Pequim, 6 de Março de 1978

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]erminou ontem a 5ª. Conferência Consultiva do Povo Chinês que aprovou importantes documentos e elegeu alguns dos dirigentes deste país para os próximos anos. Durante a realização da Conferência, viveram-se dias festivos.
Hoje houve manifestações e eu andei saltitando no meio de um milhão de chineses que animaram e coloriram a manhã fresca de Março, em Pequim.
Às sete e meia da manhã, no percurso de autocarro do Hotel da Amizade para as Edições em Línguas Estrangeiras, já havia bandeiras vermelhas, amarelas, azuis, verdes penduradas um pouco por toda a parte. E víamos passar os primeiros grupos de manifestantes a caminho da Praça Tian’anmen instalados na caixa de camionetas, com os taipais decorados com flores de papel e retratos de Mao e do seu sucessor Hua Guofeng. Atrás no camião cabia ainda uma espécie de banda, gongos, pratos pequenos e grandes, tambores, toda a artilharia manejada pelas mãos de incansáveis municiadores de pancadas, a disparar num barulho ritmado, alegre e vivo.
Nas Edições, os camaradas de trabalho aguardavam, prontos para arrancar. Íamos também com destino a Tian’anmen. Alguns, pouquíssimos estrangeiros encorpar-se-iam no cortejo, desfilariam com os chineses. Eu era um deles.
Começámos a andar eram oito e um quarto da manhã, desde Er Li Gou até Tian’anmen, um sete quilómetros bem medidos. A abrir o nosso grupo, uma camioneta engalanada também com flores de papel e atrás, os gongos, pratos e tambores. Depois a grande bandeirola com o nome da nossa entidade Wai Wen Shudian外文书店, ou seja Edições e Livros em Línguas Estrangeiras, e aos ombros do nosso pessoal uma espécie de andor com os retratos padrão de Mao Zedong e Hua Guofeng. Muitas bandeiras vermelhas, bandeiras da República Popular da China, mais bandeiras de várias cores desfraldadas ao vento colorindo e alegrando o cortejo.
O nosso grupo era constituído por umas trezentas pessoas. De início, a marcha foi fácil, depois começámos a cruzar com outros grupos, maiores, com o mesmo destino, a praça Tian’anmen. Havia também grupos pequenos que desfilavam apenas em volta do quarteirão ou do bairro de onde tinham saído. Os ranchos de crianças das escolas primárias e secundárias, muitas vezes encabeçados por pequenas fanfarras, cruzavam-se connosco ou seguiam paralelos a nós pela rua larga, muito organizados, agitando as suas bandeirolas, saudando os manifestantes. Depois regressavam às suas escolas para um dia normal de trabalho e estudo.
Às nove da manhã chegamos a Chang’an Dajie, a grande avenida que atravessa Pequim de ponta a ponta, num eixo leste/oeste, uma recta que se estende quase por quarenta quilómetros, apenas hoje fechada ao trânsito. Estamos ainda longe de Tian’anmen mas um mar de gente e bandeiras desagua constantemente na avenida. Há foguetes e bombas ou panchões a estralejar por tudo quanto é sítio e lado. Os chineses são loucos por fogo de artificio e qualquer comemoração festiva tem de meter os estrondos ensurdecedores dos panchões pendurados num pau que vão rebentando pelo fio abaixo.
Chang’an Dajie é uma alegria de ver e sentir. A marcha é lenta, com sucessivas e longas paragens. Durante o tempo de espera, os chineses falam uns com os outros, aproveitam o tempo para pôr em ordem não sei bem que conversas. O meu pessoal , os colegas de trabalho também me fazem perguntas. Como são as manifestações em Portugal, há bandeiras e petardos, e tambores e música?
O francês Jean Roussel que está em Pequim há pouco tempo e trabalha na revista Littérature Chinoise, diz-me apontando para as sapatilhas de lona. “ Esta manhã, não me lembrei que Pequim não é Paris mas, como sabia que vinha para a ‘manif’, equipei-me a rigor, tal e qual como faço em França, preparado para correr a bom correr quando os ‘flics’, os polícias, começassem a bater…”
A avenida Chang’an, larga de quase cem metros, está pejada de gente. Ultrapassamos e somos ultrapassados por grupos de milhares e milhares de chineses que caminham na mesma direcção que nós. Na faixa oposta da avenida há outros tantos grupos que já regressam de Tian’anmen e se cruzam connosco. Uma barulheira infernal. Nos ares, o ribombar de tambores e gongos, o estrondear de panchões e foguetes, tudo a esvoaçar numa animação contagiante.

Dois enormes dragões de papel empunhados por dez homens cada um volteiam no espaço abrindo o cortejo do grupo compacto de manifestantes da grande Siderurgia de Pequim, milhares de operários em fatos de trabalho. Mais atrás vêm estudantes do Instituto das Minorias Nacionais com os seus trajes típicos garridos e meninas bonitas dançando e agitando flores.
Descubro na berma da avenida uma avó assistindo ao desfile com dois netinhos gémeos, vestidos de amarelo, de pé, dentro de um carrinho de bambu. Fui fotografá-los e, ao focar a câmara, já tenho outra velhota a meter-me um novo bebé à frente para eu retratar.
Aproximamo-nos de Tian’anmen, o espectáculo é total. Faço fotos atrás de fotos. Subo ao palanque vazio onde costumam estar os polícias sinaleiros e tenho uma visão de cima, de conjunto da multidão espraiando-se pela enorme avenida. Somos agora três grupos a caminhar na mesma direcção. À direita, militares da Força Aérea encabeçados por alguns velhos generais, no centro, o nosso grupo das Edições, à esquerda outro grupo de uma fábrica quase totalmente constituído por mulheres, operárias em traje domingueiro, com blusas coloridas. Encontramos estudantes das universidades de Beida e Qinghua, da Faculdade de Línguas Estrangeiras. Nas camionetas, alguns estudantes africanos fazem o gosto ao dedo e rufam impiedosamente nos tambores. O batuque está-lhes na massa do sangue, energia não falta a estes rapazes negros que estudam em Pequim.
Após quatro horas de caminhada, Tian’anmen está à vista. Fico um pouco surpreendido com a aparente desorganização que envolve estas centenas de milhares de chineses. Saem aprumados e juntos das suas entidades de trabalho mas depois encontram-se com mais e mais grupos, misturam-se, rompem a ligação, perdem-se, retomam em pequenas corridas o grupo a que pertencem.
Tian’anmem está bonita, balões vermelhos, bandeiras rubras e amarelas esvoaçam ao vento. Há festa no coração de Pequim.
Nesta China em mudança, estou a viver o início de novos tempos. Depois de gélidos invernos, cheira a Primavera.

12 Set 2016

Diário (secreto) de Pequim (1977/1983)

Ano 1978

Pequim, 8 de Janeiro de 1978

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esta vez calhou a visita à Universidade de Beida, a mais famosa de toda a China. O nome completo é Beijing Daxue北京大学, o que significa Universidade de Pequim, fundada em 1898. Este vasto império, do tamanho da Europa, com 900 milhões de habitantes, conta com 500.000 estudantes universitários e 380 universidades.
A partir do nosso Hotel da Amizade chega-se com facilidade a Beida, somos quase vizinhos, estamos todos no grande bairro de Haidian, aqui no noroeste de Pequim.
Chegados ao grande campus universitário, somos recebidos pelo prof. Wang Dongxiao que, numa sala de aula, nos vai fazer o relatório introdutório sobre Beida.
Existem aqui vinte faculdades e oitenta e três cursos diferentes, Humanidades, Ciências, Direito, etc., dois mil e setecentos professores e apenas sete mil alunos, cento e sessenta dos quais são estrangeiros. O reduzido número de professores e alunos tem a ver ainda com as sequelas da Revolução Cultural quando esta universidade esteve praticamente encerrada durante anos devido à linha esquerdista que quase ia destruindo o ensino universitário em toda a China. No próximo ano esperam admitir mais 1.500 alunos e, gradualmente, Beida voltará a ser a maior e melhor universidade chinesa.
Porque, segundo me dizem, foi dura a sabotagem do quotidiano universitário levado a cabo pelos apaniguados do “bando dos quatro”. Perseguiram-se professores, até à morte, fecharam-se faculdades, destruíram-se edifícios, enfim uma tenebrosa selvajaria comunista em nome do presidente Mao Zedong, para se acabar com “o ensino burguês” e depois se criar coisa nenhuma. Hoje procura-se reformular tudo, o conhecimento dos professores, a admissão dos alunos, os materiais de estudo e trabalho. Desde a década de sessenta que não há promoções a professores catedráticos. A Universidade é gerida por um comité revolucionário sob a direcção do Partido, conjunto de professores, estudantes e empregados. A maioria dos professores graduaram-se depois de 1949, a data de tomada do poder pelo Partido Comunista. 35% dos professores são mulheres e 40% dos alunos são do sexo feminino. Entram na Universidade entre os 19 e os 25 anos, após selecção e exames. Podem ser operários desde que mostrem vastos conhecimentos e capacidades intelectuais. O objectivo é depois utilizar estas pessoas como professores em pequenas universidades geridas por camponeses e operários, agregadas a comunas agrícolas ou a grandes fábricas.
Estão interessadíssimos no intercâmbio com universidades estrangeiras e em enviar muitos dos seus melhores alunos para completar estudos nos Estados Unidos da América, Canadá, Austrália. De resto a biblioteca desta Universidade de Beida conta com três milhões de livros, 800 mil dos quais em línguas estrangeiras.
É vasto o campus universitário, com as residências para os alunos junto a um grande lago circundado por chorões e um pagode ao fundo, não muito antigo, no interior do qual foi construído um depósito de água.
A Universidade de Beida parece-me uma escola em ebulição lenta, rumo ao fervilhar do futuro.

Pequim, 20 de Janeiro de 1978

Reunião dos quatro portugueses da célula do PCP (m-l) em Pequim.
Eu digo:
“Somos todos diferentes, eu gosto mais do isolamento, dos meus livros, de ouvir o silêncio, de escrever, da minha música na paz da minha casa. O meu tipo de vida terá necessariamente de ser diferente do vosso. Gostava de aproveitar estes quatro anos para aprender tudo o que puder sobre a China, gostava que isso fosse possível convosco. É importante que me compreendam e me aceitem como sou”.

Pequim, 7 de Fevereiro de 1978

Festa da Primavera, o Ano Novo Chinês.
O tempo ainda está gélido em Pequim mas, segundo o calendário sínico, começou hoje a Primavera e há que festejar. A Festa é uma espécie de Natal e Carnaval, ao mesmo tempo. As famílias reúnem-se, comem coisas boas, banqueteiam-se excelentemente pelo menos uma vez por ano, as crianças lançam uma espécie de bombinhas carnavalescas e fogo de artifício.
Uns tantos chineses que trabalham connosco vêm cá a casa, cumprimentar, saudar, desejar felicidades para o Novo Ano, comer uns petiscos e beber uns copos. Correspondo com o que tenho, e tenho sempre mais do que estes meus camaradas chineses, ganho 500 yuans por mês, contra os 40 ou 60 yuans que eles recebem mensalmente. E o patrão é o mesmo, as Edições de Pequim. Sou um privilegiado, um estranho nestas festividades e nesta China diferente do meu alicerce cultural e do mundo de onde provenho.

Pequim, 21 de Fevereiro de 1978

Setecentos e cinquenta milhões de camponeses na China, quantos são os analfabetos? Os que sabem ler, gostam de ler o quê?
Questiono os meus companheiros de trabalho.
Falam-me em contadores de histórias que, na tradição da velha China, andam de aldeia em aldeia, reúnem assembleias de gente e as entretêm com narrações vivas de contos tradicionais e com a descrição dos feitos heróicos acontecidos em velhos e novos tempos.
Os que sabem mesmo ler contam com livros ilustrados, tipo banda desenhada com historietas exaltantes sobre a revolução e o socialismo. Outros lerão romances, mas o nível cultural dos camponeses é baixo. A herança recebida pelos comunistas em 1949 no que à educação diz respeito era pior do que má. Nesse ano existiam 90% de analfabetos no país. Em 1961 a situação havia melhorado muito, segundo dados oficiais, o analfabetismo atingia 66% dos habitantes do campo e 22% da população das cidades.
Podemos talvez assim compreender o voluntarismo de Mao Zedong e do Partido Comunista que a partir de 1966 lançou a Revolução Cultural, também como uma tentativa de elevar o nível educacional do povo chinês, dando ordens para a deslocação das cidades para o campo de milhões de jovens instruídos (ou tidos como tal!) O objectivo era viverem junto dos camponeses, ensinarem e aprenderem com eles, e dar testemunho da sua experiência. Apareceram escritores como Liu Xinwu e Zhao Shuli que se especializaram no conto e na novela sobre a vida no seio da gente do campo. Numa linguagem terra a terra têm tentado retratar as alegrias, tristezas e extremas dificuldades dos quotidianos na China socialista. Um destes homens, de nome Liu Ching viveu durante catorze anos numa aldeia na província de Shaanxi e disse: “Uma árvore lança raízes, cresce na terra, o mesmo deve fazer o escritor em relação ao povo.”
Onde começa a literatura e depois descamba para a propaganda política? Até que ponto são sinceros estes autores que sabem melhor do que ninguém como tem sido dolorosa a sua inserção no meio das pessoas do campo, frequentemente rejeitados pelos próprios camponeses que, sabemos agora, olhavam tantas vezes para os jovens das cidades como alguém que nada produzia e era mais uma boca para sustentar.
“O pão é mais importante do que a poesia” disse Jean Paul Sartre. Pois é, pão e poesia, arroz e revolução.

5 Set 2016