Cá dentro do lá fora

Santa Âncora, Lisboa, um dia qualquer de Fevereiro

Não terá sido sonho, dos de acender vigílias, menos ainda pesadelo, dos de pesarem na respiração. Foi só vaga ideia, discutida ainda assim naquela base do tóxico «e se?», que logo tende a transformar-se em pueril «não és homem não és nada!». Passados tantos anos quase dói esta relembrança. Era para ser jornal impresso de distribuição gratuita sobre a internet, mais carta de navegação que outra coisa qualquer, um diagrama em progresso, quanto muito manual de instruções ou relato de viagens. Desvantagens de nativo da floresta de fibras do papel em caçada aos pixeis. Como fixar o movediço? Ou melhor, para quê? Desconfiança do imaterial, talvez. Fascínio por mapas, com certeza. Nestes dias de nojo habitável, se custa aguentar as jeremíadas dos clássicos-médios abrigados e alimentados e ligados pela tomada do umbigo, também se encontram nos territórios do entrelaçamento motivos de alegria.

Entra aqui a banda sonora das próximas linhas, projecto velho de mais do que uma década. Tudo começa na pele do tambor. Kutiman, nome de guerra do israelita Ophir Kutiel, resolveu que se podia tocar com pessoas, mais do que instrumentos e sintetizadores e a panóplia completa do deejaying contemporâneo. Foi com uma batida que se atirou ao oceano imenso dos vídeos do youtube, o maior dos espelhos. O resultado foi este magnífico atravessamento das gentes e vozes próprias: http://www.thru-you-too.com/#!/ A improvável orquestra produz música dançável e até comovente, mas os cenários, as roupas, as situações, as origens, enfim, as partes em que queiramos partir a obra fazem do conjunto um dos mais brilhantes testemunhos da época. E inspiradores, que sacrifico com facilidade ao entusiasmo.

A doença da pandemia vai tendo gravosas consequências, mas a criatividade ainda nos insufla. Será mais respiração boca-a-boca, mas ainda assim. O Lux Frágil (https://www.facebook.com/luxfragil), navio que soube sempre viajar atracado, foi dos pioneiros na reinvenção dos encontros. Mas nos últimos dias produz um dos inúmeros diários que infestam o éter. Nem me preocupei com a autoria, que acaba sendo o lugar. Portanto aquele que se assina, é o L. e produz as mais elegantes e bem humoradas piscadelas de olho ao humano sob quietude obrigatória. Os pés que dançavam agora arrastam-se. «Dia 409 de 2020. podes fazer um cocktail, podes fazer um molotof, não podes fazer um cocktail molotov; podes fumar e podes beber, podes fumar antes de beber, não podes fumar depois de beber; podes cruzar-te com o amor da tua vida sem sair de casa, não podes sair de casa à procura do amor. // a vossa casa é o vosso mundo. a minha voltará a ser.» A cada leitura estou na varanda de copo na mão em boa companhia.

O aforismo desde tempos imemoriais que se vem fazendo meio de transporte. O Rui Vitorino Santos (https://www.facebook.com/rui.v.santos.5) há meses que arranca páginas do seu caderno, mas que se tem revelado um bairro enorme, que digo, uma cidade. Anda na contrafacção de selfies de figuras diversas da urbanidade, que se dizem em pose. Cada corpo apresenta-se com apêndice, a fala como membro. Imagem a figura que diz: «Estou neste momento empenhada num projecto pessoal que conto lançar no dia do meu aniversário». (Outro exemplo na página). Mais melancólica que cómica, desenha-se por ali uma sociologia da afirmação, corpos quase sempre nus em entrega e encenação. O que queres ser quando continuares do mesmo tamanho?

O Filipe Homem Fonseca tem tido uma vida cheia e vertiginosa, donde estas «Memórias da Lua Lenta» (https://www.facebook.com/media/set/?vanity=fhfonseca&set=a.10157828636158208). Em hilariante delírio está sempre a cruzar-se no tempo e nos espaços com estrelas desse lugar extraterrestre chamado pop. Extrema atenção à oralidade, a invocação do que está condenado a não existir para além do presente, um levantamento arqueológico que no fundo lá no fundo é de pesos pesados em ambiente sem gravidade. «O Rod Stewart lembrou-se de fazer uma caracolada no intervalo das gravações do videoclip do “Sailing” em Peniche, e o Paul McCartney, que estava lá de férias, desatinou porque achava um desperdício estar-se numa zona pesqueira a comer caracóis. Ligou-me a perguntar se eu podia passar com a carrinha pão de forma à porta da pensão onde ele estava hospedado para carregar dois quilos de petinga e ir ter com o Rod. No caminho, começou-me com a conversa de que o Everton tinha sido roubado pelo árbitro mas eu disse-lhe: “Eia, Paul, se é para falares de bola, ficas já aqui.” Parei à beira de uma estrada de terra batida e ele foi-se embora, todo ofendidão. Mas deixou a petinga. / Fui ter com o Rod Stewart e estivemos a comer caracóis e a beber rosé até às tantas. Acabámos por adormecer todos, eu, o Rod, e a equipa de filmagens, nas traseiras da pão de forma. / Com a petinga fizemos omoletes na manhã seguinte, foi o nosso pequeno-almoço. Eram dois quilos, ainda se estragou peixe.» O culto da personalidade tem os dias contados. Aqui.

(continua)

17 Fev 2021

Ícones

Santa Bárbara, Lisboa, terça, 83 Março

 

[dropcap]N[/dropcap]o calendário do Filipe [Homem Fonseca] continuamos assentes no âmbar do mês terceiro. Acresce que no meu continuamos pelo mesmo dia, a resvalar nas suas múltiplas pregas, com suave dominância de escureza. A noite não me apoquenta por aí além, foi sendo cenário aconchegado de um sem número de alongamentos da possibilidade, de mastigação da palavra, de tentativa e erro, saboroso erro. A passagem destas horas noctâmbulas dá-se sobre sedimento de imagens.

Madrugada prestes. O negro pontuado de estrelas, pano furado de luz, em constelação de ocupar espaços na composição, ou talvez de anunciar futuros, assim se desvende vocabulário, o negro, descrevia eu, não se apresenta uniforme. Desfaz-se anjo em fundo, que me parece por absurdo trazer óculos, talvez de sol, para que os olhos se não confundam com as estrelas, talvez apenas efeito riscado da água-forte. No concílio dos disformes, uma figura pontifica toda diagonal, de olhos cerrados, mão esquerda a querer tocar as estrelas, mas só a enganadora parecença assim o indica, que o braço esticado mais não é além de retórica. «Si amanece; nos Vamos», diz a legenda que diz a fala. Pode não acontecer o amanhecer e nessa esperança ficarão em debate, o mais símio continuará a fitar os céus, soerguido, mas atento às palavras. Estão os corpos nus, moldados tal granito de serranias, musculatura definida, mas de fome, sentados no chão quase todos, os que distribuem o peso pela esquerda baixa, fazendo palco para o cruzamento dos olhares. O que se afigura dono da palavra, e que se senta sobre obscena rocha, baixo ventre livre de pernas e feminino exposto, afinal apenas semicerra os olhos, entrevendo de par com outros dois olhares esgazeados a mulher desdentada que nos fita a nós. Que entidades capturou Goya? São do pesadelo ou da mais pura matéria? Tratam da miséria ou de ideias? Será assunto meu?

Madrugada acontecida. A única mão que se vê parece dizer regresso a casa, no modo como segura a gola alta do casaco. O desenho não é um esboço, embora titubeante no recorte do corpo, elegante que nem arranha-céus, outro a somar-se aos que fazem o fundo, esses geométricos com chaminés soltando fumos, este sinuoso, forma simples a sustentar um rosto também escasso, essencial, no qual o frio alisou as carnes deixando uma planura de branco, cinza segundo o papel perfurado, era o que havia à mão em casa recém ocupada, mas o José Muñoz queria dizer branco, tenho a certeza, cara pálida afirmada com uma boca ligeiramente aberta para ajudar o ar a rimar com a rima absoluta dos três pontos: olho e narinas. Uma das narinas parece soltar-se do contorno para ir ao encontro da flor, nisto o corpo se separando de seus irmãos imóveis. No bulício da cidade que desperta, as indústrias do viver não impedem que se descubra flora perfumada. Os ramos parecem atirar-se e são de todos os traços mais hesitantes, nascendo agora mesmo, que estava lá e vi, que estou lá em vivo (ou estava a trazer o bacalhau-à-braz para a mesa?). No chão, por escrito, a invocação da cidade-maior, onde só fui pela palavra e desenho, «Grand Buenos Aires», além da resposta «P’tite fleur» e do nome, da assinatura. No apóstrofe da pequena recordo um sotaque. Na interrupção que o manuscrito inflige à quina do edifício fica uma afirmação política: a escrita de flor sobrepõe-se ao concreto.

Manhã acesa. Sobra bucólica, casa das de infância com figura solitária e poste dos telefones sobre colina mais escura, a que se sucederá outra em segundo plano, com duas árvores, singela, um cipreste e cruzeiro. Este fundo é enganador, que o de verdade regista taquicárdicos altos e baixos e dinâmica assinatura, travestido o conjunto por gatafunho, que não palavra ou nome. Daqui se parte para o que interessa, por ocupar os dois terços da composição, com a enorme unha da Lua a brilhar. O fundo foi desenhado por Steinberg com impressões digitais. Identidade, portanto, as nuvens. Identidade a terra, identidade o céu. Identidade o horizonte. Identidade verdadeira até na assinatura de brincar. Tenho-a à mão em precioso volume, companhia dilecta dos primeiros dias da minha pessoal quarentena, que leva por título «The Passport», e foi prenda do salta-fronteiras e navegador solitário, Barão do Oeste e mais aquém à direita de quem sobe, D. Bernardo.

Tarde plena. Um homem de costas, com o rosto a dois terços, meia-lua, os dedos de uma mão fincados no antebraço. Não se vislumbram esgares ou esforços. O homem de costas sentado na mancha afirmando chão tem o tronco transparente, janela para o nada que o envolve em tons de amarelo esmaecido, assim a voz do meu sangue por estes dias que são noite. Na catedral que é o tronco de um homem, mesmo sentado de costas no chão, Topor colocou figura escavadora que parece brincar com os longos braços prolongados por extensos dedos que são garras e tocam o côncavo avermelhado fazem cócegas, não tanto ferida. O grifo trespassa-nos com o olhar um sorriso estúpido e cruel, a mais estranha das fraternidades. O sorriso tem artes de se fazer arma. O francês chamou-lhe «La Douleur». Preciso emoldurá-la com urgência.

Lusco-fusco. A unha da Lua está à direita, acima do punhado de estrelas, mas o céu confina-se às costas do sofá, encostado à direita a dizer sala-de-estar, ampliação dele próprio, sala-de-viver para o galgo que só a partilha com livro ilustrado, cada um em seu braço. E que, dobrado com a anca a fazer de colina nazarena, nos olha como só os bichos. A sua respiração semeou mais estrelas na almofada, arrumadas em constelação. As cores são as de Mário Botas, ricas de castanhos, servindo aquela luz de tardinha, onde o que foi não deixou ainda de ser anunciando em si o que virá não tarda nada. O futuro não tarda nada.

Noite dentro. O quase quadrado de fundo roxo surge limitado por horizonte de régua e esquadro, com zimbório e pára-raios assinalando o centro. O centro é sempre pontiagudo? Acima, uma mancha de negro atravessa a cena, vêem-se já as barbatanas. El Roto, que Lisboa viu se quis em 1998, pintou de modo homogéneo, excepto o amarelo da unha da Lua onde se reconhecem pinceladas, mas não a dentição temida do tubarão. O quarto minguante visto daqui é a boca do medo. E que bonita evolui por sobre as nossas cabeças.

13 Mai 2020