A depressão e outros lugares em Neptuno

[dropcap]F[/dropcap]ico em casa porque a casa sou eu. Protejo-me nas quatro paredes diagnosticadas com perturbações mentais. Alguém me disse que se um esquizofrénico e um borderline (limítrofe) fossem para uma ilha, o esquizofrénico continuava a ser esquizofrénico mas o boderline não iria revelar sintomalogia.

O seu pilar intermediário influente é calculado pela armadura interpessoal. O cálculo da armadura de flexão em vigas nem sempre considera a largura do pilar intermediário influente. Isto é, se a casa for o silêncio e o pensamento o turista que aproveita o alojamento local para experimentar novas identidades, o escoamento de ideias pode perfeitamente fazer-se pelo saneamento público das convenções sociais, sem demais complicações. É isso, sonho em ser lugar-corpo fragmentado entre geografias. Extraterrestre holístico. Não dá. Tenho de tomar a fluoxetina, fluxo de palavras nas áreas suburbanas do cérebro. Cá vai: passei pela infância despercebida. Claro, havia censores pendurados ao longo dos corredores que iam dar aos outros. Palavras que quando chegavam já vinham em ferida ou, se não feriam, pousavam em feridas como álcool. Ardia. Quando ardia, eu gritava. Qualquer um gritaria. Mas para quem passa na rua e ouve esta gritaria toda dentro de casa, não compreende, enerva-se. As vigas estão lá, está tudo pintado, porque é que esta casa tão normal é tão imprevisível. Barulhenta. Música sempre muito alta na cave dissociativa, janelas que se partem sozinhas porque autodestrutivas, flores a crescerem na extremidade dos transtornos, belas telas penduradas no quarto onde a casa vai para se abandonar continuamente.

Que casa é esta que não sabe o que ser, sendo sempre tanta coisa e nada em simultâneo? Às vezes, tem toda a mobília que consegue comprar, rebenta pelas costuras de tanta estante, arcas, peças em estilo Hepplewhite, cómodas, toucadores, cadeiras sem espaldar, chaise longue para a psicanálise doméstica. Outras é só vazio. Ouvem-se martelos a destruir paredes de pladur, alcatifas rasgadas com as mãos.

– Habitará ali algum demónio? Perguntam-se os vizinhos. – Será ele quem cuida do jardim?

Alguns dizem conhecer um jardim tropical que rodeia aquela casa, com aves-do-paraíso, hibiscos, orquídeas fluorescentes. Várias pessoas relatam a visão deste jardim. À entrada lê-se numa placa romântica “Neptuno”. É um jardim único, soberbo, sobrepõe-se a muitas das coisas já conhecidas. Muitos, nunca o encontram.

A personalidade, essa, que é suposto ser fixa, definida, perturba-se ou, noutras palavras, propõe-se a transformar o acto de perturbar – temporário, por natureza – num acto fixo: um distúrbio. Há escadas entre os factores genéticos do ladrilho. Há estruturas cerebrais específicas para lidar com determinados comportamentos emocionais, como o Sistema Límbico. O limbo, núcleo rochoso ao redor do trauma, esse lugar fora dos limites do céu onde não existe a remissão do pecado (original?) mas existem diversas camadas de nuvens, tempestades ciclónicas. Neptuno não consegue receber a radiação solar necessária para fornecer energia às elevadas turbulências da sua atmosfera. Assim, é esta casa-corpo, mente erigida por um qualquer arquitecto de Neptuno, misantropo e empático, violento e frágil. Um paradoxo consciente. Vou para a cama com o arquitecto, antagonista dos receptores dopaminérgicos. Mantemos afinidade com os receptores serotoninérgicos. É agora que vou tratar das orquídeas. Em Neptuno, rego orquídeas contínuas, num jardim tropical, Jardim-Ilha onde sou sã para sempre.

3 Jul 2020

Dor

[dropcap]C[/dropcap]omo agulhas espetadas debaixo das unhas. Acutilante prioridade dos sentidos que tudo reduz a pó, que rouba significado onde quer que possa encontrar miolo, até que o tempo pare de contar. Angústia constitutiva que diz quem somos, de onde viemos e para onde vamos, tudo se reduz a mim. Todas as preces e eucaristias, somas múltiplas de adorações, pedaços de vida devotos à transcendência são trazidos de volta à terra através de mim, a força maior. A lancinante puta, mãe de todos os nervos, vertigem dos corações desvairados, ombro falso dos solitários, oásis equivocado dos melancólicos. Todos retornam ao meu espinhoso aconchego, à concórdia deste nó que não desata e que só por fogo pode ser dissolvido. Poder que tolda a visão, que escurece os dias e que humildemente lembra às almas a insignificância da sua natureza, que mancha de fedor o perfume dos problemas quotidianos. Dona dos oprimidos e dos culpados, razão de ser dos pecadores, medida improvável dos descrentes e de todos os espíritos livres e autónomos de dogmas, de amores teóricos e falácias do marketing. Ferro em brasa onde mais magoa, rasgo libertador de sangue, rio de lágrimas gordas, sinfonia de gritos de desespero que dá música à natural dança do que é ser humano. Todos esmagados neste almofariz existencial, triturados até os ossos que se transformam em farinha fina sob a graça da minha pressão, regresso aos elementos químicos básicos, até todos serem energia cósmica que dói, que aflige as estrelas e molesta sem perdão as constelações. Náusea imensa que cresce bem para além das possibilidades, que se agiganta além das características dos sólidos e da fantasmagoria dos vapores. Asco que leva o estômago numa viagem de montanha russa sem altos, só baixos, sempre em queda livre sem ver o fim, sem descanso derradeiro que traga paz. Aflição máxima que busca e sonha com o breu, o silêncio, a dormência, o branco invasor onde se pode dormir em paz, livre o cansaço do sonho. Desejos de recompensas divinas da grande deusa palavra, amor incondicional a uma esquiva ideia de eloquência e ao espírito sempre elusivo, que escapa entre os dedos dos tolos. Captura-se a espaços, aqui e ali, em golpes de sorte e logo de seguida desvanece-se e retorna ao âmago do mal, ao lar das agonias, à certeza da mais completa banalidade devota justamente ao esquecimento. Um corte mais fundo que o outro, precipício íntimo em que se cai quando se pensa que se está a erguer de algo, elevação que se revela queda a pique. Abismo onde a sagacidade adormece quando os olhos se cerram e os dentes rangem. Sentir tudo, sentir e nada poder fazer quanto a isso. Incapacidade como essência perante a indiferença fatal da biologia. Não sou a dor que purifica, a dor que busca prazer, a dor sacramental de masoquista elevação espiritual, não sou a dor que adorna estados de mente, bibelôs emotivos ou desesperos recreativos. Sou o rasgo que devora nervos e que vive sempre com o homem e a mulher. Sou calvário, suplício e a mais completa das mortificações. Sou a implacável sílaba máxima que se berra surda em múltiplos “ais”, que dispensa verbo, predicado e que dilacera o sujeito. Para muitos, sou a via para o paraíso e o eterno sofrimento do inferno, essa evangélica contradição que é o cimento dos mitos. O meu nome é Adamastor, a soma de todas as tormentas, farpas enterradas em carne sensível, cilício cravado na fé, flagelação, a pena máxima aplicada a toda a criação.

22 Out 2018

Das tonalidades

Francis Bacon – “Oedipus”

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma tonalidade é uma tradução para o que Heidegger escrutina como formas radicais de acesso ao mundo. São maneiras de ser. A palavra alemã é “Stimmung”. Traz à colação o fenómeno do estado-de-ânimo. É uma disposição. A palavra equivale, de certo modo, à inglesa mood. No étimo, está a palavra “Stimme” (voz). Uma tonalidade é uma cadência acústica, uma melodia, um modo. É assim que na nossa vida estamos dispostos.

Vibram em nós disposições, cadências musicais rítmicas. Heidegger usa tanto metáforas acústicas: “uma tonalidade é um modo de ser no sentido em que é uma melodia, a qual não paira sobre o ser humano que existe aí, mas indica o som do seu ser, é o jeito e a maneira que determina e tonaliza o seu do ser humano (GBM, 101)” ou como metáforas meteorológicas: “Parece que a tonalidade está desde sempre aí, como uma atmosfera na qual nós já imergimos e ela ressoa em nós completamente” (GBM, 100).

Nós temos em português expressões como “estar um ambiente de cortar à faca” ou “de cortar a respiração”, apontando assim para uma densidade extraordinária, uma atmosfera que não só paira em suspenso sobre as coisas, vibra sobre elas, mas perpassa tudo. Isto é o que dá disposição de ir ou de não apetecer ir. Não é uma coloração que pode ser detectada nas coisas (alegria rosa, melancolia negra), que acompanha o estarmos aí. É o que abre ou fecha, de todo em todo, atmosferas.

Nós existimos entre possibilidades extremas de disposições vibrarem. O mais das vezes não estamos nem bem nem mal. Aparentemente neutraliza-se a disposição. Fecha-se o olhar, para dar conta dessa mesma presença. Isto serve para situar o acontecimento do esvaziamento de sentido, no nada da angústia ou do tédio. O nada dá ritmo à vida, dá-lhe uma melodia peculiar, desde sempre, desde a primeira vez das primeiras vezes. A sua cadência é a da asfixia, do estrangulamento do próprio sentido do tempo.

Encontrarmo-nos no meio das coisas no seu todo não significa que o meio seja determinado por uma qualidade espacial (a equidistância). Por estarmos dentro de um determinado sítio não estamos dentro desse sítio: na praia, na esplanada, no mundo. Não é por estarmos entre quatro paredes que estamos na sala.

Estar na sala de jantar a comer e a jogar às cartas é diferente. Se não captamos a totalidade da natureza e história.

A disposição não apenas qualifica o sítio específico em que estamos (só esta sala). Ela faz-nos explodir para fora da sala, do edifício, para fora da cidade, tinge o céu, contamina tudo no seu todo. É centrífuga e claustrofóbica.

O meio das coisas refere a cadência, o ritmo, a atmosfera e o clima em que nos encontramos. Fazemos a experiência de como cada um se encontra ou acha fora do âmbito perceptivo ou cognitivo. Cada pessoa é uma onda ou uma vibração. Cada pessoa encerra em si um espectro de modulações e tonalidades que metamorfoseiam o tempo, circunstâncias e situações. Cada pessoa é uma onda que modula o tempo e atinge a totalidade dos entes.

A priori eu sei que quando me encontro com tonalidades diferentes: azul, rosa ou negro. Não apenas como um fenómeno cromático, mas como atmosferas que antecipam todos e quaisquer conteúdos.

Há disposições a priori que podem não ser anuláveis. Podemos anular a chatice de um filme, saindo da sala do cinema para nos expormos a outros estímulos. Mas só manipulamos as disposições até certo ponto (com um copo de whisky sexta-feira à noite, por exemplo). Os estados de espírito são calculados. Rejeitamos convites porque sabemos que nos vamos aborrecer. Mas há disposições incontroláveis.

Independentemente de onde estamos – no pátio, mar do sul, outra galáxia – estaremos sempre numa cadência com o mesmo tom.

Não é necessário percorrer todos os compartimentos, todas as regiões de ser para interrogar sobre o que ainda escapa.

À partida está ganho o horizonte e a confiança para nele estarmos: o horizonte onde vibram tonalidades. Há um tom para cada um de nós? Qual é? Conseguimos escutar-nos uns aos outros? Como?

GPM: “Grundprobleme der Metaphysik” (Problemas fundamentais da Metafísica)

23 Jun 2017