Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasRoda livre [dropcap]S[/dropcap]e há coisa que invejo em criatura alheia é o jeito para tocar um instrumento ou jogar à bola. Eu sempre fui péssimo em tudo quanto implica destreza corporal. É uma espécie de versão caricatural do locked-in syndrome: sou capaz de pensar numa série de escalas no braço da guitarra ou em fintas que poderia fazer mas o meu corpo, ao invés de coadjuvar, conferindo realidade ao que existia somente em potência, não acompanha de todo o que se passa no andar de cima. O cérebro, qual capitão experimentado, exaspera na condução daquele pelotão de recrutas ciclicamente atrapalhando-se a si mesmos. A única coisa vagamente física em que alguma vez fui bom foram os flippers, e mesmo que tivesse idade e determinação para prosseguir uma carreira de jogador profissional, não estou a ver comité olímpico a incluir a modalidade nas olimpíadas num futuro próximo – ou menos muito distante, na verdade. Como quase tudo, de fora parece relativamente simples: um sujeito coloca a guitarra no colo e traduz fisicamente uma interioridade onde sensibilidade e técnica se encontram de modo mais ou menos perfeito. Eu tive aulas de guitarra. Tive aulas de karaté. De ninjútsu. De basquete. O meu sobrinho mais velho tentou ensinar-me a jogar setas. A maior parte das pessoas que vejo embrenhadas numa actividade física qualquer parecem de lá retirar, no mínimo, a moderada satisfação que decorre da produção de endorfinas. Eu começo a correr e passado escassos minutos os órgãos do meu corpo duplicaram misteriosamente de peso, tenho sede, calor, vontade de fazer xixi, frio, dores um pouco por todo o lado e um medo terrível de morrer de calções. Podia ser disléxico de pés e mãos mas robusto como um pónei. Mas não. Nada disso. Tudo quanto é essencial para a prática do desporto eu tenho-o em negativo. O mesmo acontece na música, com uma agravante: tenho bom ouvido, pelo que sou extremamente sensível a minha própria incapacidade técnica. Podia ser um daqueles concorrentes dos programas de talentos, harmonicamente surdos, cujos progenitores incensam as qualidades musicais sob o verniz resistente do estoicismo parental, mas nem essa abençoada ignorância me foi concedida. Não é que uma pessoa tenha de ser boa ou razoável em tudo, mas parece-me meio injusto, pelo menos do ponto de vista da distribuição divina ou genética de competências, que um sujeito não o seja em nada. Quando comecei a andar de bicicleta usavam-se aquelas rodinhas de apoio lateral. Os meus amigos, mais expeditos fisicamente do que eu, faziam gala de andarem somente com duas rodas. Eu tentava acompanhá-los nas deambulações que faziam pela cidade mas raramente conseguia percorrer duzentos metros sem os perder de vista. O que as rodinhas de apoio acrescentam ao equilíbrio retiram à capacidade de acelerar. O meu pai insistia que eu estava preparado. Eu tinha a certeza de que ia ficar sem dentes da frente se lhe pedisse para remover as rodas de apoio. Achando-me mais do que capaz e frustrado com o meu aparentemente incompreensível medo, o meu pai desapertou as porcas que sustinham as rodas quase até ao fim. Assim, quando fui andar de bicicleta, uma delas caiu passado pouco tempo e a outra logo a seguir. Sem me dar conta, estava a andar sem rodinhas. O meu pai, do passeio, aplaudia. Não me tendo apercebido ainda do que estava a fazer, achei que ele estava a gozar comigo. Fui ter com ele e perguntei-lhe pela piada da coisa. Ele ria-se. Deu-me os parabéns. Foi a minha maior proeza desportiva. Em tudo mais não tenho encontrado as rodinhas para as desatarraxar.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDina Pedro da Dinamite Team [dropcap]Q[/dropcap]uem sobe a um ringue, tem as maiores expectativas, a da vitória. Um ringue é um laboratório vivo da vida. Quando um dos meus sobe ao ringue, eu só penso na sua vitória, por ele, pela minha Mestra, pela sua família e seus amigos. Quando alguém sobe a um ringue para combater só tem um pensamento na sua cabeça, a vitória. Se eu pudesse, fazia que só os meus ganhassem, mas há o combatente do outro canto, também tem a sua disciplina, a sua treinadora, a sua família e os seus amigos. Se eu pudesse, só os meus ganhariam. Não se pode entender mal o que eu digo. Não aposto por dinheiro. Aposto o que os meus apostam. A vida toda. A vida toda não é a preparação para um combate. Tenho assistido a meses que se estendem por anos. Quando vemos um combatente treinar, só podemos acreditar nele, na sua técnica, na sua dieta, no seu sono, no seu treino. Nem nos passa pela cabeça que são corajosos. Parece que não sofrem nem com o treino, nem com a dieta. Muito menos, parece que sofrem com a dor física. E a dor física é de toda a espécie. Não é só a aceleração, não é só as horas sem descansarem bem até regressarem ao treino. É a dor que é tão aguda que só a adrelina a sufoca. Não é que não haja dor ao sofrer um golpe. Até pode parecer que se sofre, mas é mais a consciência de se ter perdido. Não há dor. Há outra coisa. A compreensão de que o corpo apagou. E se não apagou, a mente já não vai buscar nada ao corpo. Podemos achar, quem vê de fora, que há violência. Violência há com armas e haveria se um fosse treinado e o outro combatente não. Temos dois combatentes que não lutam um contra o outro, mas um com o outro. Se tudo tiver sido como mandam as regras, treinaram. Estão um para o outro. Mas eu tenho os meus e os outros terão os deles. Eu pensava que os meus não perdiam. Mas como não? Todos nós perdemos algures, em algum tempo na vida, com quem merecemos perder e com quem não merecemos perder. No knock down vai-se abaixo. Há contagens. O combatente ergue-se. O que achamos nós que lhe passa pela cabeça? Não é perda. Quer-se erguer, quer ficar de pé, mostrar as luvas ao árbitro, mostrar que está apto a continuar. E quer continuar. Não, não pensa na dor, não pensa na família, não pensa na treinadora, não pensa em si. Sim: pensa em tudo, em todas as pessoas que o levaram ao ringue. Alguém no canto diz-lhe para respirar, para fazer a contagem: um, dois, três, quatro, cinco, seis, aos sete tenta levantar-se e levanta-se. Podemos pensar que fica ali, queremos que fique ali, porque somos a mãe ou o pai ou a namorada ou o namorado. Mas a nossa treinadora diz coisas incompreensíveis para o público e para o outro canto. Diz qualquer coisa simples como: respira, levanta a guarda, bate com a perna esquerda no lado de dentro da direita, fica com a guarda alta. O segundo round ecoa. Depois das miúdas anunciarem outro round. Ninguém vê como são belas. Não há sexo dentro de um ringue. Há a disputa da vitória. Há a liberdade para se disputar a vitória. Há a competência que quer a vitória, porque se é livre. O que se quer é a liberdade. Ninguém consegue perceber um combatente se não compreender que quer ser livre. A vitória é a liberdade. A dor não existe. Existe depois, se calhar. Mas os combatentes querem a vitória porque decidiram ser livres. Pode ser um sonho de infância, mas nunca é um sonho negativo. Nunca ninguém ganha por raiva. Só se ganha por… amor. Um combate é um acto de amor. E tu vais ao tapete. É a segunda contagem. E levantas-te. Um, dois, três, quatro, cinco, seis… E lembras-te do que te disse a tua treinadora. Levanta-te com tempo. Toma o teu tempo. E lá está outra vez o teu oponente. Pode parecer maior do que tu, mas tu não queres que nada acabe. Não tens tempo, agora, para que o combate acabe, queres que continue a eternidade, porque tu sabes que tens a técnica, a coragem. E vais de novo ao tapete. O árbitro dá-te a terceira contagem. Não foste ao tapete de qualquer maneira. Do outro lado, comemoram a vitória. E tu bates palmas ao teu oponente. A vida é celebrada. Lembras-te de todas as vezes que venceste. Sobretudo, uma vez mais, lembras-te do que pensaste quando perdeste da última vez. “Segunda, quando tiver lambido as feridas do meu corpo e, sobretudo, as da minha alma, regresso aos treinos.” E os treinos são no local sagrado, onde vais voltar a perder peso, fazer dieta, treinar. E a tua treinadora diz-te: “acredito absolutamente em ti, querida, querido”.
Hoje Macau SociedadeSimulacro | Exercício de busca e salvamento no mar juntou 160 pessoas [dropcap]O[/dropcap]s Serviços de Assuntos Marítimos e de Água (DSAMA) organizou ontem um exercício de busca e salvamento no mar, envolvendo 160 pessoas, nove embarcações, bem como uma mota de água, um ‘drone’ e nove ambulâncias, com o objectivo de reforçar a capacidade de resposta a incidentes e a coordenação entre diferentes serviços. A manobra, que durou cerca de uma hora e meia, teve lugar nas áreas marítimas em frente do Centro de Ciência, perto do canal de acesso ao Porto Interior e do canal reservado do Porto Exterior.
Filipa Araújo PerfilEddie Murphy, mestre de capoeira: “Macau foi amor à primeira vista” [dropcap class=”type1″]S[/dropcap]e lhe falarmos de Edilson Almeida consegue reconhecer? É difícil, até porque até ele tem algumas dificuldades em se reconhecer pelo nome próprio. Pois bem, Edilson Almeida é, nada mais nada menos, do que o Mestre Eddie Murphy, cara muito conhecida de toda a comunidade de Macau. “É um orgulho, uma alegria quando passo na rua e as pessoas levantam a mão, dizem ‘olá mestre Eddie’, é muito bom”, começa por nos contar o único mestre de capoeira de Macau, Hong Kong e China. Mesmo lesionado não negou, como estávamos à espera, dar uma entrevista ao HM. De sorriso rasgado, conta-nos um pouco do que é. “Sou um optimista, adoro o que faço, amo minha família, adoro Macau.” Foi há sete anos que chegou ao território, não à China. Isto, porque vivia em Shenzen há cinco anos. “Acredita que nunca tinha vindo a Macau? Não acredito nisto, mas é verdade, em cinco anos aqui ao lado nunca vim a Macau. Estava cego”, relembra. A convite para colaborar com uma academia que na altura existia em Macau, o mestre Eddie abraçou o desafio e mal colocou os pés neste território não teve dúvidas: “foi amor à primeira vista”. “Mal cheguei fiquei apaixonado. Só o facto de ver coisas em Português, os nomes das ruas, os autocarros… não queria acreditar, senti-me em casa”, conta. A verdade é que num abrir e fechar de olhos, o mestre e a sua família criaram raízes neste lado do mundo. Primeiro passos [quote_box_right]Foi há sete anos que chegou ao território, não à China. Isto, porque vivia em Shenzen há cinco anos. “Acredita que nunca tinha vindo a Macau? Não acredito nisto, mas é verdade, em cinco anos aqui ao lado nunca vim a Macau. Estava cego”, relembra.[/quote_box_right] Pouco tempo depois de residir em Macau, a academia em que Eddie trabalhava fechou e o mestre de capoeira temeu o pior. “Tinha um mês para sair de Macau porque tinha ficado sem trabalho, pensei no que iria fazer para arranjar uma solução”, relembra, frisando que foi a ajuda das pessoas que fez com que, sete anos depois, Eddie Murphy seja responsável por uma academia de capoeira, uma empresa de entretenimento, uma escola de dança e de grande parte dos eventos de carnaval e latinos que acontecem no território. “Também é da nossa responsabilidade a organização do carnaval em Hong Kong”, acrescenta. Na altura, relembra, muita pessoas foram ao encontro do mestre de capoeira e apresentaram sugestões e “muita ajuda” para que o Eddie conseguisse avançar com a sua vida aqui. Por Macau ser um espaço pequeno, com traços de pequena vila, tem este lado positivo. “Em Macau é possível conhecer toda a gente. Todos sabem quem é quem e se é bom ou mau”, explica, sublinhando que cada um “escolhe com quem quer andar”. “À minha volta gosto de ter pessoas boas, pessoas que gostam de fazer o bem, pessoas positivas e que se esforçam por estar de sorriso mesmo nos dias maus. Tu tens duas formas de viver a vida, ou de sorriso ou de cara fechada, tu é que escolhes o que queres ser”, partilha. União é a máxima Não associar o mestre ao seu trabalho na capoeira é quase impossível. Foi Eddie Murphy que trouxe para China esta espécie de dança que culturas mas, principalmente, que “faz bem à alma”. Das suas aulas fazem parte alunos de todas as nacionalidades e giro é ver as diferenças de comportamentos, reflexos dos diferentes lugares de onde chegam. “Os chineses são mais tímidos, porque são assim por natureza, o português é mais aberto. Com as crianças chinesas é preciso ir mais devagar, mas depois de se sentirem à vontade funcionam como família”, conta. E é esta união a base da capoeira e de todos os ensinamentos que o mestre pretende passar a todos aqueles que passam pela sua vida. “Muitas vezes acontece que quem começa a frequentar as aulas tem problemas, tem uma fase menos boa na vida, muitas vezes ligadas com a família. Os meus alunos chineses têm muitas vezes esse problema, uma educação mais rígida, com mais respeito porque é um respeito imposto e não pode ser assim. É importante – e esta é uma das linhas da capoeira – que se perceba que o respeito é merecido e não imposto”, partilha. Eddie Murphy acredita que Macau está melhor do que há sete anos e é a Taipa a zona que mais lhe enche o coração. “Sou muito ligado aos valores familiares, à minha família de sangue ou à da capoeira, porque é isso que somos, uma família, e a Taipa permite no tempo livre ires passear com a tua família, ir a um parque com as crianças, dar um passeio. Adoro a Taipa”. É a indústria do Jogo que mais preocupa Eddie Murphy. “É preciso ter algum controlo nos casinos e na construção dos casinos, é preciso dar atenção aos que cá moram e não querem saber dos casinos, olhar para os filhos dos trabalhadores [desses espaços] que muitas vezes estão sem os pais durante a noite”, argumenta. Um amor para sempre Não há hesitação nenhuma quando perguntamos ao mestre o que pretende fazer no futuro. “Quero ficar em Macau, já não saio daqui”, diz-nos de sorriso rasgado. “Tenho recebido muito amor aqui, dos meus alunos, dos pais dos meus alunos, de todos aqueles que até não se identificam com o movimento da capoeira mas vão aos encontros e estão connosco”, conta. Planos para o futuro não faltam. Eddie Murphy, marcado pelo seu espírito de trabalho, levanta um pouco o véu e conta-nos que talvez para o próximo ano Macau receba, pela primeira vez, o Campeonato Mundial de Capoeira, que poderá receber pelo menos cem países.