a dose de um saboroso piripiri que, quando muito, me faz cócegas.

Fazem do espaço que sobra na minha mesa e na cadeira em frente à minha, seu. São simpáticos. O empregado traz-me um segundo copo, que não pedi, como se eu fosse partilhar da garrafa de vinho do casal. Respondo a mails, a mensagens, revejo notas. Alguém me faz uma festa no braço e diz: Até já. É ela, de novo, sorriso franco e bonito e as tranças grossas e compridas, o colar tornado pulseira longa, um permanente apontamento amarelo no pulso. É como se já a conhecesse, e certamente que nos reconhecemos.

Uma sala ora em silêncio ora em êxtase e comunhão. Uma sala cheia, com igual ou maior número de pessoas do lado de fora, em lamento. Filas que se vão formando para entrar e comprar o livro.

Para ouvir, mas começamos por ver. Assistimos ao vídeo da performance “Plantation Memories”, agora “Memórias da Plantação – Episódios Quotidianos de Racismo” (Orfeu Negro). A apresentação desta tradução de um livro escrito em inglês e só agora, ao fim de dez anos, traduzido para português, está a cargo da socióloga Cristina Roldão.

A língua portuguesa é uma língua muito colonial e muito patriarcal, e o nosso discurso de que é a língua mais bela, mais doce, idem. A violência de uma língua: quem pode e quem não pode representar a identidade humana. A língua define quem é humano e quem não é. Eu queria viver e trabalhar num espaço que me permitisse ser eu e reinventar uma linguagem que permitisse expressar-me. Eu fui a única estudante negra durante seis anos, mas acho que ninguém mais se apercebeu de que não havia jovens negros na universidade. Depois, fui a única professora negra, e dei aulas em duas universidades ao mesmo tempo, em Berlim, o que seria impossível em Portugal.

Senti que o livro foi a minha primeira linguagem, onde aprendi a escrever como eu sou e reinventar uma língua onde eu posso ser eu. O racismo trabalha com o ilógico, com o irracional, faz uma associação de imagens que, não o sendo, se tornam reais através dela.

Não há comoção no discurso de Grada (psicanalista, filósofa, autora, performer, mulher, negra, não necessariamente por esta ordem, não necessariamente só isto) se não para falar de um dos seus ídolos, Frantz Fanon, ou recordar os seus tempos de sprinter no Sporting, quando residia nas periferias negras de Lisboa, na linha de Sintra.

Quando se dá voz ao público, Solange Salvaterra Pinto fala dos muitos corpos negros na sala, sobretudo femininos, e de outros tantos em Portugal e de como são os que mais se vêem nos primeiros e nos últimos autocarros de cada dia, mas que parecem não existir nesse intervalo, não estão nas ruas mas escondidos, quem sabe nos hotéis e nos restaurantes (assombrados assim por vivos, penso); no fundo, se já não do autocarro, ainda dos lugares da frente da sociedade. E recordo-me de uma outra Solange (Knowles) e do seu tema “Weary”: I’m going look for my body yeah / I’ll be back real soon. Os corpos podem existir enquanto invisíveis, começa por responder Kilomba, portuguesa com origens em São Tomé e Príncipe e Angola, a esta observação retórica, que termina com um pedido de resposta ao problema da invisibilidade e da distribuição de papéis, que a mesma admite não saber resolver. Volto por momentos à Gulbenkian e ao Colóquio Internacional sobre Sophia. No primeiro dia, o escritor moçambicano Amosse Mucavele foi o único negro. Hoje sou eu, penso. Volto a Sophia e aos seus versos evocativos de transparência e de luz, de cor.

Eles (o público maioritariamente branco e da meia-idade para a frente) nunca viram tantos corpos negros a ocuparem a Gulbenkian, a narrarem, a definirem a sua própria narrativa, a serem os sujeitos e não os objectos da sua própria história. Esse é o meu papel enquanto artista, é criar o momento em que o activismo, a arte e a literatura começam a transformar a sociedade. Se passámos da negação da negação (Sartre), teremos chegado à segregação da segregação? Das muitas manifestações, eventos literários, seminários a que vou, este terá sido o momento de maior presença negra. Silêncio e riso, anuir de cabeça, alívio. Não há espaço branco nem caixa negra e sim um novo lugar, reinventado, elástico, móvel, seguro. A DJ Yen Sung abre a pista com outro tema marcante de Knowles, “Don’t touch my hair”, mas é ainda “Weary” que ouço: Be leery bout your place in the world / You’re feeling like you’re chasing the world / You’re leaving not a trace in the world / But you’re facing the world / I’m going look for my glory yeah / I’ll be back real soon. (…) But you know that a king is only a man / With flesh and bones he bleeds just like you do / He said “where does that leave you” / And do you belong? I do I do.

Grada parece ter escapado à maldição de Eco, não tivesse sido ela a primeira e a última a falar esta noite. O livro sai em Junho no Brasil. Livro, mulheres e noite incrível. E a presença que importa, a daqueles para e sobre quem este livro foi escrito. Agora é ler, reflectir e continuar o nosso trabalho, que é como quem diz, a nossa vida na sua forma mais inteira.

23 Mai 2019