Amélia Vieira VozesBELA ADORMECIDA Roubam-nos a paz, e que paz viria, se ela não for igual aquela paz que noutros havia? É uma situação que nos inquieta o estilhaçar da serenidade por essa manobra insidiosa da sociedade gradualmente esfomeada em salvo-conduto para o ronco demagogo, instalado, empolgado, estéril e opressivo, um abrasão de indelicadeza que ecoa nos confins da Terra. Estamos demasiado vibráteis com restos de mortandade e configurações grotescas para retorno à “cápsula” onde se instala toda a substância que é a favor da vida, define um centro, irriga o ser, e se vê melhor que entre multidões. O sono, esse deleitoso ritmo do universo, pareceu contrariar os mais frenéticos aposentos da hiperactividade, e a luta para manter tão natural condição foi varrida a ansiolíticos e corrigida com a vigília da regularidade mórbida. Coisas simples e boas elevadas à condição de dilema, corrobora ainda mais o desgaste, que para tudo se tem de dar para manter a trepidação em alta frequência, que o mito da felicidade se dá por enervamento constante, recorrendo cada vez mais a plenitudes sem sentido. Nós já padecemos de tudo de todas as maneiras, já esperámos a salvação por outrem, quando não ele, por um grupo, e mais eloquente e mordaz, por esferas sociais. Dos receituários experimentámos alguns, convivemos com mestres da alegria, fomo-nos abaixo em alguns ataques de riso, e das ideologias havia um cimento tão duro que as dispensámos. Dito assim, ficaram-nos então os ritmos gregários, as finalidades, o tempo certo para adormecer as lágrimas, ficar duro de compreensão, e ainda legitimar a herança de um progresso que consideramos invencível. Neste desfile de objectores de consciência vêm agora dizer-nos que não temos Defesa. – Nem Defesa nem Agravo! Assim, só estamos em sintonia com o Mercado. Somos Mercantis. É evidente a médio e longo prazo que vamos todos ser outra qualquer coisa e, para bem dos conquistadores, sabemos bastante de mercadoria, e não vale a pena andar a esconder os valores em estantes de Código Penal nem na lúbrica jornada de invasores ao fisco, que a mais-valia vai dar directamente ao invasor que se esforçou para não morrermos de martírios governativos e de péssimas conclusões. Aí podem serenar os mais nervosos da sociedade que não dorme para recarregar forças, e se mesmo assim, se estiverem possuídos de eloquente trepidação, terão de abrandar para não colocar rédeas ao sinistro que os apanhou como presas amedrontadas. Com este acabrunhamento inesperado os grandes compulsivos terão a oportunidade de pôr os sonos em dia e se lhes faltar combustível podem sempre começar a andar a pé e fazer grandes paragens dormindo a ver as estrelas. As dissidências com o fervor que lhes assiste, terão sonhos visionários, e cobertos de lã dos últimos pastores, reversar-se-ão pela tomada de uma identidade desfeita. Aqueles que conseguem já conquistar Marte devem achar de menor monta uma conquista da Europa em modalidades várias (que ela se mantém bastante contrária a qualquer sossego) mas, e dada a explosão de centros vibratórios cósmicos onde até o sol pode fazer a sua tempestade, eu, aqui, neste Fevereiro, vejo o espectro de Gengis Khan a atravessar já a Beira Litoral. Isto tudo acontece porquê? Por que estamos na Grande Roda- tudo vai, tudo vem, assim é o caminho da imortalidade- o que fazemos deixa rasto, o que não fizemos atormenta-nos, só que tudo vai e volta mas de uma outra maneira. Por ora a gincana das competências está alinhada com a situação, e é vê-las como se não houvesse amanhã. Mas amanhã virá, e não será para muitos os «amanhãs que cantam» que em estado de coma induzido ainda permaneceremos. Talvez não seja tarde nem cedo, nestas propostas ancestrais que passaram pelo grupo, forjando a célula (família) fomos aqueles que serviram a condição. Uns mais, outros menos, outros nada: mas quem sabe se essa negação lhes era devida? Tal qual aqueles que a serviram. Por ora não sabemos. Desejaríamos que tudo finda-se num indulto universal e capacidade de ver, mas o belo sono ainda não chegou, que as tormentas têm veios fundos como a própria memória que construímos unida por fileiras em rota de colisão com a paz trazida por estrelas muito mais distantes. Porém, a paz, pode ser dispensada. Aqui, só desejamos um tranquilo sono, e que quem nos beije finde o anterior ciclo, e com ele sejamos despertados.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDormir com Lisboa 04/09/20 [dropcap]“A[/dropcap] explicação órfica da terra é o único dever do poeta.”, Mallarmé. Um encolher de ombros, um leve enfado: tudo o que me provoca hoje este tipo de sentenças peremptórias e redutoras. Imagine-se: o único. E logo “patrocinado” por Orfeu que, ao contrário de Alceste, não teve os tomates para trocar a sua alma pela da amada, ou de deixar a sua lira como penhor no Hades. Há muito de burguês e de balofo nesta pretensão mallermeniana. Para que lhe servia então o dom, se face à morte recuou? Puro ilusionismo de feira. Que o poeta reivindique esse desígnio para si é magnífico (foi o caso de Herberto, entre outros), que o torne condição sine qua non para toda a poesia é excrável. Há muitos raios para chegar ao núcleo da roda. 05/09/20 A este selo com dois cudos a correrem, desenhados com esmero e dinâmica, posso garantir que Pessoa não o teria na sua colecção porque a sua emissão só teve lugar dez anos após a sua morte. Perdeu-se a sua colecção de selos, reunida com tanto empenho, ainda que tenha chegado até nós o seu álbum. Quem lhe teria extraviado os selos, como? Tê-los-ia trazido consigo, no regresso a Lisboa desde Durban, ou já considerava isso coisas de menino? Qual foi a medida do impulso coleccionista em Pessoa? Há imensas zonas de penumbra que a investigação (felizmente) não tem conseguido dilucidar, aspectos que na vida de um homem reaparecem com uma irrelevância quotidiana, mas sem desfalecimento. Por exemplo, o umbigo de Fernando Pessoa seria do tipo dos que atraem a formação de cotão ou não? Nesse caso, quantos quilos de cotão produziu o poeta em vida? Todas as coisas de molde inaparente, menores, que podem reger a vida de um homem sem ele dar conta. A primeira vez que Sir Walter Raleigh se despiu diante da Rainha Isabel esta, percorrendo-lhe com o olhar o tronco escorreito, largou uma gargalhada ao dar-se conta de que Raleigh estava nu em todos os lugares menos no umbigo, onde repontava uma bola de cotão. Essa gargalhada, que Raleigh nunca recebera de qualquer mulher sinalizou para Elizabeth uma superioridade que a fez ter sobre o seu amante um ligeiro ascendente. 07/09/20 A gafe foi monumental. A empregada enganou-se na panela e aqueceu a errada, servindo à mesa a sopa que estava azeda. Apressar-nos a contar que foi imediatamente despedida não salva um jantar liquidado à nascença. Recomecemos agora a narrativa por um ângulo à Claude Chabrol e mais afim do imaginário da luta de classes: a criada fez a ronda da mesa, vertendo colher e meia de sopa por prato, e os convidados aguardaram cerimoniosos que o anfitrião fosse servido. Este colocou o guardanapo sobre as pernas e acabou de contar a anedota de um anão que fora dormir à alma do canhão do circo, antes de num gesto magnânimo, sugerir, Comam, façam favor de começar antes que arrefeça, e para dar o exemplo foi o primeiro a levar a colher à boca. Foi também o primeiro a baquear, envenenado. 09/09/20 Dois livros sobre Lisboa retiveram-me a atenção nas últimas semanas. O primeiro é de fotografias, Lisboa Deserta, de Maria Margarida Chaves Marques, um álbum com design de Ivone Ralha. Eis o testemunho de uma Lisboa em puro insílio, nua, despojada de gente. Tinha ouvido falar por familiares desse período de isolamento obrigatório por causa do Covid e das suas regras quase militares, mas nunca se imagina quanto. O livro mostra-nos e ganha um relevo quase sociológico. Uma cidade sem ninguém é um organismo em ferida, constata-se neste “belo” álbum que percorremos com a inquietação que antecede os sismos. Um alerta que não nos deixa esquecer de quanto o rosto de uma cidade depende da sua fosforescência humana. Outra curiosidade interessante: as fotografias deste álbum foram todas tiradas com um telemóvel, sendo a prova de que, como queria Paracelso, é a mente quem faz ver os olhos. Uma boa foto só depende de se ter um ponto de vista – e desta carência o livro não sofre. Encontra-se à venda na Livraria Snob. O outro é um romance da Fausta Cardoso Pereira, Dormir com Lisboa. Um belíssimo livro que foi obrigado a um percurso sinuoso por causa da sua peculiaridade narrativa: o protagonista é a própria cidade. Como “supostamente” lhe faltava um personagem com quem o leitor se identificaria (o que é falso, aqui como em Manhatthan Transfer, de John dos Passos, retrata-se a cidade com um ritmo, uma riqueza de perspectivas e uma pulsação orgânica que nos leva a não abandonar a leitura) o livro foi sendo rejeitado até que ganhou na Galiza o Prémio Antón Risco de Literatura Fantástica e vários encómios após a sua edição, pelas virtudes que em Lisboa lhe negaram. Agora vai ser finalmente editado em Portugal, por uma editora portuguesa mais sensível à eficaz estrutura coral do livro e menos arreigada à uniformidade do mainstream. A edição galega é de 2017 mas o covid e as ausências da mole humana na cidade devido à pandemia deram a esta narrativa um carácter quase profético. A trama é simples: quebrando a sua rotina, numa aleatoriedade que desafiará a criatividade de cientistas chegados de todo o mundo para estudar o fenómeno, a calçada de Lisboa ganha hábitos de bivalve e engole alguns cidadãos comuns. O desconforto, a desorientação e o pânico tomam conta da urbe, que ameaça desertificar. É a “alma” da cidade que se revolta contra a indiferença e as equívocas políticas urbanas dos seus edis? Será algum tipo novo de “doença” urbana? Que espécie de cataclismo e de assombramento ameaçam Lisboa? Um romance imperdível com um enredo imaginativo e uma escrita ágil, que ameaça ser um dos livros do ano. Pelo menos, a singularidade ninguém lho tira.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasRecomeçar, sempre [dropcap]T[/dropcap]odos os dias a vida recomeça. Dormir marca o reinício do nosso sistema operativo. No sono e no sonho, embora sentados na cadeira de comando, não somos nós que pilotamos. Melhor: é outra instância da identidade, uma à qual só temos acesso abdicando da lucidez e do controlo. O sonho tem a consistência da vida. Tudo quanto nos acontece no sonho nos parece tão real como aquilo que, de facto, tomamos como o sendo. Na verdade, não podemos afirmar com certeza não estar a viver um sonho. Não há nenhuma prova de que estamos acordados que não possa ser produzida num sonho. Esta é a premissa de muitos filmes de ficção científica, nomeadamente do Matrix. Outro dos problemas filosóficos equacionados no filme é o da relação entre a lucidez e a felicidade. Tendo em conta que passamos mais de um terço da nossa vida a dormir, se pudéssemos controlar os nossos sonhos, e tendo em conta o absoluto valor de verdade que lhes emprestamos quando os vivemos, que seria preferível? Estar acordado e sofrer ou sermos felizes a sonhar? Os sonhos não são normalmente sequenciais, como a vida o é. O adormecer e o acordar estão ligados por uma continuidade de sentido a que damos o nome de vida. Cada sonho, por sua vez, é um acontecimento fechado. E se não o fosse? Ao contrário do que acontece agora, os sonhos podiam ter o formato narrativo da vida. Poderia dar-se o caso de nos vermos confrontados com a escolha de Cypher, do filme supracitado? “Sabe, eu sei que este bife não existe. Eu sei que quando o ponho na boca, a Matrix está a dizer ao meu cérebro que ele é suculento e delicioso. Após nove anos, sabe o que é que percebi? A ignorância é uma bênção.” A maior parte de nós passa por tormentas na vida cuja resolução é improvável ou difícil. “Quem me dera dormir e acordar com tudo bem”. Já dissemos e/ou já ouvimos isso mais que uma vez. Alguns de nós não descartariam inclusive passar uma boa parte da vida numa simulação na qual pudéssemos ser tudo o que não fomos ou, pelo menos, felizes. Entre um estado de lucidez e um sonho, a diferença é unicamente o estatuto. No entanto, temos dificuldade em aceitar a possibilidade de estarmos equivocados quanto ao estatuto da nossa experiência. Até podemos escolher viver na mentira, desde que tal corresponda a uma decisão nossa e saibamos onde começa um estado e acaba outro. O que não conseguimos aparentemente tolerar é a possibilidade de estarmos na ilusão sem saber a que corresponde a realidade. O nosso ponto de vista está calibrado, nas palavras de um professor de ontologia que tive, na “precisão indespedível da verdade”. O estatuto da experiência vital não nos é acessório. Pelo contrário, este apego transcendental à verdade ocupa uma posição mais central e decisiva do que felicidade. Sucede é que na maior parte do tempo pensamos estar na posse de uma compreensão adequada do que se está a passar. Por isso nos parece que a felicidade é o ponto arquimédico sobre o qual assenta o edifício da existência. Querem uma prova? Experimentem acordar num quarto fechado, sem se lembrarem de como lá foram parar. Qual é a primeira pergunta que se imaginam fazer? A realidade é demasiado perseverante, demasiado ubíqua. Está por todo o lado. Há dias em que gostaríamos de lhe fechar a porta e a ela voltar remendados, refeitos, curados. Mas quando fechamos a porta, seja ela qual for, o que fica do lado de dentro não difere em nada daquilo que fica lá fora. Mesmo que diminuta, a realidade restante ainda nos consegue esmagar. Deveríamos saber como dormir mais e melhor. Como encadear os sonhos ao jeito de contas num fio. Ou como tornar cada recomeço “o dia inicial e limpo” da Sophia.
Hoje Macau China / ÁsiaTurismo | Airbnb cancela concurso para dormir na Grande Muralha [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]plataforma electrónica de arrendamento de casas Airbnb suspendeu um concurso que oferecia uma noite numa atalaia da Grande Muralha, o símbolo mais expressivo da China, devido às críticas dos internautas chineses, que temiam danos. Segundo a imprensa local, a empresa informou que não avançará com o seu plano original de oferecer a oito vencedores de um concurso uma noite numa das maiores maravilhas da arquitectura antiga, considerada património da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). O concurso, designado Noite na Grande Muralha, foi permitido pelas autoridades chinesas, assegura a Airbnb, mas suscitou críticas entre a opinião pública chinesa. “A Grande Muralha é património histórico sob protecção, como é possível que permitam a sua conversão para alojamento”, reagiu um internauta na rede social Weibo, equivalente ao Twitter na China. “Agora, até relíquias antigas podem ser alugadas para ganhar dinheiro”, questionou outro. O alojamento envolvia a conversão de uma atalaia da Grande Muralha, monumento com 2.600 anos, em dupla habitação, com cama, decoração e iluminação por velas, mas sem electricidade, ligação à internet, ar condicionado ou televisão. Não é proibido pernoitar na Grande Muralha, mas leis que visam a protecção e conservação do monumento, que se estende ao longo de 21.000 quilómetros, proíbem a construção de instalações que não sejam para a conservação deste
Hoje Macau China / ÁsiaTurismo | Concurso para dormir na Grande Muralha suscita críticas ao Airbnb [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]plataforma electrónica de aluguer de casas Airbnb lançou um concurso que oferece uma noite numa atalaia da Grande Muralha, o símbolo mais expressivo da China, suscitando críticas por parte dos internautas chineses, que temem danos. Oito viajantes terão a oportunidade de passar uma noite numa das maiores maravilhas da arquitectura antiga, considerada património da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), caso vença o concurso que a empresa lançou em 11 mercados, e que não inclui Portugal. O alojamento envolve a conversão de uma atalaia da Grande Muralha, monumento com 2600 anos, em dupla habitação, com cama, decoração e iluminação por velas, mas sem electricidade, ligação à internet, ar condicionado ou televisão. Por lei, não é proibido pernoitar na Grande Muralha, mas o Airbnb assegura que é a primeira vez que se faz algo deste género. No entanto, as leis que visam a protecção e conservação do monumento, que se estende ao longo de 21.000 quilómetros, proíbem a construção de instalações que não sejam para a conservação deste. “A Grande Muralha é património histórico sob protecção, como é possível que permitam a sua conversão para alojamento”, reagiu um internauta na rede social Weibo, equivalente ao Twitter na China. “Agora, até relíquias antigas podem ser alugadas para ganhar dinheiro”, questionou outro. O Airbnb reagiu, entretanto, afirmando que a protecção de relíquias históricas e culturais foi a “intenção original” daquele concurso, que pede aos utilizadores um breve ensaio sobre o motivo pelo qual é importante para eles derrubar as barreiras entre culturas. O prémio inclui ainda as viagens aéreas desde os países de origem até Pequim, os custos para obter o visto chinês ou alimentação.