O uso ilimitado da força (III)

“In politics stupidity is not a handicap” – Napoleon Bonaparte

O “Mal da América”, também nosso, está todo aqui. Se não nos respeitarmos a nós próprios, não podemos exigir respeito aos outros. Fim da dissuasão. Para melhor compreender o que estamos a perder, um salto ao Ocidente primitivo, filho da Revolução Francesa. Quando a dramatização da história era ainda o alfa e o ómega da política e da pedagogia. “Vous êtes un homme!”. É assim que Napoleão Bonaparte, imperador dos franceses, recebe Johann Wolfgang von Goethe, talvez o maior génio literário de todos os tempos. “És um homem!” é a homenagem do novo Augusto ao Virgílio por quem está à espera de ser cantado. São 10 horas da manhã de domingo, 2 de Outubro de 1808. Estamos na sala de audiências do palácio barroco da tenência de Erfurt, uma cidade média da Turíngia, anteriormente pertencente à Prússia e recentemente incorporada pela França. O cenário é uma sala com 8,90 metros de comprimento, 6,45 metros de largura e 3,2 metros de altura. Os dois protagonistas são quase da mesma altura. Napoleão, 1,69 metros, Goethe, dois ou três centímetros mais alto. O primeiro, em sóbrio traje imperial-militar. O poeta com peruca empoada, elegante casaco bordado, calças até ao joelho, meias de seda, espada embainhada na anca, sapatos brilhantes com fivela. Napoleão fica surpreendido. Esperava um ser desleixado e desajeitado, de acordo com o seu estereótipo dos artistas alemães.

Toma o pequeno-almoço servido por um camareiro polaco gordo, partilhado com o seu braço direito sulfuroso, o duque Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, que consumava a sua traição naqueles dias, e alguns marechais. Antes de regressar à sala de audiências, um olhar sobre o contexto. Napoleão convidou o jovem czar Alexandre I a deslocar-se a Erfurt para o convencer a santificar a eterna aliança destinada a derrotar a Áustria e a Inglaterra, a que se seguiria a divisão do continente entre os dois imperadores. De 27 de Setembro a 14 de Outubro de 1808, uma testemunha ilustre, o poeta iluminista Christoph Martin Wieland, observou que “quatro reis germânicos, com um círculo de príncipes alemães reinantes e não reinantes, mais um número incalculável de carrascos e magnatas alemães, franceses e russos, giravam à sua volta para pôr fim, se possível, às velhas rixas de uma vez por todas”. O príncipe da Prússia e o enviado dos Habsburgos não faltam, misturados com uma dúzia de marechais napoleónicos recém-dotados de títulos de nobreza, mais cerca de cinquenta e sete mil soldados seleccionados para impressionar.

Uma encenação grandiosa. O rigoroso protocolo imperial, das audiências matinais do pequeno-almoço ao meio-dia, das festas de caça ao jantar na vizinha Weimar, é seguido de espectáculos teatrais representados pelas estrelas do “Théâtre français” com cenários originais vindos de Paris. Entre elas, destaca-se o célebre Talma, o Napoleão do palco adorado pelo verdadeiro Napoleão. A meia-luz das velas convida os espectadores a estudarem-se. Goethe aproveita para espiar as feições e os tiques do imperador, que também se vangloria de ter estado presente em Valmy, vitoriosa canhonada francesa que derrotou os exércitos contra-revolucionários a 20 de Setembro de 1792 e marcou a transição das guerras de rendas para os exércitos do povo bem como em Jena, a 14 de Outubro de 1806, onde arriscou a pele. O calendário dramatúrgico é fixado pelo próprio imperador, que não perde um espetáculo com Corneille, Racine e Voltaire sempre ao lado do czar. As regras são estritas, destinadas a solenizar a convenção. Um rufar de tambores assinala a chegada de um monarca, para os imperadores torna-se triplo. Quando os tambores dedicam por engano três sequências ao rei de Württemberg, o comandante fulmina dizendo “Calem-se, ele não passa de um rei!” O imperador está ocupado a convencer Alexandre do pacto entre os governantes do Oriente e do Ocidente.

O seu magnetismo parece intacto. Quase toda a gente que se cruza com ele pela primeira vez cai num desmaio, raramente por complacência. Mas, nos bastidores, acontece-lhe perder a calma. Dá-se ao luxo de ser grosseiro, sinal de que as más notícias vindas de Espanha, onde os franceses derrubaram os Bourbons mas continuam atolados na guerra de contra-guerrilha, lhe abalaram os nervos. A facilidade com que Napoleão rasga os tratados e impõe os seus parentes nos tronos das terras que conquistou, abala a sua reputação e a confiança dos restantes soberanos. De que serve estar de acordo com o imperador dos franceses? E depois Napoleão sofre as conspirações de Talleyrand, que na sombra desfaz o que tece com Alexandre, já tão obstinado como uma mula. Não se consegue obter mais do que vagos entendimentos. Fórmula privada de Talleyrand em conversas semi-clandestinas com o czar que afirma que “O povo francês é civilizado, o seu líder não; o líder das Rússias é civilizado, não o seu povo. Por isso, o czar deve aliar-se ao povo francês”.

O conselheiro camaleónico dos dois imperadores está convencido de que as verdadeiras fronteiras da França se situam entre os Pirinéus, os Alpes e o Reno. E o resto? Loucura de Napoleão que, num dos seus discursos, o apelidou de “excremento em meias de seda”. Estamos de novo na sala onde Napoleão recebe Goethe. O primeiro encontro entre o ainda jovem soldado corso, no auge da sua glória, e o sábio de mil talentos, aqui como conselheiro secreto do Duque de Weimar, permanece impregnado de uma aura misteriosa. Escassas notas escritas por Goethe em 1819 sob a forma de um esboço, bem como testemunhos enigmáticos recolhidos junto de amigos e confidentes, sugerem a metáfora da relação entre a história e a sua realização teatral. Para um duplo excesso de génio, Napoleão é demasiado reduzido para a fama do estratega militar, aquele que, reescrevendo a ordem do mundo, se preocupa em monumentalizar-se; Goethe, célebre ao ponto de as gazetas de metade da Europa difundirem imediatamente a notícia da sua audiência com Bonaparte, preocupa-se com o reconhecimento do imperador, não certamente com a urgência de lhe coser uma narração laudatória. O poder é domínio de produzir a representação de si próprio. Neste caso, o poder e o seu eventual cantor são tão excepcionais que não se podem complementar.

10 Jul 2024

O peso do braço

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] frequente ouvirmos louvores acerca do trabalho e dos méritos de quem sobe a pulso na vida com pouco mais do que o suor do rosto. Nem o Cristiano Ronaldo escapa às loas que se tecem sobre o esforço e as suas recompensas. Como o português de César Monteiro, Cristiano Ronaldo não nasceu Cristiano Ronaldo, tornou-se Cristiano Ronaldo. E isso fá-lo ainda mais extraordinário. Melhor que o Messi.

Este louvor do trabalho e do sucesso que lhe corresponde ou deve corresponder é uma das pedras basilares da sociedade capitalista. Sem ele e sem a promessa de mobilidade social que lhe está associada, seria difícil manter um sistema de cariz democrático a funcionar sem sobressaltos de maior. As pessoas continuam a ir a jogo porque existe – nem que seja apenas em teoria – a possibilidade de lhes sair a sorte grande. Mas para tal, e para começar, têm de se esforçar. Arduamente.

Nos primeiros anos da longa carreira contributiva a que estamos votados, não nos poupamos a esforços. Entusiasmados com a ilusão do caminho glorioso que se abre à nossa frente, cumprimos diligentemente aquilo que é esperado de nós e mais, muito mais. O credo diz que o esforço há-de ser recompensado.

Reparamos nalgumas inconsistências a que damos pouca importância: um tipo que entra para um lugar para o qual não tem currículo adequado ou suficiente, mas que mostra ter uma relação inesperadamente afável com aquele director de departamento que não passa cartucho a ninguém; um aumento concedido àquele sujeito cuja única característica de monta é dizer que sim entusiasticamente a qualquer ideia, por mais trôpega que seja, que os seus superiores atirem para a mesa.

Com o tempo, vamos percebendo as minudências pelas quais se rege o jogo empresarial, todo ele muito menos limpo e transparente do que o publicitado. As inconsistências deixam de ser excepções à regra e passam a ser, elas próprias, as normas sub-reptícias que regem o jogo. A competência, o profissionalismo e, sobretudo, o trabalho árduo, ou não são suficientes para assegurar a progressão de carreira antecipada ou são mesmo obstáculos a que tal aconteça. Enquanto isso, vicejam os bajuladores, os atrevidos e, muito especialmente, os chicos-espertos. Damos conta, muitas vezes assaz tarde, de estarmos a viver num mundo ao contrário, um mundo que se descreve a si próprio como um paradigma de justiça e equidade mas que, na verdade, se vive exactamente ao contrário, e damos por nós a pensar em como é que este mundo se aguenta e se tem aguentado durante tanto tempo, como é que não só se parece aguentar, com um crescimento económico apenas interrompido por correcções de mercado ou pela inevitável ganância financeira a fazer os seus estragos, como parece florescer malgrado o substrato malsão de que é composto. E damos conta, inevitavelmente, de que esta coisa da meritocracia é uma espécie de Disney – com os seus príncipes e as suas princesas – para adultos. Nesse momento, a juventude e a energia ficaram pelo caminho. E é com isso que o sistema conta: com a nossa ilusão e o nosso vigor de jovens e com a nossa resignação e placidez de velhos. É assim que a máquina funciona e continua a funcionar.

Li algures que numa daquelas conferências sobre o futuro da economia mundial e acerca da inteligência artificial e das suas consequências um dos assistentes, um empresário de renome com fábricas um pouco por todo o mundo, interrompeu o orador quando este discursava, empolgado, sobre um futuro livre do baraço do trabalho, um futuro em que cada um estivesse livre de labutar a vida toda a troco de umas migalhas de pão: “e que farão as pessoas sem os seus empregos?”, perguntou, indignado. “Outras coisas”, respondeu o orador, “tudo o que quiserem e que nunca puderam fazer”. “Isso nunca vai acontecer”, contrapôs o empresário. Não, por eles isso nunca vai acontecer.

9 Jul 2018