Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasDo prazer (e) da ilusão E trocar a erudição pelo belo? É o que me pergunto ante alguma distância e secura árida de algum do discurso sobre o discurso. A crítica sobre a obra. O saber sobre a arte ou a poesia, que me faz sempre querer tapar os ouvidos e ver simplesmente. Ouvir. Fruir e mergulhar fundo na ilusão de vida que é o uso da linguagem. O mais sólido e vazio prazer da ilusão, como disse Giacomo Lombardi. Uma astronómica manobra de sobrevivência, dado que o belo nunca desilude. Já a razão é uma barca de derivas abstractas que levam a cenários longínquos e analíticos mas, malgrado a euforia do saber, distancia-se do sentir e do embalar da simples e delicada beleza que em si é simplesmente o que é, sem necessidade de explicação ou fundamentação. Mas como dizer que a beleza seja um malabarismo da nossa capacidade de ilusão sem reconhecer a lírica e lúdica apetência do hedonismo que nos salva de todo o resto, sem graça, sem emoção e sem sentido e nos mergulha na trémula e deslumbrada sensação de pura contemplação. Talvez esta seja a chave do precioso segredo da humildade. A capacidade de deslumbramento. Que nada cobra do universo e em vez disso se silencia atónito ante o ver e o admirar. Nem que seja por momentos. Ignorar o próprio ser por momentos, por momentos esquecer e render homenagem ao objecto admirado é como abrir as portas afanosamente aos anjos e que entrem que deslumbrem ou sirvam. Isso é lá com eles. Sem juízos e avaliações e pódios. Sem hierarquizar um momento puro e emocional de prazer ante a beleza de uma frase, escrita, pensada ou lida, de um gesto, de uma paisagem, de um olhar ou de uma vida, ou discorrer sobre ela de um ponto de vista crítico. Às vezes todas as ilusões de nitidez, não para com a vida, não para com nada que nos seja reflectido dos outros, mas com a simples realidade familiar com que nos deparamos em nós. Que pode, de um momento para o outro, tornar-se uma vasta poalha de intermitências indefinições e paradoxos. O querer e não querer e o querer não querer ou o querer querer. Tornando-nos irreconhecíveis aos outros, no indeterminado momento em que lhes parecera reconhecer-nos e logo desconhecer. Talvez haja que manter a ilusão. Um certo olhar. Mesmo quando o dia é uma correria mas de repente fica com uma textura fina de calma e eternidade. Como se tudo se silenciasse a fruir um momento. Poderia ser esse brilho ainda tímido de sol de primavera e vizinhança de fim de tarde. Ou pode não ser nada de especial, mas algo que simplesmente acontece. Está bem. Vieste então desinquietar-me e eu encontro uma pertinência difusa e quase impalpável de tão subtil nas tuas razões que não sei. Sei o efeito. Ou antes a forma, depois, somente depois, o efeito. Mas é o efeito em mim. Esse pavor de não entender, que me persegue como monstro papão da infância já com a insónia pontual que haveria, depois, de se tornar personagem de casa. Sem convite, mas amiga estranha e a quem se instituiu o direito de vir depois, mesmo sem chamamento. Lá longe era o vulto do roupão pendurado atrás da porta, um ser de contornos sombrios a apelar um olhar incauto de um sono que de súbito não vinha. Os murmúrios da casa em respiração que dizem natural e saudável. E que se não existisse seria como viver uma casa morta de si. Mas é estranho. A casa range. É a verdade que me incomoda os passos que sempre quis silenciosos. O universo já é ruidoso por demais. Depois penso como ser feliz. O futuro a deus pertence, diz-se, mesmo que não tocados de uma fé que não temos mas no assumir simples de que é algo susceptível de tantas variáveis que não podemos controlar, que melhor é não termos essa ilusão de o saber. Mas como sobreviver até lá, é a tarefa humana que me ocupa todos os dias. A de não perder paisagens imaginadas, também. Como não nos deixarmos tocar de melancolia e pessimismo sem ignorar a realidade humana e a sua inalcançável mas presente e férrea subjectividade. Plena de oxidações corrosivas e dolorosas de variações cromáticas. Mas adaptável, flexível e sempre sujeita a viajar de um extremo a outro. Deixarmo-nos abundantemente embriagar pelo possível. Pela beleza do possível ou simplesmente pelo belo existente nas coisas. As coisas, um gesto bom, uma carícia sincera. Um elogio à vida como ela é ou como ela se pode construir. Ver. E não como deveria ser e se oferecer. Uma certa forma de ilusão. Como a arte. O copo meio cheio, afinal.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSobre o prazer e as suas dificuldades [dropcap]O[/dropcap] prazer – e vamos assumir o conceito de forma mais geral, onde cabe o sexo e muitas outras actividades – não é fácil de ser conquistado pelas mais variadas razões. Razões pragmáticas a conceptuais fazem parte do debate por quem luta pelo prazer. Inclusive, até por quem não assume posição nenhuma mas, com o seu silêncio, contribui para a complexidade do prazer na contemporaneidade. Passo a explicar como é que o prazer é afectado por três níveis de análise, para simplificar. Corpo. Muitas vezes olham-se para as barreiras mais palpáveis ao prazer procurando o nível de comprometimento do corpo. Existem várias patologias que comprometem o prazer, podem ser problemas anatómicos e até neurológicos. Só que utilizar esta classificação deixa o prazer abandonado num estado de incompreensão, onde é definido pela capacidade sensorial de um corpo que reage e espera por reagir, única e simplesmente. Mente. Depois vem uma visão mais psicológica do prazer, aquele em que o prazer não depende exclusivamente de um estado de corpo, mas de uma disponibilidade mental, cognitiva e emocional, para lhe dar forma. Falando assim parece vago, eu sei. Mas todos os estudos sobre o orgasmo, apontam para uma visão conjunta entre corpo e mente. Os estudos sobre disfunções sexuais também mostram a importância da terapia, o trabalho de desenvolvimento pessoal, em resolvê-los. Que estado mental é, então, desejado? É um estado de aceitação: do corpo que se tem, dos medos que se têm, das ansiedades, receios, desejos e prazeres. Mantenho a definição vaga para não cair em fórmulas rígidas, e mantendo a diversidade de escolas psicoterapêuticas e do entendimento de mente, o prazer depende de um corpo (que não tem que ser perfeito), e da aceitação e desenvolvimento de quem somos, para quê e como. Social. A seguir vem a visão social do prazer, que, como uma matryoshka, a boneca russa, se interpenetra no entendimento do prazer do corpo e da mente. Claro que somos bombardeados por imagens e representações sobre o que é o prazer, mas também somos afectados de forma mais profunda do que isso. O “social” contribui para a forma como podemos ou não assumir e aceitar o nosso corpo e a nossa individualidade dentro dos sistemas de privilégio e opressão vigentes. A interconexão do que se passa cá dentro com o que se passa lá fora não pode nunca ser negligenciada. Quem é que é merecedor de prazer e porquê? Só com esta interrogação é que se pode explorar de que forma é que as estruturas sociais moldam o acesso ao prazer e as formas como ele pode ser vivido. Estes três níveis, e a forma como estão ligados uns aos outros, reforça a necessidade de uma visão integrada (interdisciplinar!) do prazer. Onde o corpo, a mente e a sociedade estão em movimentos perpétuos de ligação. Esta conceptualização também mostra que a luta pelo prazer tem que ser feita por várias frentes. Perceber o nosso estado do corpo é importante, ter disponibilidade para estar em contacto com as nossas dificuldades, fragilidades e recursos é importante, estar pronto para lutar contra a injustiça social também é importante. Só assim é que poderemos libertarmo-nos do velho mito de que o prazer é de alguma forma pecaminoso. Pelo contrário, aceitar que podemos ter prazer é talvez a pré-condição para o bem-estar, não só com o sexo, mas nos pequenos momentos do dia-a-dia. Perceber o prazer e aceitá-lo, talvez seja a peça do puzzle que nos falta para outro tipo de consciência global. E para os que responderão com uma definição de prazer egoísta, tenho a acrescentar que o verdadeiro prazer resulta de uma dinâmica complexa, nada solitária, onde a responsabilidade é partilhada entre o próprio e os outros.