Luís Carmelo Artes, Letras e IdeiasAs duas águas: Orwell vs. Rorty Na última parte do livro Contingência, Ironia e Solidariedade de Richard Rorty (1989), num subcapítulo sobre Orwell, há uma interessante passagem em que a relação entre os degraus da história e a literatura é estabelecida. Ora leia-se: “Orwell foi bem sucedido porque escreveu precisamente os livros certos no momento certo. A sua descrição de uma contingência histórica particular foi, assim se verificou, precisamente aquilo que era necessário para representar uma diferença para o futuro da política liberal. Quebrou o poder daquilo a que Nabokov gostava de chamar “propaganda bolchevique” sobre a mente dos intelectuais liberais em Inglaterra e na América. Com isso colocou-nos 20 anos adiante dos nossos correligionários franceses.”. Em primeiro lugar, clarifique-se o facto de a palavra “liberal” ser aqui empregue na acepção de democracia, ou melhor, de “democracia liberal”, tal como a entendemos hoje. Em segundo lugar, Rorty quis significar por “degraus da história” esta visão subliminarmente axial que entende poder “estar-se adiante” ou “atrás” na compreensão de algo (como se a história tivesse um ‘plot’ que caminharia para uma redenção, fosse ela qual fosse). Em terceiro lugar, entendendo profundamente a razão de Rorty, quero crer que a alegoria de Orwell analisada tem um cariz trans-histórico que suplanta a época de enunciação e as suas mais imediatas referências. Richard Rorty refere-se, claro está, a Animal Farm (1945) e aos primeiros dois terços de 1984 (obra publicada em 1949 e cujo primeiro título foi sintomaticamente The Last Man in Europe), já que o último terço do romance, depois de Winston e Júlia irem para o apartamento de O’Brien, torna-se – tal como o autor enfatiza e bem – num livro sobre O’Brien, deixando de se constituir como alegoria exclusiva da tentação totalitária do século XX. Seja como for, o que se nota desta disposição crítica de Orwell é que o foco crítico acaba, ele mesmo, por depender, em grande parte, da época em que o juízo se explicita. Repare-se: as duas primeiras partes de Contingência, Ironia e Solidariedade foram escritas nos anos de 1986 e 1987 (na sua origem foram “Lectures”), tendo a última parte, onde surge a análise de Orwell, sido redigida posteriormente (mas seguramente antes de 1989, data da publicação da obra). O que nos aponta para uma redacção que terá tido lugar no final da década das grandes modificações, no centro e na iminência do xeque-mate mais importante do século passado: a queda do muro de Berlim e a emergência da nova era tecnológica, permeável ao fim dos dogmas e ao esvair da “História” como caminhada inelutável e de tectos inevitavelmente progressivos. É apenas nesta postura de quem ‘pára’ e ‘olha para trás’, conseguindo definir uma esquadria de compreensão dos contracampos do século XX, que é possível entender a análise de Rorty. É, realmente, através de um dado sentido de finalidade – que historicamente se estava a esgotar no momento em que Rorty escreveu –, que os pontos de partida alegóricos de Orwell (do pós-guerra e do quase pré-guerra fria) podem ser descritos como foram em Contingência, Ironia e Solidariedade. O que significa que os “degraus da história” não passam de marcos volúveis, criados pragmaticamente em cada interpretação que se faz do tempo passado, enquanto aquilo que faz a (grande) literatura ser literatura vive justamente do contrário, isto é: da perenidade (por vezes tão transparente quanto ilegível) que acaba – ainda que tal seja uma ilusão deliciosa – por resistir ao tempo. Por outras palavras: um presente que já foi (o de Orwell) só pode agir sobre o actual (o de Rorty), se receber deste, retrospectivamente, a sua própria eficácia manipuladora. Foi o que aconteceu. É deste modo que o livro de Rorty faz coexistir dois presentes bastante afastados, ainda que dependentes do jogo reflexivo que o texto leva a cabo. No caso da literatura, a coexistência entre muitos presentes pode acontecer como água que se mistura com a própria água sem a necessária dependência de correspondências forçadas (ao jeito das tradições de Joaquim de Flore, de Vico ou de Hegel, por exemplo), tal como aconteceu com Proust que juntou o antigo presente de Combray ao presente que na leitura se torna gradativamente ‘actual’, criando assim o jogo de espelhos que desencadeia e anima toda a irradiação narrativa.
Manuel de Almeida VozesSímbolos da nostalgia “(…) onde estão as boas pessoas quando acontecem coisas más? Quando acontecem coisas más, as boas pessoas ou estão caladas ou então a agir mal” George Orwell (1903 – 1950) [dropcap]A[/dropcap] geometria do vazio traz consigo escolhas de vida, gestos variados, sentidos diversos – um mundo de passagem. São ciclos de vida. “Envelhecendo eu revelo o meu carácter não a minha morte”, até porque, e segundo Max Weber (1864 – 1920), “os homens já não morrem saciados da vida, mas simplesmente cansados”. As sociedades modernas quebraram, fruto do tédio, do privilégio e da agonia intelectual. Não alimentamos os sentimentos. Não se cresceu com o que se aprendeu. É triste. O medo faz parte da estratégia – “este não é tempo para a indiferença” -, o medo paralisa o Homem, a Humanidade. George Orwell usa esta sugestiva frase: “O importante não é manter-nos vivos, é manter-nos humanos”. Paramos, bloqueamos. O medo é uma infecção contagiosa. O medo ajuda a impôr as ditaduras. O que nos dizem e como nos dizem, o que existe e como existe, o que fazemos e como fazemos, está certo? Não podemos cristalizar o desejo, a escolha, a opinião. Temos de pensar de mente aberta e criativa. Temos de descobrir algo de novo e pungente a cada dia. Acabar com estes caminhos obscuros de fragmentos de ignorância. Não há presente sem futuro – “um futuro que se constrói igual ao passado, não é futuro e por isso não tem futuro” -, só que a raiz dos males futuros está a ser plantada (?) nos erros que se cometem no presente. Percebem? Somos de hábitos sem grandes vícios. Existimos. Franquear fronteiras? À fé? À fantasia? Ao pecado? À caridade? À fraternidade? Há uma peça belíssima de Alves Redol (1911 – 1969), justamente apelidada de “Fronteiras Fechadas”, editada postumamente, em 1972. Relembro aqui o autor de “Barranco de Cegos”, após anos de ausência, não só pelo Homem, um dos grandes entre os maiores do Neorrealismo, mas sobretudo pelo seu carácter, já que, ao longo da sua obra, sempre tentou ser “um operário das letras ao serviço de uma obra artística colectiva”. Temas quentes nessa peça do autor de “Gaibéus”: a coragem de quem passa fronteiras clandestinamente à procura de uma vida melhor e/ou a fuga da opressão – cinco mulheres – a condição feminina; as ideologias; a cláusura; o enriquecimento ilícito dos traficantes; a avareza. Apesar dos anos, “Fronteiras Fechadas” mantém uma grande actualidade, também porque os grandes temas de Alves Redol foram, são e serão sempre, aos olhares atentos, temas do presente. As suas grandes questões são políticas, económicas, sociais e culturais – faltou-lhe a questão da saúde. No passado dia 10 de Junho, nas “Comemorações do Dia de Portugal e das Comunidades Portuguesas”, o Cardeal José Tolentino de Mendonça deixou uma mensagem em que alertava para os perigos do modelo de sociedades que se estão a construir, palavras que merecem uma reflexão. E passo a citar “O desafio da integração é imenso porque se trata de ajudar a construir raízes e essas não se improvisam: são lentas, requerem tempo, políticas apropriadas e uma participação do conjunto da sociedade” e, acrescentava, “Sem compaixão e fraternidade fortalecem-se apenas os muros e aliena-se a possibilidade de lançar raízes. A comunidade não se reforça esquecendo as periferias, mas fazendo delas motor da sua própria coesão”. É preciso que a identidade germine e o orgulho de pertença cresça, para que todos nós – sem excepção de credos e etnias -, possamos participar no bem comum da cidade. Razão que persiste e se perpetua. Ao espanto ou desencanto? Ao desencontro ou ao encontro? Para quando a confissão dos pecadores e/ou perdão dos hereges? Onde estão os “sacerdotes” da ordem e do poder? Por onde se passeiam os perdedores do culto das palavras, vãs e inúteis? Não esperem um novo ciclo de “Concertos da Vida”. A época foi adiada. A incompetência não é negociável, até lá, as ideias continuarão a ser uma forma de contaminação e intimidade. Até quando? Estamos a viver uma fase crítica. Recuamos no tempo. Vivemos numa época subordinada aos três movimentos de Newton (1643 – 1727), que são as leis de base da mecânica clássica: aceleração, reacção e inércia. Haja saúde! “O Mundo é o que é, os humanos que não são nada, que se permitem não ser nada, não têm lugar neste mundo.” V.S. Naipul (1932 – 2018)
João Luz VozesFicção real [dropcap]N[/dropcap]uma escala reduzida, estamos a viver nas páginas de uma obra literária viva, com pulso e personagens reais submersos em mundos equiparáveis aos de Huxley, Orwell, Atwood e das narrativas distópicas mais plausíveis de ficção científica. A humanidade há muito que não partilha a mesma angústia globalmente, um calvário cuja natureza talvez só equiparável de uma forma muito restrita e local a Chernobyl. Vivemos guerras que abalaram o planeta, com ondas de choque a chegar a todos os cantos da Terra, genocídios em toda a parte do globo e ao longo de toda a nossa história. Passámos de raspão pela ameaça de aniquilação nuclear, treva mortífera à distância de um botão. Vimos abismos em abundância desde a ascensão da espécie da insignificância ao topo da cadeia alimentar. Genocídio, barbárie e ódio assassino estão na natureza de todos os humanos. Mas isto soa diferente, há aqui novidade pintada a tons de surrealismo. No meio do natural entrincheiramento dos poderes para preservar a subsistência em tempos de crise, este recolhimento total é algo que nos une, a auto-reclusão traz um sentido de partilha remoto. Mas no meio deste episódio de “Black Mirror” não vejo medo nas pessoas, pelo menos em Macau. Com maior ou menor estoicismo, os que chegam a Macau são isolados em quartos de hotel, como se a vida se materializasse em blue-ray ou streaming. Nos próximos capítulos, ou séries futuras, não me parece desfasado que o recolhimento e a inevitável reflexão tragam conclusões sobre a forma como vivemos. Isto pode ser um reset nos modos como as sociedades estão estruturadas actualmente, com uma actualização que beneficia o retorno ao essencial em detrimento do supérfluo, a solidariedade e empatia em vez de avareza e egotismo, o poder da união face ao antagonismo. Neste momento, largas centenas de pessoas são semeadas por largas centenas de quartos de hotel, com 14 dias de solidão e separação do mundo pela frente. Não avisto qualquer fetiche governativo a delirar com cárceres hoteleiros e a magicar experiências sociológicas que procuram o cúmulo do room service. O mundo, que nunca antes havia estado tão aberto e conectado, recolhe-se individualmente em prol de todos. Cada pessoa é uma cidade, um país, uma ilha, encerrada entre quarto paredes, com níveis diferentes de intensidade de clausura. À porta dos hotéis menos óbvios de Macau, familiares e amigos formam filas para levar amor aos seus enclausurados. Há sempre alguém que conhecemos nesta situação. Também eu levei bens a uma pessoa querida. À entrada do hotel/mosteiro/prisão de hospital, fomos conduzidos para lá do cordão de segurança em grupos de cinco para depositamos os sacos numa mesa. Cumprimos a nossa parte. O resto é uma encenação entre a normalidade e um cenário de filme. Os sacos são colocados nos típicos carrinhos de bagagem dos hotéis. A carga de coisas e afectos é depois passada a uma pessoa completamente coberta por um fato cirúrgico, com uma máscara que abarca a cabeça toda, que conduz as coisas para dentro da fortaleza hoteleira. Os sacos são colocados à porta do respectivo quarto e a pessoa desaparece antes que o enclausurado abra a porta. Tudo isto é matéria extraída do universo da fantasia, do sonho, da realidade para a efabulação. Concordo em parte com os que acham que um acontecimento desta dimensão e natureza pode mudar a forma como as sociedades funcionam. Concordo porque acho que a experiência do Covid-19 se vai repetir no futuro, e a chapada de realidade que todo o mundo está a levar é um prenúncio do que está para vir. Porém, solidariedade momentânea em momentos de aflição ou de terrível aborrecimento não tem a bruta e letal força argumentativa do capital. Facto trágico ao qual se aliam os lobos solitários, agentes de dissonância alimentados pela ideia de que só eles entendem o que se está a passar. Eles é que sabem, são os únicos de olhos abertos. Não me entendam mal, é natural e saudável suspeitar de todos os governos e esferas de poder, mas os limites da resistência param no umbigo. A liberdade precisa de protecção constante. Mesmo quando falamos da fronteira final do nosso derradeiro arbítrio, da soberania exclusiva que temos sobre o nosso corpo. Se a medicina diz que estamos a arriscar a vida se continuarmos a entupir a cara com bacon, cigarros, whisky e açúcar, especialmente depois de um problema de saúde, temos a liberdade para fazer o que acharmos melhor, de não seguir conselhos e acarretarmos as consequências das nossas decisões. A diferença é que jamais iremos contaminar alguém com o nosso AVC ou ataque cardíaco. Já agir irresponsavelmente com esta doença, que é do mundo, pode significar graves problemas para outros. A facilidade de contágio e a perigosa camuflagem da ausência de sintomas, transforma este bicho numa coisa diferente. Quer se reconheça, ou não, vivemos tempos históricos e potencialmente transformadores, saídos da dimensão ficcional e sem um último capítulo à vista.