Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasDeixem-me vos levar pelas mãos até ao sítio das perguntas [dropcap]T[/dropcap]omo Venlafaxina LP 150mg há cerca de 20 anos. À altura, antes dos genéricos, o nome comercial era Effexor XR e uma embalagem de 30 comprimidos custava mais ou menos 50 euros. Uma pequena fortuna mensal, sobretudo para um estudante cronicamente desprovido de cheta. Antes da Venlafaxina tomei outros medicamentos antidepressivos – moléculas mais rudimentares – e até um pertencente à famigerada classe dos inibidores da monoamina oxidase, ou IMAO, responsáveis por tantos efeitos secundários e interacções medicamentosas e alimentares que tomá-los comportava um risco quase tão elevado como não o fazer, sobretudo nos primeiros dias. Não tendo nunca feito alarido do meu regime químico, nunca fiz questão de o esconder. Não tenho vergonha de depender de comprimidos para ter uma vida minimamente normal. Às vezes algumas pessoas que se tornam mais próximas perguntam-me: “já experimentaste parar de tomar?”, ao que eu respondo afirmativamente. “E o que é que acontece?” Acontece a merda inominável de cada posição do plano existencial valer exactamente o mesmo que qualquer outra. É uma coisa pela qual a maior parte da população nunca passou, felizmente. No reverso dessa bênção reside a desfortuna de sermos portadores de uma experiência incomunicável, mediante a qual os outros nos olham com o desdém de nos acharem, no mínimo, frágeis e, no limite, mimados. Como vos fazer perceber a todos que uma depressão não é (apenas) uma tristeza tão profunda como a fossa das Marianas mas também (e sobretudo) um estado no qual todas as possibilidades dispostas no xadrez da existência têm valor residual e equivalente? Comer é igual ao litro. Sair à noite é igual ao litro. Trabalhar é igual ao litro. Amar é igual ao litro. A escolha entre infinitos zeros é ilógica. E perdemos a capacidade de escolher, de facto – fazemos quase tudo por obrigação – mas não perdemos a lucidez de nos vermos a nós próprios acantonados num deserto de sombras. Acresce a este inferno o peso de verificar que para os outros, nada mudou. E isto consigo exemplificar-vos. É o que acontece num luto: o mundo, que devia parar em solidariedade para com o enlutado, continua como se nada fosse. Talvez o luto seja a melhor imagem de que disponho para conceber o que pode ser uma depressão, embora no luto exista o conforto – que não é de somenos – de existir um motivo para o baixio sem fim. E a depressão é só uma pequena fatia do bolo da saúde mental. Temos ainda todas as esquizofrenias, todos os distúrbios obsessivo-compulsivos, todos os desvios da personalidade, os distúrbios alimentares, as manias, o autismo e o seu guarda-chuva generoso de manifestações, as deficiências cognitivas e o resto do DSM-V que me baldo de sintetizar. São muitas pessoas, demasiadas pessoas que, além de se encontrarem numa situação de carência e desfavorecimento, ainda têm de se justificar perante os outros como se os seus comportamentos fossem resultado de caprichos evitáveis e como se os medicamentos acabassem por ser uma espécie de placebos para a criança impossível de que escolheram não se ver livres. A maior parte de nós, doentes mentais, deixaria agora mesmo de tomar os antidepressivos, os antipsicóticos, os ansiolíticos e tudo mais. Não somente porque significaria que melhoráramos como assim evitaríamos os efeitos secundários que decorrem da sua toma continuada e os efeitos sobre os quais não temos ainda dados de longo prazo. Deixem de perguntar às pessoas que conhecem se já experimentaram deixar a medicação. Deixem de lhes aconselhar desporto, meditação, passeios a pé, mascotes e sexo (de preferência não em conjunto). Já demos com os burrinhos nessas águas todas e se acabámos num consultório ou numa urgência não foi – a maior parte das vezes – por não termos imaginação suficiente para contemplar a panóplia de banalidades que se oferece como escolha ao deprimido quando o problema da depressão é, ele mesmo, um problema de escolha. Querem ajudar um doente mental? Não sejam paternalistas. Não sejam – infundadamente – assertivos. Mesmo que acabem por perceber que o auxílio é um processo complicado e longo do qual não querem tomar parte – e isso não tem mal nenhum, a vida é só uma e o seu tempo é contado –, pelo menos despem-se do preconceito sobre o qual radicam todas as asneiras que vos ouvimos dizer.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasO futebol é uma moreia para os amigos [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] aquela altura em que a imaginação se transforma numa moreia a surfar nas guerras púnicas. Tudo começa pelas nuvens de pó, pelos cascos dos cavalos da GNR a bater na lama, pela enxurrada sensorial a que a retina é sujeita – vozes sobrepostas nos altifalantes, mastros e bandeiras na movida, gajos a mijar contra o muro, filas impenetráveis de vultos indiferentes à chuva, semblantes encenados por coros, enfim, um colorido raro a invadir o cinzentismo do mundo que agora recordo. Nestes nossos dias liofilizados em que pegou moda começar frases com o infinitivo impessoal (“Dizer que está aqui um ambiente propício a…”) ou com um simples advérbio temporal (“Quando estás à espera do autocarro da equipa e te cai em cima um…”) ou com um deítico (“Aquele dia em que te sentes varado e atiras…”), melhor ainda me sinto a cantarolar os acordes das marchas militares e revejo as matilhas de cães vadios a cruzarem o oceano de guarda-chuvas negros. Uma fumarada danada e os cartagineses a escarrarem para o lado, a par dos pregões e das cascas de banana a traírem a diagonal do peão, agora acossada por brados e caralhadas que vasculham os profundos da relva. A cal traça ângulos rectos e concebe o círculo central e a grande área. Por cima, a borrasca instiga os seus compassos aéreos à Miró e é por entre os respingos do dilúvio que o povo se estica e digladia (como elásticos) para rever, ao longe, as joelheiras, os equipamentos, as fintas e as botas dos jogadores ensopadas no rectângulo ideal. A bola de ‘catchum’ é atirada pelo guarda-redes, cruza mais de meio canto e embate em duas ou três cabeças que içam as alturas do mundo. Ressaltará para a lateral e perde-se depois pela linha final. É assim também a vida. Tinha seis anos e o futebol transformou-se na primeira imagem que me fez sair de mim. Sair de mim: desdobrar-me num episódio simbólico e passar a ser parte de qualquer coisa que não apenas o imediato: a família, a casa, os avós, os retratos que evocavam origens, os cheiros da compota, a escola primária, o Cavaleiro Andante, o major Vidal que era explicador de matemática e os torresmos do senhor Simões que me levou de táxi até aos picos de Monsaraz, era Inverno e os meus prazeres púnicos e guerreiros amanheciam. Por que terá acontecido tudo isto? Em primeiro lugar, as massas fazem chorar. Para uma criança é coisa mitológica e tem o dobro da força de gravidade. Uma corrente que pode ser imparável com o tempo. Em segundo lugar, os heróis. Sim, mal a cor das camisolas se desvendava no túnel de acesso ao relvado, os jogadores que, na realidade, nunca tinham feito um único feito no mundo, simulavam ser Cipião e Aníbal. E o povo glorificava essa verdade que não é coisa exclusiva da massa cinzenta das moreias. Diga-se, em abono da verdade, que o futebol fora inventado em Inglaterra, entre 1848 e 1863, num tempo em que, como escreveu Stephanie Barczewski (curiosamente um historiador americano), se verificava “…a uniquely British tendency to take a perverse (and sometimes tragicomic) pleasure in glorious defeat and self-sacrifice”. Ou seja: coisas preparadinhas para um bom plot. Em terceiro lugar, a festa, mas com aquilo que a ‘fiesta’ – hoje perseguida pelos avaliadores das mais perfeitas premissas púnicas (as PPPs) – também comporta: tudo, mas tudo mesmo pode vir a acontecer. Sim, pode magoar e pode mesmo matar. É o lado da narrativa literária, do relato shakespeariano, do encadeamento e do sangue (coisa viril, mas com a sua arte, diria Homero para não escrevinhar Hemingway, não venha o presbiteriano Will Hays ou até o Me Too acusar-me de “Hola, al final tú eras también aficionado”). Por vezes, o espaço no futebol é um trompe-l´oeuil constante. E já se sabe que a qualidade de um trompe-l´oeuil não reside tanto na eficácia da ilusão criada, mas sobretudo na graciosidade da encenação. É um tropo que surfa mal para burro, mas que sabe interligar os momentos do jogo a qualquer outra coisa (aparentemente superior) que não é óbvia. A fé precisa da sua fábrica. A fé é para sorver o corpo todo nos lances de bola parada. A fé gosta de uma equipa que troque bem a bola, mas, por vezes, esquece-se de que o que é preciso ‘é metê-lo lá dentro’. Em quarto lugar, a pertença. Que bela questão! Por que se escolhe uma equipa e o que é uma equipa? Prefiro o que ouvi, uma ou duas vezes, dizer ao António Mega Ferreira: é a beleza das coisas que não têm explicação. Sim, a seta vermelha. Inevitavelmente. Em quinto lugar, para desfibrilar a imaginação dos cartagineses: aconselhava a todos os programas sobre futebol que grassam nas TVs lusitanas, há cerca de uma década, o mesmo destino que a terceira e última guerra púnica conheceu. Era acabar com aquilo de vez. Ou com quase tudo. E então teríamos um mundo melhor para comermos moreia à mão todos juntos, como dantes. Eu, o Germano, o Águas pai, o Carvalho, o Vital e o Matateu.
Hoje Macau China / ÁsiaDroga | Estimulação magnética pode ajudar na reabilitação de dependências [dropcap style=’circle’]P[/dropcap]siquiatras chineses desenvolveram uma prática clínica, que utiliza estímulos magnéticos transcranianos de alta frequência sobre determinadas áreas do córtex cerebral, para aliviar a crise de abstinência no processo de reabilitação para dependentes químicos. A professora Liang Ying, da Escola de Ciências Sociais e Comportamento da Universidade de Nanjing, no leste da China, foi nomeada para liderar o projecto. A equipa de pesquisa testou o tratamento num grupo de viciados em metanfetaminas que estavam em reabilitação de dois até15 dias. “A intervenção com repetitivos estímulos magnéticos foi aplicada por 10 dias nos pacientes. Os que receberam o tratamento mostraram uma diminuição nos distúrbios do sono, depressão e ansiedade”, declarou Liang. A académica assinalou que existem poucos recursos farmacêuticos disponíveis para amenizar os efeitos colaterais da desintoxicação de metanfetaminas, como os distúrbios do sono e a depressão. De acordo com um artigo publicado na Xinhua, estimular o cérebro também pode auxiliar os viciados a desenvolverem autocontrole em relação ao consumo de drogas. Os resultados da pesquisa de Liang foram publicados pela revista internacional JAMA Psychiatry, na quarta-feira. A perita chinesa acrescentou que sua equipa pretende explorar o potencial do tratamento em testes clínicos mais abrangentes para prevenir a recaída em dependentes químicos.
Andreia Sofia Silva Manchete SociedadeLivro | Macau considerado “pioneiro” no tratamento de dependências em Portugal João Pedro Augusto, autor do livro “Tratamento de Dependências – Evolução do Sistema Português 1958-2014”, considera Macau como um território pioneiro para os tratamentos adoptados em Portugal e fala de um aumento de residentes a procurar apoio no seu centro [dropcap style=’circle’]M[/dropcap]acau foi um território pioneiro no tratamento de dependências como o álcool ou a droga, tendo ajudado na adopção do modelo de cura em Portugal. Quem o diz é João Pedro Augusto, autor do livro “Tratamento de Dependências – Evolução do Sistema Português 1958-2014”, lançado no mês passado em Lisboa. “Essa foi uma das constatações deste trabalho de pesquisa”, contou o autor ao HM, por e-mail. “As primeiras estruturas de tratamento surgiram em Macau no decorrer da década de 60 do século XX (no Centro de Recuperação Social da Ilha de Taipa) e os profissionais que são escolhidos numa primeira fase pós 25 de Abril para liderar em Portugal as estruturas governamentais de tratamento de drogas são pessoas que obtiveram essa experiência profissional precisamente em Macau, como por exemplo, o psiquiatra Alberto Cotta Guerra”, revelou João Pedro Augusto. O autor, que é responsável pelo departamento de admissões de uma unidade de tratamento em Portugal, alerta para um aumento de residentes que procuram os serviços fora da RAEM, defendendo que os actuais recursos e estruturas não serão as mais ideais. “Da minha experiência enquanto responsável por uma unidade de tratamento que por vezes é procurada por pacientes provenientes de Macau, não me parece que [a existência de recursos ideais e suficientes] suceda neste momento. Para além dos problemas mais tradicionais de dependências químicas (álcool e drogas), nos últimos anos o problema da dependência do jogo tem aumentado consideravelmente na RAEM”, apontou. João Pedro Augusto fala de quase uma dezena de pessoas que já procuraram tratamento no seu centro e não apenas portugueses. “O que se nota de forma clara é que nos últimos dois a três anos há uma procura cada vez maior por parte dos residentes de Macau de pedidos de informação sobre os nossos tratamentos. Isso acontece por vários motivos, seja por não confiarem nos serviços de tratamento existentes na RAEM, ou por questões compreensíveis de tentativa de manutenção do anonimato.” A maior razão Augusto Nogueira, presidente da Associação de Reabilitação de Toxicodependentes de Macau (ARTM), garante que a procura se deve mais pela busca do anonimato. “Não temos dados das pessoas que pedem apoio a Portugal, porque talvez sejam pessoas que nos telefonam de forma anónima à procura de soluções. Macau tem respostas e apoios para o tratamento dos locais. Temos boas capacidades. Se essas pessoas procuram outros sítios é porque querem esconder o que se passa na sua casa, porque Macau é um meio pequeno, muitas vezes passa por isso”, disse ao HM. Nuno Roque Jorge, presidente da Organização das Famílias para a Ásia-Pacífico, também defende a existência de boas estruturas em Macau na resposta a estes casos. “Não há um grande problema em relação à qualidade do tratamento, mas pode ser de facto em relação ao anonimato. Macau é uma terra muito pequena”, rematou. “O sector público tem dado resposta”, disse ainda Nuno Roque Jorge. O HM tentou obter dados de tratamento junto dos Serviços de Saúde mas até ao fecho desta edição não foi possível. Conferência sobre droga em 2017 A Organização das Famílias para a Ásia-Pacífico, que tem o estatuto especial consultivo junto da Organização das Nações Unidas, volta a organizar em Macau uma conferência internacional sobre a problemática da droga, à semelhança do que foi feito em 2013. Segundo confirmou Nuno Roque Jorge, o evento terá lugar em Novembro de 2017.