João Romão VozesO espelho dos outros Acontece com frequência: a nossa imagem aos olhos dos outros pode influenciar mais o nosso comportamento do que a imagem que temos de nós próprios. Ou a imagem que temos da imagem que os outros têm de nós, para ser mais preciso. Vem isto a propósito do que se vende – ou não – nas chamadas lojas de conveniência japonesas, agora que se avizinham os grandiosos Jogos Olímpicos do Verão de 2020 e massivas quantidades de visitantes estrangeiros são esperadas no sempre distante país do sol nascente. As lojas de conveniência têm uma popularidade no Japão incomparável com o que passa em qualquer país europeu, ou mesmo asiático, onde geralmente também se encontra com facilidade este tipo de estabelecimento. O caso japonês não deixa de ser extremo, em todo o caso: na generalidade das zonas urbanas é possível encontrar uma destas lojas quase em cada quarteirão. Há excepções de vários tipos: havendo quarteirões onde não há lojas, também há outros onde coexistem várias, em geral pertencentes a diferentes cadeias, nacionais ou internacionais. Independentemente da cadeia, as lojas tendem a ser bastante semelhantes: estão convenientemente abertas 24 horas por dia, 7 dias por semana, e vendem, como o nome sugere, o que pode fazer falta em qualquer momento, com uma variedade surpreendente: refeições prontas, frutas e legumes frescos, lacticínios, produtos de charcutaria, vinhos, uma vasta parafernália de outras bebidas, doces, pão, bolachas, gelados, detergentes vários, utensílios de limpeza, produtos de higiene pessoal, cosméticos, papel higiénico, guarda-chuvas, tabaco, ou mesmo algum vestuário de emergência, incluindo as camisas brancas com que grande parte dos homens japoneses se veste para ir trabalhar. Um pouco mais surpreendente, pelo menos para os nativos de países com tecnologias digitais de utilização quotidiana aparentemente mais avançadas, como é o caso de Portugal, são alguns dos serviços prestados nestas lojas e que nós já transferimos quase completamente para os cabos das redes de informação: compra de bilhetes para espectáculos, pagamentos de impostos ou outras contribuições para instituições públicas também são maioritariamente feitos nestes estabelecimentos, igualmente equipados com anacrónicas máquinas de fotocópias, que no Japão continuam a consumir despropositadas quantidades de papel. O assunto desta crónica é outro, no entanto. É que entre os produtos de extrema conveniência comercializados nestes estabelecimentos estão os jornais, revistas e colecções de manga tão populares na cultura japonesa. E entre estas revistas (de animação ou não) estão as publicações para adultos – na esmagadora maioria dos casos orientadas para o público masculino – cujas capas normalmente ostentam magníficas representações de voluptuosos seios femininos e cujos interiores estão invariavelmente repletos de pornografia explícita. Não sendo estes conteúdos particularmente diferentes daquilo que se pode encontrar na literatura recreativa para adultos em qualquer outra parte do mundo, o que surpreende é a exposição: estas publicações partilham espaços relativamente exíguos com outros géneros, incluindo a literatura infantil, normalmente a escassos centímetros de distância. Não consta que desta ultra-exposição pornográfica tenha vindo grande mal ao mundo – ou pelo menos ao Japão. Na realidade, poucos ou nenhuns problemas são conhecidos em relação ao assunto – nem sobre a manifesta e permanente objectificação dos corpos femininos para entretenimento masculino, nem sobre o fácil acesso que as crianças japonesas podem ter às publicações (mesmo que por lei não as possam comprar). Em todo o caso, as coisas vão mudar num futuro próximo: até ao início dos Jogos Olímpicos, dentro de pouco mais de um ano, as lojas de conveniência são obrigadas a deixar de comercializar este tipo de literatura, que passará a ser disponibilizada em outros circuitos. A razão é simples: aos olhos dos visitantes estrangeiros que hão-de vir, esta exposição da pornografia é inaceitável. Ou pelo menos parece ser essa a imagem que as autoridades japonesas têm da imagem que os estrangeiros podem vir a ter do Japão. Seja como for, as revistazinhas com generosas mamas nas capas terão que passar a ser vendidas em circuitos especializados. Tanta exposição pública não é conveniente.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasComo quem se olha ao espelho [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omo pode dar-se o reconhecimento do outro, como lhe chama a filosofia um “outro si próprio” (self)? Platão formula este problema. Arranca-o à simplicidade de se achar que é fácil ou difícil, possível ou impossível conhecer alguém. Põe no núcleo duro do problema a reciprocidade. Sou eu quem se reconhece como um “si”, como portador da “vida”, do ser universal que escancara todos os tempos havidos e a haver e todas as pessoas de todas as gerações passadas e futuras? Como posso, então, reconhecer o outro como outro, isto é, como portador da vida universal e a fortiori, à escala mundial, em si mesmo como outro e como um “si próprio” para si? Sou eu quem está projectado no outro que eu reconheço? É o outro que existe em mim e quem o outro aí comigo também pode reconhecer-me como um duplo de si próprio? São os amigos uma multiplicação dos mesmos nos outros como diferentes filhos são o mesmo mas multiplicados pelo seu número? Pode “isto” passar-nos despercebido, isto é, que sou quem existe no outro e que é o outro que existe em mim, como diz Platão no Fedro dos enamorados, que cada um está apaixonado por si no outro, mas isso mesmo, a paixão por si no outro lhe passa desapercebidamente? O reconhecimento da alma (psychê) uma outra palavra para o si próprio é compreendido analogicamente pelo facto do quotidiano de nos vermos ao espelho. Tal como um olho se pode ver a si próprio espelhado no olho do outro para quem estamos a olhar também o próprio de nós poderá ser reconhecido ao olhar-se para o próprio do outro, naquela dimensão em que nós podemos ficar plasmados no olhar do outro, no olhar de preocupação que inspiramos no outro, no olhar de amor de que somos susceptíveis e podemos inspirar no outro. Um olho pode ver-se a si mesmo no seu reflexo na pupila de um outro olho. De modo semelhante, uma alma pode conhecer-se a si mesmo na sua “reflexão” na dimensão mais complexa do si próprio no outro. Além do mais, um olho pode ver-se a si mesmo melhor ainda na sua reflexão num espelho. Uma alma, de modo semelhante, pode conhecer-se a si mesma quando usa o melhor dos espelhos reflexivos, e contempla o modo como se encontra refletida em Deus. Assim, “O rosto da pessoa que olha nos olhos de outra pessoa é mostrado nos olhos da pessoa que se encontra à sua frente, como num espelho, e chamamos isso pupila, pois de certo modo é uma imagem da pessoa que olha. Um olho ver-se-á, enquanto vê o outro olhos nos olhos, sobretudo quando olha para a parte mais perfeita dele, aquilo mesmo com o qual vê. E assim também se verá a si. Mas não pode olhar para nenhuma outra parte do outro, nenhuma parte do seu corpo, nem do seu rosto. Terá de ver para lá do próprio olhar e enfrentar olhos nos olhos a vida que acontece no outro. Terá de olhar para o que verdadeiramente se assemelha a si, a sua própria vida espelhada na vida do outro diferente de si. Essa diferença é anulada e duas pessoas reconhecem-se como sendo uma da outra: uma e outra projectadas reciprocamente em cada um dos outros. “E se a alma também vier a conhecer-se a si mesma, certamente deve olhar para uma alma e, especialmente, para aquela região em que ocorre a excelência de uma alma. Porquanto essa parte da existência onde ocorre a sua excelência é assimilada por Deus. Quem olhar para isso e vier a conhecer tudo o que é divino, obterá assim o melhor conhecimento de si mesmo.” (Platão, Alcibíades II) Conhecer-nos a nós mesmos implica desviar o olhar da imagem da pupila do olho no espelho em frente (e fora) de nós e olhar para aquela região da alma que é mais divina. Então, olhando para Deus e fazendo uso deste mais belo espelho interno e também olhando para a excelência da alma, somos, portanto, muito mais capazes de ver e reconhecer nós mesmos da maneira como realmente somos. Reconhecemos o outro susceptível de Deus. O outro reconhece-nos “capazes de Deus”. Deus é um nome para a possibilidade radical da felicidade no amor de outrem por nós e de nós por outrem. O outro apresenta-se em si tal como é ao olhar? E nós o que vemos quando olhamos os outros olhos nos olhos? Vemos os outros simplesmente? Os outros o que vêem, quando nos vêem? Vemos nós simplesmente os outros ou vemo-nos lá a olhar os outros sem nos apercebermos de que somos nós próprios lá? E os outros o que vêem de nós? Não se verão também a si mesmos em nós, não percebendo esse facto, achando que nos vêem tal como somos em nós próprios? Não há nenhum acontecimento isolado de si. Ou, antes, cada pessoa percebe-se no seu isolamento apenas, porque percebe a distância a que se encontra de toda a outra pessoa. Mas o milagre acontece e todo o reconhecimento recíproco traz consigo esse maravilhamento de que o outro é o nosso próprio si e nós somos o próprio si do outro. Passar-nos-á despercebido a maior parte do tempo da vida a respeito da esmagadora maioria da humanidade, mas a hipótese filosófica do reconhecimento do outro como outro, da vida a acontecer no outro, implica crescermos à altura em que vemos a vida de que somos portadores, universal, a fortiori à escala mundial e vital.