Re-evolução!

“It is madness to hate all roses because you got scratched with one thorn. To give up on your dreams because one didn’t come true. To lose faith in prayers because one was not answered, to give up on our efforts because one of them failed. To condemn all your friends because one betrayed you, not to believe in love because someone was unfaithful or didn’t love you back. To throw away all your chances to be happy because you didn’t succeed on the first attempt. I hope that as you go on your way, you don’t give in nor give up!”
Antoine de Saint-Exupéry
The Little Prince

 

[dropcap]Q[/dropcap]uando vos procuram oprimir e quando vos tentam destruir, levantai-vos e ressuscitai como a fénix das cinzas até os cordeiros se tornarem leões e a regra das trevas já não existir. A exortação não é certamente para alimentar ou incitar uma revolução armada ou violenta, mas para que todos possam adquirir a segurança e “a força do leão”, para poderem enfrentar tudo o que for necessário para mudar, embora de uma forma não violenta! O apelo a uma Re-evolução das consciências individuais, para que possamos afirmar uma consciência colectiva generalizada capaz de mudar verdadeiramente tudo o que necessita de ser alterado. Na história da humanidade tivemos muitos mestres que estimularam as nossas consciências a evoluir desde Jesus, passando por Gandhi e Buda.

Existem inegáveis denominadores comuns entre todas as disciplinas meditativas, religiões ou doutrinas filosóficas. O denominador comum é o amor na sua expressão mais elevada e mais universal. Amor para connosco, com o próximo, com todos os seres vivos, com as próximas gerações e para com o nosso planeta.

Em síntese, o Amor Universal. “Como o Pai me amou, também eu vos amei; habitai no meu amor”. “Se guardardes os Meus mandamentos (ensinamentos), habitareis no Meu Amor; assim como Eu guardei os mandamentos de Meu Pai e habito no Seu Amor. Já vos disse estas coisas, para que a minha alegria habite em vós e a vossa alegria seja completa. Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei” (João 15:9-12).

A humanidade só pode se livrar da violência através da não-violência. O ódio só pode ser derrotado com amor. Responder ao ódio com ódio apenas aumenta a grandeza e a profundidade do ódio como disse Gandhi e “Tu, assim como todos no universo inteiro, mereces o amor e afecto” como afirmou Buda. Todos os grandes mestres expressam inegavelmente o ideal para a humanidade que é o amor universal. Então qual é a razão pela qual o homem não se pode aproximar desse ideal? Não apenas de uma forma teórica ou abstracta, mas na prática, ou seja, na vida quotidiana. Não temos força de vontade suficiente? Não acreditamos fundamentalmente nestes princípios inegáveis enunciados por todos os mestres? Estamos talvez demasiado distraídos pela materialidade e pela vida quotidiana para negligenciarmos a nossa evolução espiritual?

O materialismo e a moralidade são inversamente proporcionais. Quanto mais um aumenta, mais o outro diminui, dizia Gandhi. O “lado negro” é tão forte na natureza humana que se sobrepõe a qualquer iniciativa colectiva tendente a melhorar? O nosso “lado negro” é mais forte sendo um caminho mais fácil? Ou pior, é a indiferença do bem-estar supostamente alcançado que nos “impede” de compreender como a desigualdade social é, de facto, uma derrota, em vez de considerarmos o nosso estatuto como uma vitória? O capitalismo é a crença espantosa de que o mais perverso dos homens fará as obras piores para o maior bem de todos, como afirmou John Maynard Keynes. Creio que cada ser humano tem a centelha divina dentro de si, e que no fundo cada um pode acender essa luz.

A luz que, ao mesmo tempo que põe a nu a nossa fragilidade humana, permite a cada um descobrir a força para melhorar por si. Fazer algo para melhorarmos não só nos beneficia, como a toda a humanidade. Tudo isto sempre no denominador comum do amor. É de pensar que é necessário e indispensável uma mudança de rumo, que aspira a uma visão mais “amorosa” de tudo o que está dentro e fora de cada um. Só aquele que se tornou sábio através do amor pode libertar-se da cruz de causa e efeito, à qual a ignorância o tinha pregado, disse Sterneder. Aquele sentimento que transcende o individualismo, egoísmo, busca do poder e do domínio; que tende para o interesse próprio e a riqueza de uns, gerando a pobreza de muitos. É necessária uma mudança radical, uma evolução fundamental da consciência de todos, através da qual possamos plantar a semente do renascimento da humanidade, rumo a uma nova vida, onde cada um possa encontrar a sua dimensão, para construir um mundo melhor.

Se pudéssemos apagar o “eu” e o “meu” da religião, da política, da economia… em breve seriamos livres e levaríamos o céu para a terra” como afirmou Gandhi. Neste momento (pandemia da Covid-19), onde o mundo foi obrigado a parar, a maioria de nós é obrigada a ficar “fechada” em casa e cada um tem grandes oportunidades de dedicar tempo a fazer coisas que antes provavelmente pouco ou nada fazíamos.

Reflictamos sobre o significado desta pausa, em conjunto! Sem isso, dentro de algumas semanas, quando a pandemia tiver “abrandado”, mas não desaparecida, vamos esquecer completamente que anda por aí quiçá escondida.

O não aproveitar a “oportunidade” de mudança (que nos é apresentada com esta situação), pode conduzir-nos ao declínio social e ambiental e a uma involução crescente da espécie, até à nossa completa escravatura ou, pior ainda, à nossa extinção. Algo se tem escrito sobre a sexta extinção. É de recordar que em 2012, foi publicado “The Book of Barely Imagined Beings: A 21st Century Bestiary”, de Caspar Henderson, que descreve algumas criaturas bastante bizarras mas existentes, tais como o diabo espinhoso, a borboleta do mar ou o urso de água. Trata-se de um livro de título original, mas muito semelhante ao publicado por Jorge Luis Borges que escreveu “O livro dos seres imaginários”, e em pouco tempo todos esses animais deixarão de existir.

A questão, porém, é muito mais alarmante, pois dentro de algumas décadas, cerca de 75 por cento das espécies vivas desaparecerão da Terra, ou seja, a sexta extinção em massa está em curso, pois por cinco vezes, em quinhentos e quarenta milhões de anos, a maioria dos seres vivos desapareceu do planeta sendo a última vez há sessenta e cinco milhões de anos, no episódio mais famoso, que no imaginário colectivo, está ligado à extinção dos dinossauros, embora também tenha afectado muitas espécies vegetais, peixes primitivos e bactérias. A extinção em massa é uma transição biótica com uma duração geológica relativamente curta, em que o ecossistema terrestre sofre uma profunda alteração e que está ligada ao aumento da concentração de carbono na atmosfera e nos oceanos.

Assim, de acordo com as previsões de Daniel Rothman, um geofísico do Instituto de Tecnologia de Massachusetts que comparou o ciclo do carbono nos períodos em que ocorreram as outras extinções em massa, há já alguns anos que se verifica um aumento dos valores que desencadearão o processo de extinção, e que por volta do ano de 2100 atingirá o seu auge e levará cerca de dez mil anos a encontrar um novo equilíbrio. O aspecto mais dramático é que, pela primeira vez em milhares de milhões de anos, o aumento da concentração de carbono é causado por seres humanos e ainda de acordo com um estudo recente da WWF, nos últimos quarenta anos o homem eliminou 60 por cento das outras espécies vivas e as estatísticas acompanham o aumento das emissões de CO2.

Esta é a maior crise de biodiversidade desde que existimos, pois perdemos três mil espécies por ano, ou seja, três por hora, com uma taxa de extinção cem vezes superior ao normal, de acordo com a revista Science Advance e como se não fosse suficiente, cerca de 30 por cento dos vertebrados estão a diminuir, tanto em número como em expansão geográfica. Segundo a “União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN)”, que elabora ciclicamente a “Lista Vermelha” das espécies ameaçadas de extinção, um quarto dos mamíferos e um oitavo das aves estão em risco de extinção. Actualmente, conhecemos cerca de dois milhões de espécies animais e vegetais, mas estima-se que, nas profundezas do oceano ou nas florestas tropicais, haja mais dezenas de milhões de espécies desconhecidas e em risco de extinção.

A sexta extinção em massa é também chamada de “Extinção do Holoceno”, a era geológica que começou há cerca de onze mil e setecentos anos e que durante algumas décadas, segundo uma tese partilhada por quase toda a comunidade científica, deu lugar a uma nova fase, a do “Antropoceno”, a era geológica em que as actividades dos seres humanos estão a mudar de forma significativa e irreversível as estruturas territoriais, ecossistemas e o clima do planeta, e entre as principais causas da extinção em massa está, naturalmente, o aquecimento global, cujos dados são cada dia mais alarmantes.

Os últimos cinco anos têm sido progressivamente os mais quentes alguma vez registados (e vão piorar cada vez mais), e em 2018 os oceanos atingiram temperaturas recorde e, obviamente, a calote de gelo na Antárctida derrete seis vezes mais depressa do que há quarenta anos. O Japão abandonou os acordos internacionais para restaurar a actividade baleeira a 1 de Julho de 2019 (que entretanto continuam a morrer cheias de plástico no estômago: um fim que, de uma forma ainda mais perturbadora, nós, humanos, também corremos o risco). Os dados que já não podem ser definidos como alarmantes, mas seria correcto considerar de apocalípticos, provêm também das estatísticas sobre o consumo de carne, cujo abuso tem estado estreitamente ligado às emissões de gases e ao aumento do efeito de estufa.

É de recordar das consequências que parecem mais fúteis devido ao aquecimento global, pois em breve poderemos ficar sem cerveja ou café. Há mais de uma década que se fala do desaparecimento progressivo das borboletas ou das abelhas, e recentemente também de dados catastróficos e das gravíssimas consequências ligadas ao desaparecimento de muitas espécies de insectos, que mostram como a extinção está a ocorrer a cada minuto que passa, em todos os habitats. Muitos de nós viverão provavelmente tempo suficiente para ver espécies animais ou insectos que não estavam em risco até há alguns anos atrás, e que estudámos na escola ou vimos em desenhos animados desaparecer, porque, se não fosse claro, ao contrário de todos os outros mamíferos, a quantidade de seres humanos na Terra continua a crescer.

Assim, iremos continuar sós, em um destino muito pior do que a extinção. A nossa ganância e o hábito do desperdício perpetuam a pobreza, que é um crime contra a humanidade. Tudo nos deve fazer pensar, sem alarmismo apocalíptico ou hipótese de conspiração geopolítica, que certamente tudo será bom! Mas não é suficiente! Temos de pensar no que fazer agora, para evitar a degradação social e ambiental a que estamos a assistir, mais do que qualquer outra coisa e à degradação em que estamos a participar! Quanto à Europa é de sugerir em alto e bom som um regresso aos valores constitucionais. Inevitavelmente a verdadeira mudança vem de todos e de cada um de nós. A seguir é de relatar o que, segundo Mahatma Gandhi, representou os sete pecados da sociedade que são a 1) Riqueza sem trabalho; 2) Prazer sem consciência; 3) Comércio sem moralidade; 4) Ciência sem humanidade; 5) Conhecimento sem carácter; 6) Religião sem sacrifício (não de animais mas de riquezas) e 7) Política sem princípios.

Seria apropriado fazer uma análise acerca de nós e sobre a sociedade à nossa volta, para compreender, no que diz respeito a estes princípios (se os partilharmos), o que podemos mudar e o que queremos fazer!

Sabemos muito bem que cada revolução começa a partir da base e não a partir do topo, ou seja a partir de cada um de nós. Quais são as áreas? Se quiser uma mudança na sociedade, tenho de partir de mim, do meu comportamento. Se quero uma mudança na economia tenho de partir de mim igualmente, do meu trabalho, da forma como o faço… Se quero uma mudança no ambiente, como posso contribuir? Melhorando hábitos alimentares, de transporte, de redução do desperdício, etc. Se quiser uma mudança na política, qual é o meu nível de participação?

Até que ponto estou realmente determinado a fazer valer os meus direitos e os dos meus concidadãos (direitos civis, humanos e constitucionais)? Estes são os desafios que temos pela frente. Enfrentar juntos a mudança que terá de ser radical, em nós, na nossa sociedade, economia e relações. É de esperar que todos juntos tenhamos a força necessária para implementar e defender esta mudança! Arun Gandhi em “A Virtude da Raiva e Outras Lições Espirituais do Meu Avô Mahatma Gandhi” diz que ” …Todos os dias experimentava novas ideias e fazia um esforço para questionar sempre as crenças de que mais gostava. Nunca deixou de se questionar a si. Sabia que, se seguido de uma forma rígida e dogmática, qualquer ensinamento se tornaria uma paródia de si e se afastaria do seu objectivo.” Estamos a atravessar uma pandemia que não é apenas de saúde, mas que em poucas semanas se tornou económica e imediatamente a seguir política e do ponto de vista social a população está a dar mostras de grande determinação.

A população mostra muito mais determinação do que as instituições. Os nossos profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e voluntários) demonstram uma louvável capacidade de resistência, dada a seriedade e precariedade com que a maioria deles tem de realizar o seu trabalho; os nossos profissionais de saúde, assim como voluntários da Protecção Civil, são muito mais concretos e práticos do que muitos políticos. A nossa estrutura social (famílias e grupos solidários de todos os tipos) é muito mais sólida do que a economia “virtual” que nos rodeia. Os nossos administradores locais (autarcas) são muito mais operacionais do que toda a “superpolítica” da UE, que mostra, na prática, quais os modelos que devem ser defendidos! Porque são eles que, no stressante teste desta pandemia, emergem na solidariedade e na procura de soluções práticas, concretas e imediatas para os problemas do dia-a-dia?

Por esta razão, parabéns a todos esses profissionais abnegados independente do país onde laboram. A maioria da população está a demonstrar uma capacidade de reacção e vontade de poder que muitas vezes, tantos clichés subestimaram. O bombardeamento mediático ligado à Covid-19 (nada mais é falado em todos os canais de televisão 24 horas por dia) criou uma confusão na informação onde todos ouvem falar de tudo.

Este modelo de comunicação está a gerar uma psicose, que, espero, não conduza a manifestações de massas violentas. Espero que nos eduque e nos ajude a compreender como os meios de comunicação social podem “manipular fortemente a informação”, não tanto dizendo falsidades, mas sim “moldando a verdade” para que se gerem certos estados de espírito que “predispõem à aceitação do sacrifício”; (admitindo ou não que ficar em casa durante algumas semanas “em retiro” possa ser considerado um sacrifício por alguém).

Mas se (os nossos filhos) nos tivessem pedido, por exemplo, para ficarmos um mês em casa, para reduzirmos a poluição atmosférica ou para aderirmos solidariamente a qualquer forma de protesto (neste caso, protesto não violento), teríamos aceite sem discussão? Será que o teríamos feito? Tenho a certeza de que todos concordamos que a maioria de nós não o faria. Depois temos de convocar “o papão” para semear as sementes do medo… e obter o resultado: todos vão para casa e calem-se! Não questiono de modo algum a validade sanitária da medida restritiva, pois estou apenas a reflectir sobre as modalidades de comunicação com o objectivo de obter condicionamento em massa. Tudo isto desencadeia uma espiral assustadoramente perigosa na economia, que poderá ter repercussões muito graves no estatuto da maioria da população, mesmo para os próximos anos.

É verdade que os europeus sempre demonstraram a sua grande força, vontade, espírito de iniciativa e empreendimento, precisamente nos momentos mais difíceis das grandes tragédias nacionais, bem como após as duas guerras mundiais, foram sempre o cenário da enorme força de renascimento da população europeia. Então, como lidar com este “precipício económico” para o qual se está a ir a toda a velocidade?

Certamente através de uma reformulação das escolhas políticas, e consequentemente económicas, inspirada nos princípios das Constituições, ou seja, baseada em valores fundamentais. Deste ponto de vista, a visão da Europa, ou da UE, deve, evidentemente, ser revista e refundada. A questão que se deve colocar é de saber qual são o espírito, os valores e os princípios que “guiaram” aqueles que defenderam a causa da unificação europeia? Princípios inspirados na defesa dos valores humanos (solidariedade, fraternidade, partilha) ou apenas abstracções puramente económicas e monetárias?

Todos vemos claramente a resposta nestes dias atrozes que vivemos, em que todos pensam no seu jardim, e sem qualquer controvérsia, mesmo nos meses anteriores à pandemia, com os acontecimentos ligados à imigração, em que a total falta de interesse da UE pelas questões humanitárias tinha-se tornado evidente. É este o futuro que queremos para os nossos filhos e netos? Serão estes os valores expressos pela UE e que em todos estes anos lhes queremos transmitir e em que fundamentamos as escolhas para o nosso e o seu futuro? Sinceramente… não, obrigado! A mudança é possível. Mas começa com cada um de nós. A re-evolução não começa a partir do palácio, nem a partir do topo. A re-evolução começa na base, começa com as pessoas, com todos e cada um de nós. Se queremos realmente mudar, devemos melhorar, não podemos continuar a aceitar a mediocridade destes sistemas, pelo que chegou o momento de todos darem um primeiro passo para a mudança.

Se pensarmos que cada pessoa, que cada um de nós se compromete todos os dias a fazer algo para que se possa produzir uma melhoria, ela produzir-se-á. Terá de ser uma melhoria em todas as áreas, como a pessoal, relacional, laboral, económica, social e até política. Um gesto de amor para com alguém ou algo, uma acção de solidariedade para com os mais infelizes, um comportamento de respeito para com a coisa pública (que é nossa, pertence a cada um de nós). Quantas possibilidades temos todos os dias para melhorarmos e para aperfeiçoar tudo à nossa volta? Hoje devemos esforçar-nos por estar presentes (aqui e agora) neste objectivo e com a prática diária, com a convicção certa, cada acção levar-nos-á a ser sempre um pouco melhores do que antes, mais conscientes até que certos pensamentos, comportamentos, acções, valores se tornem “normais”; os valores que teremos alimentado com as nossas acções tornar-se-ão tão enraizados para se tornarem “comportamento diário normal”.

É um caminho, não é fácil, mas não é impossível. O compromisso pode ser o de construir uma relação renovada entre as pessoas e o Estado, em que um esteja integrado com o outro. Uma relação serena, de pertença e não de contraste; de participação e não de concorrência. Eu percebo que posso ser idealista ou até ingénuo… alguém pode até rir-se de tudo isto. Quantas vezes, até eu próprio já pensei o contrário, muitas vezes… demasiado. Temos de mudar! Se os nossos pensamentos, palavras e acções não mudam! Se queremos mudar o nosso mundo devemos mudar os nossos sentimentos, crenças, pensamentos, acções e o mundo à nossa volta. Acredito! E os outros que estão no mesmo barco que se chama sociedade?

8 Jun 2020

Evolução

[dropcap]C[/dropcap]ontinuando no tema da náusea provocada pela morte do significado e dos conceitos. Reflexões um nadinha mais profundas, ainda assim epidérmicas, depois da espasmódica coluna canina de sexta-feira, levaram-me a pensar na evolução das espécies, na viagem incrível de Darwin a bordo do Beagle, na sobrevivência como recompensa para maior aptidão.

Tal como na biologia, também conceitos, direitos, ideias e valores dissipam-se e extinguem-se na luta constante e cruel entre fortes e fracos. Sem as constrições da genética, mas também sujeitos aos elementos, os ideários são susceptíveis ao zeitgeist político, ao panorama económico, às vontades umbilicais dos que olham para o mundo como se fosse sua propriedade. Nesse aspecto, as ideias são seres frágeis, apesar de duradouros alargando o zoom temporal para um longuíssimo-prazo.

A questão linguística de deturpar o sentido dos conceitos, de tingir significados com as cores berrantes da propaganda, não é a única causa de morte, mas talvez seja uma das mais exasperantes. Eleva a raiva aos píncaros. Como o exemplo dos antigos esclavagistas norte-americanos que preferiam guerra civil a abdicar da “liberdade” de fazerem pleno uso do “direito” de disporem da sua “propriedade”, deturpando esses conceitos para retirar humanidade a outro humano.

A vasta maioria das ideias perecem na imparável evolução moral e social. Em certos casos, o que já foi ética e socialmente aceitável em tempos é hoje em dia hediondo e um trauma do passado.

Há bem pouco tempo, havia apenas uma ténue linha entre pedofilia e uma espécie torcida (hoje em dia) de educação sexual, de tutela íntima. Até JP Sartre escreveu sobre isso. Muito mais antiga é a noção de que a mulher não é um ser pleno, capaz como o homem, bizarria lógica e desrespeito que ainda hoje envenena algumas mentes paradas no paleolítico ético.

Nunca antes na história desta aventura chamada humanidade tivemos uma situação tão favorável em termos de direitos humanos e de respeito pela vida, apesar de todos os horrores que enchem os noticiários. Mas isso não é sinónimo de passividade.

Tudo o que somos hoje em dia foi conquistado com sangue, suor e lágrimas. Iniquidade e perversão estão sempre à espreita, como uma força corrosiva. Por isso, é nossa obrigação, enquanto homens e mulheres deste tempo, levantarmos o dedo do meio perante as vozes que atentam contra noções de direitos humanos, que tentam instrumentalizar a dor dos povos para tirar dividendos políticos. O equivalente biológico ao lagostim vermelho, ao bicho que provoca extinção sem adaptação ou evolução, mas a extinção através da chegada de uma espécie invasora, introduzida como instrumento para matar um ecossistema de valores.

Transportando estas ideias para o que nos rodeia, para o mundo em que vivemos, é nossa missão maior sermos guardiões das conquistas do passado, protectores da invencível máquina da selecção natural dos princípios. Assim sendo, quando ouvimos, lemos, vemos pedras no caminho da evolução ético/social, temos a obrigação de as desviar, mesmo que o peso pareça insuportável.

Não podemos ficar de braços cruzados enquanto forças que planam por cima das preocupações do homem médio traçam cenários de regressão e ameaçam valores de decência e humanismo que conquistámos a tão elevado custo.

Quando vemos a bem presente confusão local entre elevado grau de autonomia e subserviência cega perante o poder maior sobre o qual se arroga a autonomia devemos afirmar esse paradoxo e denunciá-lo.

Existe aqui uma enorme contradição que mata os dois significados, um par de premissas fracas num silogismo que não vai a lado nenhum. Autonomia e servilismo não podem acontecer ao mesmo tempo, um destes organismos conceptuais está destinado à extinção.

O mesmo acontece com um princípio basilar que rege a especial administração desta região. Não são necessárias forças externas para corromper um segundo sistema quando este está em constante assalto interno.

Meus amigos, sejamos claros. Uma Assembleia Legislativa que se transformou num concurso para ver quem é o mais patriótico não tem qualquer interesse em ser autónoma. Já não tinha interesse em ser independente e fiscalizar o Executivo, muito menos defender Lei Básica, declarações conjuntas, ou o princípio “Um País, Dois Sistemas”. Para a larga maioria dos deputados de Macau, este princípio acaba em “Um País”.

Estamos todos a assistir impávidos e serenos à extinção de valores e princípios basilares ao papel que Macau tem e quer ter no futuro, enquanto natural parte do território chinês. Não estão em causa lentos processos de adaptação que imprimem novas características ao organismo na ancestral corrida pela procriação e sobrevivência, como testou o visionário Darwin. Não. Estamos a olhar para o asteróide apocalíptico como se fosse um foguete de fogo-de-artifício a iluminar o céu.

20 Jan 2020