Casa dos Expostos

[dropcap]P[/dropcap]ara os recém-nascidos não serem deixados em plena rua abandonados, foi em 1838 atribuído às Câmaras Municipais o encargo de os acarearem e promover a sua criação e à Mesa dos Enjeitados, também conhecida por Mesa dos Santos Inocentes, recolher as verbas para as despesas, mercê, principalmente, de esmolas.

A Santa Casa da Misericórdia de Macau, pelo menos desde o início do século XVII, tivera a seu cargo a Casa dos Expostos, chamada também dos Enjeitados, encontrando-se o hospício instalado na parte posterior do Cartório, bloco comum à Igreja, e de vistas para o claustro. Com fraca vigilância e sem acções de fiscalização exteriores durante o século XVIII, parecia abandonada, apesar de ter recebido cifra a atingir os três contos de réis, isto é, 3000 taéis, segundo uma representação de 1789 à Rainha.

“Os poucos dados conseguidos mostram, naqueles anos, a existência média à roda de 120 crianças; às amas pagavam 2 máses (7 gramas) de prata e 30 catis (um pouco mais de 18 kg) de arroz, por mês. As amas gozavam ainda a regalia de mestre curandeiro chinês, que, por avença para pela Casa, as ia tratar quando necessário. As recebiam 1 a 2 taéis (1 tael = 37,799 g) de prata por mês, sem direito a arroz, mas parece ter sido corrente tomarem à sua conta, mais de um exposto, com a paga equivalente.

Para despesa total, já em pleno período de restrições (início do século XIX), apura-se ser ainda entre 1600 a 1800 taéis por ano, mais ou menos de acordo com a média do 1% indicada pelo Ouvidor Arriaga para a cobrança na alfândega, verba, porém, reputada insuficiente. Em todo o caso é de frisar quanto tal despesa era, ao tempo, ligeiramente superior à do hospital dos enfermos”, segundo o médico José Caetano Soares (JCS), cujas suas informações nos socorrem neste artigo.

Em Portugal, no alvará de 18 de Outubro de 1806, tornado extensivo ao Ultramar, o assunto dos expostos merecera atenção especial: «Determino que em todas as Misericórdias, nas eleições anuais se eleja um Irmão para Mordomo dos ditos Expostos. Para que esse piedoso estabelecimento (Casa dos Expostos) não venha a ofender os bons costumes, que as justiças obriguem as mulheres solteiras, que se souber andam pejadas, a darem conta do parto, a pagarem a criação e tomarem conta dos seus filhos. Quando, porém, aconteça haver um parto secreto e se recorra ao Provedor da Misericórdia ou ao Mordomo dos Expostos, serão eles obrigados a prestar o socorro pedido, procurando-lhe uma mulher morigerada (de bons costumes) que em segredo assista ao parto, fazendo conduzir o exposto à roda, ou entregando-o a uma ama, que o crie… sem que se indague a qualidade da pessoa, nem se faça acto algum judicial, de que se possa seguir a difamação.» Arquivo das Missões.

“O uso em que estão os moradores, ou mais suas mulheres, de comprarem raparigas que os chineses vendem com facilidade, principalmente, havendo carestia de arroz e mandar lançá-las na roda, não tendo o problema nada de peculiar em Macau, era preciso pôr um termo a isso. De causas diversas, desde as de natureza económica, até às de ordem moral, mais ou menos ligadas à frouxidão de costumes ou à libertinagem, esse aspecto da ilegitimidade dos filhos levaria a admitir o desumano conceito de tolerar o abandono dos recém-nascidos, mormente pela mãe”, segundo o JCS.

Em 1811, mereceu atenção do Desembargador Miguel de Arriaga que comunicaria, também, à Secretaria de Estado: Há na Misericórdia a administração deste pio Instituto (Casa dos Expostos) socorrido pelos réditos dos legados deixados pelos benfeitores com essa aplicação, a que acresce a anual consignação de 2% (?) tirados da alfândega sobre as fazendas grossas.

A Portaria-Circular de 1834 mandava pedir: Exposição circunstanciada do estado em que existem os estabelecimentos dos Expostos, com indicação do número que anualmente recebem, vencimentos das amas, quanto tempo dura a criação de cada um, que destino recebem ultimados da sua criação, se há edifícios em que estejam todos reunidos e quanto se deve às amas… A Portaria foi recebida em Macau, mas se teve resposta da mesa, não foi encontrada.

Manifesto contra a Roda

“Pelos elevadíssimos índices de mortalidade, dessas Casas de Expostos, a que outras razões, tanto morais, como até materiais, traziam extraordinário agravo, passou a tornar-se mais opressivo o mal-estar e o geral descontentamento, até que em 1853 o Dr. Tomaz de Carvalho, professor ilustre da Escola Médica de Lisboa, rompeu na com a memorável campanha – .

A grande autoridade do seu nome, bem apoiada nos elementos colhidos na maternidade do Hospital de S. José, a pouco e pouco transformada em antecâmara da Roda e, acima de tudo, o desassombro de quem se sente forte na luta por uma causa justa.

Não obstante o apoio, logo recebido, tanto da Imprensa, como mesmo das instâncias governamentais, só em 1866, ainda parcialmente, e, por fim, em 1876 foi possível abolir de maneira definitiva o sistema da Roda”, segundo escreve José Caetano Soares.

16 Mar 2020

Roda dos Enjeitados

[dropcap]E[/dropcap]m Macau há assuntos a merecer estudo, mas, fôssemos como os académicos da cidade nossa vizinha região administrativa, apenas interessaria investigar os que poderiam comprometer os adversários, para vangloriar os nossos. Quando a meio do estudo se apercebem estar os seus padres ainda mais enlameados que os nossos, desinteressam-se do tema, deixando-o cair no esquecimento. Essa era a nossa vontade se não achássemos relevante a história da Casa dos Expostos, também chamada Casa dos Enjeitados. Sendo os registos escassos sobre as fases da sua existência, onde falta muita documentação, socorremo-nos das informações compiladas por o médico José Caetano Soares (JCS) e complementamos com as do Boletim Oficial.

Vulgarmente denominada Roda, pois era a maneira como os recém-nascidos entravam no hospício através de uma rotativa porta, sem ninguém ficar a saber quem ali os colocara, assim eram deixados ao cuidado da Santa Casa da Misericórdia. Uma Regente tomava conta da Casa dos Expostos e “respondia por tudo, desde a admissão dos recém-nascidos, até ao recrutamento das amas, seu pagamento, etc., sem nenhuma entidade fiscalizadora”, refere JCS.

Nos inícios de 1867, o Governador José Maria de Ponte e Horta assustou-se ao saber da morte no espaço de um mês de 38 das 46 crianças de leite recolhidas na Casa dos Expostos. Após aí serem abandonadas, a Regente entregara-as ao cuidado de amas, pagas a uma pataca por cada cria para delas cuidar e as amamentar. As falecidas, primeiro foram levadas à Casa dos Expostos e dali mandadas sepultar pela Regente, criando grande azáfama ao chinês que tratou de as enterrar. Assim, um a um dos 38 cadáveres foi transportado na caixa comum pelo chinês para o cemitério público, o qual abria naquela mesma ocasião uma pequena cova, com licença ampla do encarregado do cemitério. Sem cerimónias conduzidas pelo respectivo pároco, foram sucessivamente sepultadas, regressando o portador de volta com a caixa vazia para a Casa dos Expostos, onde a depositava para servir em idênticas ocasiões; e por isso levou o nome de caixa comum.

Das oito crianças ainda sobreviventes, todas do sexo feminino, encontravam-se duas cachéticas (raquíticas, ou doentes de cachéxia, enfraquecimento geral do corpo humano) e cinco afectadas de doença de pele, falta de limpeza e em má nutrição. A outra estava num estado tão deplorável e repugnante que não se encontrava quem a quisesse amamentar.

Inteirado do estado dessas criaturas, privadas de leite e colo materno para serem baptizadas e depois entregues a mercenárias que se denominavam amas, o Governador pediu à justiça de Macau para proceder sem detença contra os infractores e ao comandante da polícia, que fizesse entregar sem perda de tempo aos cuidados da SCM as restantes oito crianças, pois estas continuavam ainda com as suas sete amas. Mas antes disso, fossem as cinco inspeccionadas por o cirurgião-mor. À criança que ninguém queria amamentar foi-lhe dado leite de vaca e começou a recuperar.

Assim, segundo Luiz Gonzaga Gomes, a 2 de Fevereiro de 1867 “o Governador José Maria de Ponte e Horta decretou, por prejudicial aos costumes da sociedade, a abolição da Roda dos Expostos da Santa Casa da Misericórdia de Macau e proibiu a esta instituição o recolhimento das raparigas abandonadas.” Refere Beatriz Basto da Silva, “O Decreto entrou em vigor a 8 do mesmo mês e ano, devendo no entanto a Santa Casa continuar a tratar dos enjeitados que tinha a seu cargo nessa data. Como a Portaria não conseguiu deter a prática, a ‘Roda’ deixou de existir, mas as crianças abandonadas à porta da Santa Casa continuaram a ser recebidas.”

Os desamparados

“O recém-nascido deposto em segredo, sem qualquer esboço de inquirição e até fora da vista, conforme muito assim facilitava a roda conventual, a coberto de usos e leis na aparência com fins benemerentes, mas que tragicamente repudiavam os mais elementares deveres maternais e não menos tolhiam ao filho o legítimo direito de sangue ou sequer do nome”, segundo JCS, que refere, “Para Macau e em tal matéria haveria só a esperar reforço quanto a números, desde que entre chineses a prerrogativa de garantir o nome continuador da família, foi sempre exclusiva ao elemento masculino, portanto, as filhas mais nas classes baixas ou de situação económica difícil, não contavam e podiam ser legalmente transaccionadas. Mas mesmo no nosso próprio meio, pelo convívio de numerosas escravas e com aquele trem de vida, bastante folgado ou ocioso, as condições não seriam as mais propícias a fortalecer os grandes atributos de virtude e castidade. Assim se engrossava, também, outro mal – o da mendicidade – como por volta de 1772-3 o Governador Salema de Saldanha expunha em carta ao Bispo D. Alexandre.”

A data do início da Casa dos Expostos é impossível de apurar, mas já o compromisso de 1627, no Cap. XXIII , incluía a disposição: Em conjunto com os dois hospitais, esse hospício recebia um subsídio, que a ninguém repugnava, proveniente do 1% cobrado nos direitos de Cidade sobre as fazendas grossas.

“Donativo idêntico, fixado mais tarde em 1%, também sobre as fazendas grossas entradas na Cidade, seria do mesmo modo atribuído às freiras de St.ª Clara, que por ajuste de 1692, em que interveio o Bispo D. João de Casal, o Provincial de S. Francisco e o Senado assentaram <dar-se, pontualmente, esse 1% estando as freiras obrigadas a receberem sem dote, cada cinco anos, uma filha de Morador>. De lembrar ter sido a Cidade do Nome de Deus na China criada por alevantados mercadores, que a trespassaram para mãos régias devido ao comércio com o Japão. Quando este ficou proibido, regressou Macau ao privado trato gerido pelo Senado e se cada viagem realizada valia ao dono da embarcação uma verdadeira fortuna, bastava um naufrágio para arruinar em dívidas o proprietário e afundar haveres e vidas, deixando viúvas e órfãos desamparados.

A carta do Governador Salema de Saldanha refere:

Enjeitados e raparigas órfãs receberam no século XVIII descuidada atenção e ínfimos recursos devido ao estado de decadência de Macau.

9 Mar 2020