Um homem de coragem

A Igreja de São Pedro em Gallicantu é um templo católico romano localizado na encosta leste do Monte Zion, mesmo à saída das muralhas da antiga cidade de Jerusalém. Foi construída em homenagem à profecia de Jesus, quando afirmou que Pedro o haveria de negar três vezes antes que o galo cantasse. Depois do canto do galo, Pedro lembrou-se da profecia, e arrependeu-se repetidas vezes. Acabou por ser um mártir que morreu pela sua fé. Os cardeais católicos envergam vestes vermelhas e só podem exercer o cargo até uma idade limite. São elegíveis para suceder ao Papa em funções. Muitas pessoas pensam que o vermelho das vestes dos cardeais simboliza dignidade, mas na verdade simboliza a predisposição do cardeal para morrer pela sua fé, à semelhança de São Pedro, o primeiro Papa da Igreja Católica.

Embora Macau seja conhecida como a “Cidade do Nome de Deus de Macau” não há um cardeal na sua Diocese há mais de100 anos. Apenas o bispo José da Costa Nunes foi feito cardeal depois de ter sido Arcebispo de Goa. A vizinha Hong Kong, teve três cardeais, o Cardeal John Wu Cheng-chung, o Cardeal Joseph Zen Ze-kiun e o Cardeal John Tong Hon. Tirando o Cardeal John Wu Cheng-chung, os outros dois foram professores do Bacharelato de Ciências Religiosas no Holy Spirit Seminary College of Theology and Philosophy of Hong Kong, enquanto eram apenas padres. O Cardeal John Tong Hon ensinava “Criacionismo” e o Cardeal Joseph Zen Ze-kiun ensinava “Escatologia”.

O dia 24 de Maio é especial para a Igreja Católica. Em Maio de 2007, o Papa Bento XVI enviou uma carta aos católicos chineses, na qual consagrava 24 de Maio como Dia Mundial da Oração pela Igreja na China. O Papa escolheu esta data por ser o dia da Nossa Senhora Auxiliadora dos Cristãos, marco importante da Ordem Salesiana.

Por coincidência, 24 de Maio deste ano foi o dia em que o Cardeal Joseph Zen Ze-kiun, da Ordem Salesiana, se declarou inocente num tribunal de Hong Kong.

O Vaticano exprimiu a sua profunda preocupação pelo Cardeal Joseph Zen Ze-kiun, que tem mais de 90 anos, ter sido processado pelo Governo de Hong Kong, assim como o Cardeal de Myanmar e os católicos de Hong Kong e de Macau. O Cardeal Joseph Zen Ze-kiun é acusado de não ter “submetido um pedido de registo, ou isenção de registo de uma sociedade dentro do prazo designado”, e se for considerado culpado, pode enfrentar uma pena de prisão até três meses, com base na precedência. E como todos os outros envolvidos no caso se declararam inocentes, a próxima audiência pré-julgamento ficou marcada para 9 de Agosto próximo, e o julgamento, com duração de cinco dias, começará a 19 de Setembro.

Como os procedimentos judiciais ainda estão a decorrer, não é apropriado comentar o caso, embora eu não esteja em Hong Kong. Ouvi a advogada Margaret Ng Ngoi-yee, uma das acusadas, dizer que Hong Kong é uma sociedade regida pela lei e, mesmo que as leis sejam imperfeitas, devem ser antes de tudo respeitadas, e só depois se deve lutar por aperfeiçoá-las. Admiro Margaret Ng pelo seu respeito pelo estado de direito. Quando fui deputado na Assembleia Legislativa de Macau, também tentei ajudar o Governo da RAE a aperfeiçoar as suas leis.

Mas em vez de falarmos do caso do Cardeal Joseph Zen Ze-kiun, em curso no tribunal, falemos antes do Cardeal Joseph Zen Ze-kiun como um homem de coragem. Numa declaração, disse ter sido o primeiro clérigo disposto a ir pregar na China depois do incidente de 4 de Junho na Praça Tiananmen, em 1989. Imaginem só o clima da sociedade chinesa nessa altura. Ter ido servir para a China, naquele período, demonstra a sua fé no país, enquanto residente em Hong Kong. Ainda fala cantonês, com sotaque de Xangai, porque nasceu nesta cidade.

É preciso coragem para dizer a verdade e fazer as coisas certas. A coragem dos cristãos é totalmente demonstrada através dos actos do Cardeal Joseph Zen Ze-kiun. Enquanto ele acreditar que está a cumprir a vontade do Senhor, assim o fará até ao fim. Mas devido à sua teimosia, não pode receber uma aprovação unânime. Mesmo na Igreja Católica, as opiniões dividem-se, mas ninguém pode negar que ele é um homem de coragem.

8 Jun 2022

Da coragem

[dropcap]O[/dropcap] que é ter coragem? O medo de ter medo? Uma reacção determinada biologicamente (fugir ou lutar)? E para que servirá agora?

A coragem aplica-se apenas a momentos grandiosos ou pode servir para o dia a dia? Não significa necessariamente desobedecer ou ir contra as circunstâncias – apenas uma fidelidade a algo a que não podemos fugir e que de repente se torna irreversível e urgente. Não existe um determinismo biológico em quem se lança para o meio das chamas para salvar um desconhecido, por exemplo. Do combatente heroico ao salvador voluntário que se lança para o perigo sem motivo nem conhecimento, passando pelo indivíduo que levanta a voz contra o que não deveria dizer a razão, a causa, parece-me, é igual: uma lealdade ao que se é, sem fugas e levada ao extremo. As viagens a regiões inóspitas, as lutas contra o que se acha injusto, alguém que confronta os seus para afirmar o que é.

Sim, vou dizer outra vez a palavra que me parece que tudo reúne: honra. Ao que parece a palavra assusta por si só. Julgam-na anacrónica, medieva, gasta. A sua etimologia remete para o latim honos, que entre outras coisas significa dignidade. Não me surpreende, infelizmente, que haja poucos a praticá-la ou até a louvá-la.

Pela minha parte lamento. É um atributo que vejo desaparecer em tudo o que é relação humana, com maior gravidade quando diz respeito a quem é mandatado para tomar decisões públicas. A honra é a verdadeira coragem. O que nos faz superar o que achamos que somos pelo bem do outro. A coragem nunca será solitária porque sempre reportará a alguém. Se ficar no espelho é vaidade e fanfarronice.

A coragem não é ter: tantas vezes é desistir, o que a pode expor ao que se julga que a opõe: a cobardia. Deixar ir o que se amou ou acreditou sem luta ou resistência está em muitas ocasiões na vontade de um bem maior que no limite terá de prescindir de nós para acontecer, por mais sofrimento que isso nos possa causar.
Estes dias, mais do que outros, lembram-nos que a grande coragem começa pela simples existência. O que torna a urgência de nos honrarmos – a nós e aos outros – ainda maior. Que não nos faltem as forças.

3 Nov 2020

Odisseia nos espaços

[dropcap]R[/dropcap]evi ‘2001: Odisseia no Espaço’ há não muito tempo. A contracenar com a proto-lenda dos hominídeos, uma nave dirige-se para a estação espacial que Kubrick imaginou com a forma de uma dupla roda giratória. A banda sonora que acompanha a parte inicial da saga cósmica, a famosa valsa ‘Danúbio Azul’ de Johann Strauss II, suscitou-me profunda arrelia há quatro décadas e, desta vez, a coisa não passou de uma enigmática compaixão. À pulsão inicial (renhida) sucedeu uma quase insípida indiferença. E, no entanto, a fita era a mesma e a música replicava na perfeição a melodia estreada no carnaval de 1867 em Viena. Sou eu que hoje sou um outro.

Esta experiência de degustação existencial não é inédita. A música é uma excelente anfitriã para estes saltos no escuro, mas as cidades (ou os microcosmos) que já habitámos também o são. A ‘minha Évora’, a ‘minha Tomar’, a ‘minha Amesterdão’, o ‘meu Campo de Ourique’, para dar só alguns exemplos, são territórios que não existem para mais ninguém. São-me exclusivos e eu não saberia traduzi-los para uma outra pessoa. Trata-se de atmosferas (fóricas) que têm tornado permeável o meu face a face com o planeta (a nossa vida tem a sua ‘Route 66’ que se deixa ramificar por uma ilimitada rede de capilares).

Poder-se-ia dizer que estamos sempre em queda gravitacional, tendo como referência diversos centros, a maior parte deles instáveis, imprevisíveis. Mas essa queda vive em estado de perdição nos dois sentidos que a palavra oferece (as palavras são oferendas): seja na acepção de perda, seja na acepção do fascínio. Daí que a degustação de experiências passadas, que parecem domesticadas, não passe de puro funambulismo. Na verdade, caminhamos sempre em cima de uma estreita corda entre terraços de arranha-céus como o de Babel e a vulnerabilidade à vertigem e sobretudo ao desconhecido (com a idade, passa-se a dar ao desconhecimento um deslumbre especial) é ruidosa, no sentido de um sinal que é aleatório. E confirmamos então, se não o havíamos já feito antes por mera euforia, que tudo é intimamente transitório e que a perenidade (ou a eternidade) não passa de uma bela ideia dos humanos. Apenas isso.

Nas inúmeras teses sobre o tema (que alimentam a atracção por aquilo que não somos e que desejaríamos ser), há uma teoria dos estóicos que me agrada especialmente. Para essa corrente que habitou o Mediterrâneo durante quase meio milénio, dos idos de Zenão de Chipre a Marco Aurélio ou a Séneca, há dois princípios que constituem o cosmos: um activo, o “logos” ou “fogo inteligente” (a razão que estrutura o mundo), e um outro passivo que corresponde à matéria inerte (terra e água). Os elementos activos (fogo e ar) combinam-se para produzir a “pneuma”, ou força vital, que atravessa e sustém todos os corpos do universo, através de um duplo movimento: para dentro, unificando-os, e para fora, conferindo-lhes as qualidades. A pneuma, ou respiração universal, é, pois, uma espécie de escudo invisível e perene (isto é: que preserva e que se preserva eternamente).

Revelada a paixão estóica, devo referir que, para me aperceber de diferenças (o ‘Danúbio Azul’ escolhido por Kubrick é um óptimo exemplo), é preciso que se pise terra firme. Por outro lado, são as diferenças entre tudo o que se desencadeia diante de nós que nos permitem atribuir sentido à vida e ao que nela acontece. Se tudo se propagasse igual a si próprio e fora do tempo – seria assim a eternidade – não haveria sentido, nem necessidade de terra firme para colocar o corpo de pé e nele sentir a imprevista comoção suscitada por ‘2001: Odisseia no Espaço’.

A ‘terra firme’ a que metaforicamente me refiro deverá, de alguma maneira, corresponder à “pneuma” dos estóicos. Sem esse escudo, ou sem essa âncora que nos permite focar e objectivar os diversos passos do mundo, gravitaríamos sem consciência fosse do que fosse, tal como um protozoário unicelular cuja utopia maior passaria por poder tornar-se visível a olho nu, num futuro muito, muito longínquo (cumprindo, para novíssimos patamares, a famosa profecia dos “15 minutos de fama” de Andy Warhol).

30 Mai 2019