Deus ex machina

2 – Rezar a deus em tempos de GPT

Não tinha chegado à ideia de Deus, ou da IA, na crónica anterior. Nem vou chegar. Espreito, talvez, emboscada por debaixo de uma intuição, esse cruzamento de caminhos virtuais no ponto inexacto da encruzilhada em que imaginei que uma coisa e outra se encontravam. A essa ideia de Deus, quero dizer, cruzada com a ideia de Natureza. E do que é natural imaginar. E a IA, a derradeira utopia. Imaginada, passará a imaginar por nós.

Penso na expressão de Francisco d’Holanda: “Do tirar polo natural”, centrar a aprendizagem do ver o mundo, na experiência directa do olhar e do sujeito contemplado – é assim que caracteriza “o natural” – e não no que já foi visto, registado e processado por algo ou alguém. Tão actual se pensarmos que hoje cada vez mais se substitui essa experiência directa pela busca virtual. E depois questiono sobre o grau de naturalidade da inteligência, do pensamento e de qualquer outro produto do cérebro. As alucinações, sonhos, e as outras, criadas ou corrigidas com medicamentos ou drogas.

E Deus, criado à medida dos humanos. Que, de acordo com Zizec, retirou Cristo do convívio (natural?) com os mortais (como aquele feiticeiro mau, de uma história de encantar, retirou o mar durante a noite, enrolando-o como a um tapete). Por ineficácia. Demasiado humano para os humanos, sem o que os transcende e não identificam num igual. Etéreo, mantém a expectativa da salvação.

Há por aqui uma humanidade exausta a trabalhar para se tornar inútil no que a distingue. Na necessidade de uma ideia de Deus, inventa-a e depois uma inteligência à sua semelhança, mas maior, megalomania de poder e domínio do saber, mas que pela rapidez – que não vai ser possível acompanhar – por lhe ser possível criar novas ideias e por poder tomar decisões, gerará seguramente uma independência relativamente aos humanos, sobrenatural. Como um novo deus, criado, com infinitas possibilidades de manipular, intervir e castrar. Seduzir e substituir.

Rezar. Baixinho ou inaudivelmente, na obscuridade magica de uma capela, ou por dentro da cabeça. Preces dirigidas ao alto, nas nossas melhores palavras. Sem reparar, nas aflições, se as concordâncias estão impecáveis, a ortografia. Mas reza-se, hoje, em redes virtuais, colocando ao mesmo nível conhecidos e desconhecidos e Deus. Um atalho novo. Mas nunca encontramos “essa” página. Por escrito, sobram visíveis as imperfeições do humano quando se expressa. Como será apetecível, embarcar sem retorno nesta modernidade tecnológica e mandar produzir preces, por medida. Como as cartas escritas por encomenda, daquelas de antigamente, quando se escreviam cartas e cartas de amor. E alguém generoso ou por dinheiro as alindava, para as enviar quem não as sabia escrever. Ditadas, explicadas no sentido ou confiadas cegamente à imaginação de quem escrevia. Um pequeno escriba de bairro, uma vizinha, uma neta miúda. Também o fiz, há muito tempo para alguém que não tinha aprendido a escrever e a ler. Ela ditava e eu estendia um pouco o assunto. Era a voz dela, corrigida na sintaxe, mas nunca no sentido.

Já não se usam cartas. Aqueles textos longos, suados e esperados, descritivos. E não é porque, tendo meios mais imediatos, não vá a alma esmorecer na espera. É porque se diz menos, muito menos, ou nada.

A pensar que, assim como se pode recorrer ao chatGPT para uma prece, um artigo de opinião ou um poema, também podemos recorrer às virtualidades chatbot para perguntar e obter respostas. Deus já disse o que tinha a dizer por interpostas pessoas que estão nas bases de dados e assim dispõe a IA de tudo o que é necessário para nos colocar em diálogo com ele. Com a sua voz, que nunca mais ninguém ouviu.

Mas se é a mente que nos substitui o voo das asas que nem temos e precisa de alimento e ginástica, com o filtro sensível que opera sínteses a partir de memórias – mas não em gigabytes – que atrofia, nos espera, para além da preguiça da memória que progressivamente cultivamos menos, apoiados em mecanismos de busca, ou em aplicações de orientação espacial que nos indicam o caminho passo a passo sem ver no todo um mapa. Esquecendo o encantamento de saber o mapa de uma cidade conhecida ou desconhecida. Não porque não esteja lá, mas porque nos passou a interessar somente a pedra mais imediata do caminho. É curioso, no fundo são escolhas que fazemos. Seguir às cegas. E não quem ainda nos explique um caminho. Dizem-nos: liga o gps. Como se tornará progressivamente inútil, a mente, se uma aplicação de IA produz discursos articulados, detalhados e criativos, ou imagens, se pode substituir, com qualidade, as lacunas de saber e saber fazer, de um utilizador. Que opte por usá-la como ferramenta, mas imperceptivelmente se faz substituir por ela. Quanto de desonestidade está ao alcance da vontade de sermos ou não sermos honestos.

Deixar de memorizar caminhos, números, nomes, datas, factos e acontecimentos. Poderia ter sido bom, se pensássemos que o espaço ocupado por essas informações, ficando disponível, nos libertaria para outras operações formais, outras realizações, mas não parece que tenhamos aplicado essa disponibilidade extra de forma significativa. E quando também já não precisamos de articular uma opinião, uma resposta e isso é válido para namoros, testes e teses, e a tentação é enorme, á agilidade do cérebro e à sua originalidade individual, está reservado ser mais pobre.

Neste hipotecar da dinâmica psíquica a uma aplicação artificial a que se chama inteligência, num tempo que cada vez mais nos divide de nós próprios, na ilusão de que podemos escolher, imagino, cada vez mais, um nicho defensivo. Para reagir à alienação. Para que servirá esta réstia de humanidade no futuro, quando tiver preguiça de pensar por si, de falar por si e perder o que tem de distinto, numa miríade de aplicações. A estas só lhes faltará viver por nós. Mas vai parecer que não.

Humanidade diletante a inventar tiros no pé, com tantos problemas de fundo a solucionar. Quando cada novo avanço, científico ou tecnológico, tem em si possibilidades de ser mal utilizado e prejudicial, talvez se verifique ou o princípio de Peter ou a lei de Murphy. Ou ambos. Fico indecisa. A lembrar o velho do Restelo. Mas, na verdade, sou como o arqueiro de Khalil Gibran: “assim como ele ama a flecha que voa, ama também o arco que permanece estável.”. Somente, sem esperança nem alegria, acabo por preferir o arco, porque a flecha é a que fere o pé.

Ou, como disse Herberto Helder no seu “: Lugar último”:

“Contra mim, contra minha divagação.

Penso: a flecha ama a onça.

A morte ama o que morre. “

Ama?

Maria e Maria Madalena foram ungir o corpo com os óleos da intimidade. Foram. Mas sobre a pedra, nada. Do corpo, só pedra em vez de coração. Depois disso, roldanas cénicas a descer os deuses que os deuses deixam, como penas deixadas para trás.

Ou, simplesmente fazer download.

25 Ago 2023

Deus ex machina

1 – Natural e imperfeito

(Ir à lua e voltar. Amarar. A Inteligência Artificial, em rota de colisão com a humanidade como ainda a conhecemos. Conhecíamos. “Ground control to Major Tom”: Volta.)

Tenho o Cristo da bisavó Etelvina no congelador. Depois eu explico.

O ser humano. na sua maravilhosa, tanto quanto exasperante, imperfeição. Que será sempre, mais ainda do que preferível, digna de ser reequacionada como primordial e essencial. Essa natureza, que sofre o sério risco de ser preterida pela sua filha mais perversa, a IA. Inteligência artificial. Falando de imperfeição, penso como se leva uma vida a amadurecer uma certa tolerância para com a imperfeição do outro. Mas também, se houver sabedoria, com a nossa. Essa que nos assinala como humanos cheios dos desafios de um cérebro atormentado pelos sentimentos e emoções, que geram contradições, fraquezas e imperfeições que queremos burilar, ou de que nem temos uma percepção nítida.

O suor, que é humano.

O suor, o seu odor e o da adrenalina, do medo, coisas humanas reprimidas e disfarçadas por debaixo de perfume, óleos e antitranspirantes. A imperfeição embaraçosa do humano demasiado humano.

O que nos distingue, pois, é na verdade aquilo que conseguimos tolerar ou passar a tolerar e odiar e continuar a odiar. Detestar, digo. Um sistema de valores que se perfila em rede por detrás de tudo e que reflecte as nossas decisões, senão todas, porque somos imperfeitos, pelo menos a maioria delas. E é o que nos faz diferentes. Uns dos outros. O que aceitamos mesmo sem tolerar ou gostar, o que admiramos e acalentamos, aquilo que é alvo da nossa rejeição, aquilo que permitimos que nos mude e que deixamos mudar em nós. Um sistema de valores que tem uma grande componente emocional a temperar aquela outra, racional, que é ética ou moral. E há o olhar dos outros.

Mas voltando ao início, penso como somos, dos seres naturais, o mais artificial desde que abrimos os olhos para o mundo. Teatrais, especulativos e manipuladores, em diálogo com outros seres, tão corruptos como nós, que se desvanecem por um sorriso, mais tarde por um elogio, um favor. Que estão sempre em diálogo proveitoso ou não, redefinindo regras à medida que nos tornamos gente, interagimos, demolimos convicções. Reformulamos até, parte daqueles que nos antecederam e deixamo-nos imbuir da moeda afectiva que gera memórias, trocas, dependências e perdas.

Ganharíamos muito na observação de determinadas estruturas sociais entre os animais. A noção transmitida nos genes que gere cada atitude. A obediência cega ao bem comum para o qual uma comunidade trabalha em conjunto, sem rebelião nas coisas mais essenciais. mas somente me surge este pensamento num momento em que corre o vento de uma catástrofe em que mergulharemos todos sem excepção, e que finalmente, aniquilando o que temos batalhado cegamente por adquirir usurpar ou diminuir, no nosso pior ângulo, um poder gerado na ânsia por este ou por uma dimensão económica em crescendo. E, no final, para ricos e pobres de qualquer género, nem credos nem fasquias sociais sobreviverão à simples destruição do que nos é comum e que estamos a destruir avidamente, o ecossistema de que dependemos sem outras demonstrações de status que não a da simples viabilidade. Terra.

Calcamos firmemente os pés a produzir pegada. Um dia, a nossa memória sem casa, dirá: estivemos aqui. Que é como quem diz que é possível haver sequer memória, quando das pegadas se perder o rasto.

Mas talvez não seja. Temo que nos estejamos a extinguir na nossa cega noção do imediato. E assim, pergunto que sentido faz cada pequena batalha que travamos por cada objectivo afinal insignificante…

Ficou por chegar a ideia de Deus, tal como a da Inteligência artificial. Mas, parte de uma tetralogia ou talvez pentalogia, esta crónica, continua…

28 Jul 2023

Deus Ex-Machina

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]indo o Ano, recapitulamo-lo. Ano este que foi ateado pelas penas flamejantes do Galo de Fogo que a todos não só aqueceu como abrasou, carbonizou, fazendo jus à labareda. Em todos os palcos lhe sentimos o garbo e não raras vezes a jocosa actividade de manobras ameaçadoras, fustigada por lutas de poder entre dois governantes mundiais que insistem em fulminar o mundo na sua “máquina- brinquedo” de mísseis e nuclear. Nas cinzas do Ano Findo contamos agora com alguma sagacidade de pensamento, lugares seguros que sobram para a razão. Nem sempre somos galvanizados.

Camões já nos tinha deixado «A Máquina do Mundo» e agora ela pode ser de novo a grande «Máquina do Mundo Reinventada», o mecanismo impresso numa Esfera Armilar que nos indaga ainda e nos incita ao prazer de a visitar. Camões não perfilava uma concepção mecanicista do mundo, do cosmos. Toda a sua epopeia está repleta de animismo que assenta nos deuses como força interpretativa e se coloca na esfera do Olimpo, uma ideia Renascentista do universo como ser vivo e que está presente também nas epopeias gregas. Ora a descrição desta máquina pensante aponta para o plano da ciência e da inteligência tecnológica não deixando por isso de ser um elo visionário que a sua maravilhosa capacidade enquanto grande poeta lhe dava permissão de ver, imprimindo quase uma tónica de contradição a toda a narrativa. Vejamos então as estrofes 78 e 80 (canto X) do poema:

Qual a matéria seja não se enxerga/ mas enxerga-se bem que está composto/ de vários orbes que a divina verga/ compôs/ e um centro a todos só tem posto/volvendo ora se abaixa, ora se erga/……-Vês aqui a grande máquina do mundo/ etérea e elementar, que fabricada/ assim foi do saber alto e profundo/ que é sem princípio e meta limitada.

Aqui, na grande «Máquina do Mundo» não estamos estritamente num código Ptolemaico, mas sim muito mais perto da visão de Ezequiel com os querubins das quatro rodas que influenciou o romance de Raymond Abellio «Os olhos de Ezequiel» e ele comenta: o Espírito constrói e destrói, os olhos de Ezequiel são habitados pela luz e perseguidos pelas sombras.

Só que na máquina camoniana a ordem e o movimento em vez de se oporem, conjugam-se, dando uma grande harmonia espacial que a globalização presente não tem, não passando por isso de um trenó ou mesmo uma carroça que produz aparentemente efeitos duplos mas está assente numa infindável monotonia de igualização do espaço. O mito reconciliador desta Máquina não tem nada a ver com a massificação dos mecanismos, talvez estejamos num estado de ascese da matéria e que os materiais se iluminem numa luz não gerada por combustão estando finalmente na presença de um Deus ex machina.

Nós que no ano transacto atravessámos as fogueiras, tivemos, alguns, resoluções que em muitos casos se nos podem afigurar como acções heróicas e algumas vezes quase sentimos a presença de uma intervenção inesperada que fez descer à cena um qualquer mecanismo: escutámos o primeiro robot e vimos uma realidade para a qual estamos ainda toldados – o calor toldou-nos o entendimento – presos andamos a um mecanismo chamado Geringonça, cujas visões não rasam nenhuma destas esferas e que pela própria constituição torpe dela nos abeiramos à procura de milagres ou de uma outra matéria rarefeita que não engloba tais poderes.

O que está configurado nestas duras ferramentas de Vulcano não dá nem para passar a primeira prova de um tempo novo que nos indicaram. Com a usurpação e a necessidade construímos uma gigante Roda Paleolítica cujo resultado testámos desde a condição sem nunca nos abeirarmos da frase derradeira de Goethe «o quê? bebo a luz?». Bebemos vinhos e água – pouca : a seca arrasa e promete calcinar os solos. Há sem dúvida uma plataforma artificial que luta contra o tempo porque neste caminho serão tão artificias os organismos atávicos como estes já mencionados nos parecem.

Situados no limiar da modernidade os grandes poetas se encontram, talvez a muito espaço luz da sua filiação temporal, e voltando às rodas: as rodas avançam e recuam, quatro Querubins fazem mover quatro rodas: Quando eles paravam, elas paravam. Quando eles se elevavam, elas elevavam-se juntamente com eles. A Máquina estava unida a um propósito. O que me lembra um poema de Elliot: no ponto imóvel do mundo que gira/ nem carne nem sem carne/ nem de nem para/ no ponto imóvel, lá está a dança/ mas nem parada nem em movimento/.

Findo o acto o pano cai, entramos em mais um Ano Novo sem percepcionarmos o labor que foi preciso para que raras vezes no vasto mundo aconteça nascer um poeta. Sim, será sempre aquela “máquina” de efeitos que nos colocam as Naves por onde iremos passar. Alguns. Ninguém entra nas naves a haver sem calcular tamanhos dons.

Um Bom Ano.

29 Dez 2017