Somos Contemporâneos do Impossível (Parte III)

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m VASOS DE GUERRA “homens como nós” são descritos como “nascidos do que perdemos/ e ficámos – guardadores de lugares/ calados por dentro”” (55) e em RETRATO PÓSTUMO lê-se “tudo morre, só o nada é/ para sempre” (58).

O título MELANCOLIA DA CATÁSTROFE expande o próprio conceito “melancolia”. A ambiguidade da expressão não permite decidir inteiramente se é a catástrofe o objecto da melancolia ou se é o seu sujeito. É o carácter paradoxal da formulação extrema a possibilidade de melancolia. Podíamos, numa primeira aproximação, achar que a melancolia é uma lembrança de bons tempos, de uma doce saudade do que já passou. Mas faz parte da própria melancolia a compreensão de que o pior de tudo por que passamos, com a distância do tempo, fica filtrado de tal maneira que é doce a sua memória. Sentimos saudades do que passamos. Assim também acontece aqui com a catástrofe. A perda da esperança é a perda de

“uma cobra esguia

o tempo irrelevante para a pedra que cai”

(60)

 

A esperança tem vários motivos. Um dos mais poderosos na vida humana é a chegada do outro com quem nos encontramos. Tu que:

 

“representavas a esperança de uma possibilidade de passado

o afecto que abre as portas ao comércio

na cidade que ainda acredita”

(Ibid.)

 

A melancolia é a esperança de uma possibilidade de passado, um passado que é invocável pela memória cognitiva. Podemos até ter documentos e testemunhos desse passado, mas não sabemos regressar a ele sem o esconjurar na vibração modal que nos canaliza para lá, que nos abre o portal de acesso afectivo e emocional para a sua dimensão característica. A possibilidade não havida angustia. Vivemos entre um passado a que não acedemos na sua dimensão modal, vibrante, afectiva, emocional, um presente que é prefigurado por esse haver sido, e um futuro que não admite tal como não admite o passado nem o presente qualquer conteúdo que não o da angústia.

 

“angustiado por essa memória de uma possibilidade

de uma só possibilidade, antes de morrer”

60

 

Em MIMESIS, em face dessa impossibilitação, o outro afinal não apresenta nenhuma abertura, nem representa, na verdade, nada do tudo que primariamente prometia. A esperança do passado é a esperança do presente e a esperança do futuro. O outro dá sentido à vida por representar tudo. Mas o outro, objecto e agente do amor, apenas é visto no que foi, quando já não está connosco, quando é perfil sem conteúdo, horizonte vazio, projectado na, e pela, distância.

 

“invenção da distância única definição de amor

que alguma vez consegui compreender

.

.

.

Uma distância que exprime o tempo irreversível da anulação da própria distância, porquanto a realidade retira todo o carácter onírico ao objecto da falta sentida, do desiderium daquilo mesmo que é a única coisa que quero ter. Quando se aproxima, aproxima-se da realidade e afasta-se da sua impossibilidade onírica, do sonho de amor. A realidade mata todo o amor.

e assim te dei por completo

e sem forma

de desistir”

(62)

 

Ou na formulação de DISCRONIA DE UM ENCONTRO:

 

“sentámo-nos na mesa toda iluminada de um só canto

acolhidos inesperadamente pela tua silhueta

recortada e familiar

.

.

.

 

mas só te vim a reconhecer muito mais tarde”

(63)

 

Só reconhecemos o outro num amor infeliz, perdido, ausente, irrecuperável. Desse amor, não tendo nós a certeza de haver outro, não se recupera, não se fica imune nem incólume a um coração desfeito. Mas simultaneamente há uma diferença entre ter havido esse amor nas nossas vidas e não ter havido esse amor nas nossas vidas, porque não somos os mesmos, apesar de virmos a encontrar-nos na solidão de uma forma mais espessa e com contornos muito mais definidos do que alguma vez conhecemos. A esperança da possibilidade dá um sentido, direcção e orientação, que nos faz ser por aí além. Há futuro escancarado, um futuro que transcende o longo prazo e por maioria de razão o médio e o curto. Este futuro aberto pela esperança é simplesmente possibilitante.

 

A mais completa descrição da melancolia da catástrofe lê-se n’O TERCEIRO PASSO

 

“dantes não era assim

não havia esta proximidade

não estávamos lá

mas havia caminho

um caminho em tempo discreto perecível

.

.

.

 

o terceiro passo é o que já lá estava

do que ficou no fim

depois do resto

o próprio fim desaparecer

não temos consciência dele

só ele tem noção do seu próprio mistério

e consciência de nós

é passo paralelo contínuo impossível

nem é possível habitá-lo

não é caminho que percorras

mas que te percorre a ti

como se dele nascesses”

(68)

 

A proximidade de que se trata aqui não é o oposto da distância referida há pouco. Esta proximidade é a tangência do fim, a aproximação “inexorável” de quem habita a zona mortal na expectativa iminente de um impacto letal. Agora, não há caminho, quando “havia caminho”, ainda que em tempo discreto, episódico e perecível. O terceiro passo é o passo final, na contagem, o momento do princípio do fim, do desaparecimento.

 

“Só ele tem noção do seu próprio mistério” (68), só ele “tem consciência de nós” (Ibid.). Ou seja, não razão nenhuma para se pensar que só começa a acontecer a partir de determinada altura da vida e não que esteja desde sempre já a acontecer, lá desde o fundo da infância. Ainda que nós não tivéssemos tido noção dele ou não tivéssemos pensado na noção que pudéssemos ter tido dele, é ele que nos tem a nós, que radioscopa e radiografa a nossa vida. Caímos na consciência do fim, porque ela nos é dispensada pelo seu próprio mistério.

 

A configuração deste ser no encaminhamento do desaparecimento não é exclusiva da subjectividade poética, nem é particular ou individual. Constitui o nosso sermos uns com outros. A acção deste ser, a sua particular actividade, que nos implica desde sempre nos outros não é anulável e tem características complexas. Elas estão expostas em SUBROGAÇÃO DAS SOMBRAS:

 

“o predador de sombras é também refém

da vida projectada dos outros

o estranho que se detém perante a fotografia abandonada

que lhe dá

e ganha vida

enquanto novo sujeito no destino aleatório

da contemplação

alguns objectos representam

a vida no seu sentido adjectivo

sendo da mais elementar ciência que a vida é o único

absoluto substantivo que não perde a sua qualidade

quando tornada objecto

perante o homem ilustrador”

72

 

O que temos um do outro dos que são nossos, nos constituem o âmago do nosso ser, sem os quais não seríamos nós, a não ser outros insuspeitados?

 

Somos sombras uns para os outros. O que quer dizer que não temos nem relativamente a esses coincidentes connosco acesso à pessoa ou ao si mesmo deles. Temos não apenas a fachada, o rosto e os seus infinitos cambiantes, expressões e jogos faciais, o corpo trabalhado pelo tempo desde a infância até à velhice, os estados de alma, a maneira de ser, o jeito, a forma, a personalidade e tudo isso é ainda sombra perante o abismo do outro quando se converte em mistério. Até quando existe como agente de fascinação e encantamento, o outro é sombra, projecção do exercício do fascinante e do encantamento que se abate sobre mim.

 

Podemos ser agentes provocadores de fascínio, impressão e encantamento no outro e o outro é o sujeito metamorfoseado no seu interior. Mas nas possibilidades extremas da fraternidade, da amizade, da filiação e da paternidade, nos mais diversos graus de parentesco, há sempre esta projecção de nós sobre os outros e dos outros sobre nós a maquilhar as personalidades, os protagonistas, destas afecções. Tudo não é senão qualidades, modificações, alterações, transformações da vida em nós.

 

É a vida de que somos portadores quem é o grande protagonista, o destino, a sorte, o sujeito dos sujeitos do próprio e do outro, da intersubjectividade contemporânea e entre gerações. Este mega sujeito produz sujeitos e, neles, a consistência permanente do tempo sequencial, transitório, irreversível da passagem.

 

“talvez a repetição seja a nossa grande criação”

86-87

 

 

IV CORPO EM QUEDA, a identificação da dificuldade de ser, quando não se aguenta, não se é capaz e não pode, projecta outras possibilidades ou então somente a possiblidade de não ser impossível. Mas o que une as sombras substitutas é a sua relação recíproca de sub-rogação e cada um é substituto de si próprio e há substitutos dos outros para o próprio.

 

“escapar, apenas

para descobrir

que a sua verdadeira

prisão

é a impossibilidade

de regressar”

136

 

Na odisseia que é a descoberta de si, de onde se zarpa e onde ser aporta, como “loci” da poesia dependem da viagem. Uma viagem nunca é uma deslocação no espaço. Podemos também nunca sair de uma mesma localidade e sermos no fim da vida mutantes do que fomos no princípio.

 

“na invenção da distância a morte

foi disparada à nascença

para se percorrer em várias direcções

ao mesmo tempo

fio e caminho tenso esticado

vibrando toda no rombo do passo”

(126)

 

Um dos riscos corridos na odisseia que depende da abertura do próprio horizonte de sentido ou, antes, do origem e fonte do próprio sentido, é a descoberta da totalidade a perder de vista da essência das coisas (DE RERUM NATURA )

 

“comecei por escrever o que se passava comigo e terminei

a escrever o que não se passava

uma forma de descobrir a verdade

onde ela já não existia

(142)

 

Conhecer-se a si próprio é a realização do poema escrito como descrição da antecipação e invenção da possibilidade ou da sobrevivência à impossibilidade. A única vida possível é a acrobacia sobre um arame que está a ser tramado e esticado e ao mesmo tempo percorrido. A vida é assim, sempre, a descrição do fecho, da impossibilidade de regresso à infância onde localizamos temporalmente quem fomos no princípio e com a possibilidade que o princípio oferece. Agora, a vida dá a compreender o fecho ao presente e ao futuro.

 

Neles só nos instalamos extaticamente na dimensão do tempo dimensionado no sonho. O poema é o produto do sentido, da conotação, do significado. Eu convertido em conteúdo de poema sob pena de não obter compreensão para mim. A verdade é produzida pelo sentido e não é um facto, ainda que se faça a experiência da não anulabilidade desta experiência de sentido. A verdade só vibra na melancolia da catástrofe.

 

“não antecipei a tua morte

sou eu

aquele que devia ter desaparecido

e não tu”

(145)

 

Será sempre a vida abortada por ausência de outrem?

O ostracismo é o sentido ao pé da letra da navegação figurada. Não se sai de onde se está, ainda que nos possamos deslocar no espaço. Nunca se regressa, porque somos diferentes e os outros e os sítios distinguem-se pela metamorfose do tempo. E se nunca sairmos do mesmo sítio, a imobilidade transmuta-nos, ainda. A motivação é uma ânsia pela eterna saciedade, uma saciedade indeterminada quanto ao seu conteúdo ou nunca satisfeita com o mesmo conteúdo nem com a sua própria variação.

 

“navego pela eterna saciedade

não há lugar no mundo

que me chegue

apenas a profundidade implacável

de um movimento

inexistente”

(120)

 

O movimento descrito não é uma deslocação espacial. É óbvio. É um ir. Um ir na demanda, em frente. Coincide com movimentos de rotação e translação, o percurso dos astros no cosmos, o cosmos no universo, a passagem das horas e dos dias, a passagem das estações do ano e a transfiguração que operam nas “costas da terra”. O único eixo do movimento certa tudo: “as constelações das coisas”:

 

“tudo anda em frente

um único eixo de movimento

gera as constelações das coisas

e do vento

só existe presente

só um campo corre pelo rio”

(125)

 

A inexorável caminhada em demanda pela saciedade da fome que constitui o humano compreende a possibilidade que a morte traz como sossego ou ainda como a antecipação misteriosa que se projecta além da vida, como espera pela próxima fome:

 

no fim a vida foi só

isto:

esperar

pela próxima fome

121

 

De nada em nada, de falta que se fez sentir em falta que se faz sentir, projecta-se o ser da ausência. A presença da ausência é o ponto de fuga da existência. Só se sente a substituição da miséria, precariedade, precisão, necessidade. Numa situação de insatisfação, na inquietude complexa da relação de si consigo e de si com outrem, a vida não assenta bem. A ânsia pode ter como objecto outros percursos existenciais, outras biografias, com outros personagens, outras vidas, outros próprios. A vibração que se constitui não é já a de uma hipertrofia que resulta do nosso lance de antemão para uma versão cada vez mais melhorada de nós próprios, uma optimização superlativa do que é já a forma do nosso encaminhamento.

Faz parte desta outra ânsia complexa ser outro, porque não somos como gostávamos de ter sido e acabamos por nunca ter vindo a ser como gostaríamos de ter sido. O mesmo é dizer gostaríamos que a vida no seu ser a ser fosse radicalmente diferente daquela que é. Ou na formulação da primeira forma da sabedoria de Sileno: o melhor de tudo era acabar já. Ou, talvez, ainda de forma mais extrema, na segunda forma da sabedoria de Sileno: o melhor era nunca ter vindo a ser (Sófocles, Nietzsche).

 

“queria ser outro

o homem do futuro talvez

morar nas tuas mãos, tanto que fomos

ah, tanto que somos contemporâneos

do impossível”

124

29 Dez 2017

Somos contemporâneos do impossível (Parte II)

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] futuro é narrativo, não no sentido em que narrativa quer dizer pode querer dizer contar uma versão do passado, tão real como possível — contar o que se passou — mas no sentido em que abre para possibilidades que entroncam numa dimensão a haver.

A narrativa entendida como um narrar-se a si ou um contar o que se passa consigo parte de si e regressa a si, num caminho todo ele feito por si próprio. É uma forma peculiar de antecipação. Projecta possibilidades. Tenta perceber onde é que vai dar com as escolhas que fez e opções tomadas. Lança prognósticos de possibilidades, neste caso poéticas onde se possa sobreviver num mundo de sentido com uma realidade objectiva completamente interdita, proibida.

As narrativas da possibilidade projectam-se no próprio interior do poema em construção, não são a sua formulação gráfica na escrita, na palavra dita. São a própria constituição, concepção, produção poéticas. O narrar-se a si, o dizer-se a si como é consigo, o contar o que se passou consigo são situações que projectam cada si a quem lhe acontece ser na dimensão latente, não descoberta, da profundidade da experiência fáctica da vida. Não se trata de adivinhas interpretativas, estocásticas. É o próprio sentido da possibilidade que está a assomar o horizonte. A narrativa da realidade é meramente indicativa, usa o enunciado declarativo como meio de expressão. O seu mundo pode existir sem ninguém. Pode resultar de um esforço, de uma concentração, de uma atenção: técnica, teórica ou estética. Mas o narrar-se a si que diz de si como é consigo no que se passou exprime a abertura activa e espontânea da exposição possível à cadência e à vibração, ao ritmo e à melodia no interior dos quais o significado ganha corpo de conteúdo.

Como se lê em A DESTRUIÇÃO DO GESTO

 

“é preciso pensar o poema sem pensar

o poema

já acabado sem ter existido

a vida só existe no seu próprio revestimento

para isso é preciso vestir o poema antes do poema”

(42)

 

Em DIÁRIO DE UM CORPO MENOR lê-se a forma específica em que o poema é dado à luz. Espírito e o corpo da letra são o resultado de um debate: “tento definir os seus breves contornos” (43). Os contornos do poema são breves não porque tenha um corpo mínimo a ocupar espaço, mas porque a sua dimensão é temporal e dura um abrir e fechar de olhos, um piscar de olhos “até chover a sua própria carne” (Ibid).

 

“a nuvem escura de um poema

paira à minha frente

como uma pulga crepitando

sobre o lençol negro da noite

tento definir os seus breves

contornos

entre a certeza de cada salto

que apodrece

é uma nuvem de sombra sobre

sombra

mordendo mordendo sempre

até chover a sua própria carne

um gesto visível

para quando

cair sobre a luz”

(43)

 

Em ALEGORIA DO JUIZ lemos o poema na sua eficácia substantiva:

 

“o poema nasce da colisão

entre o projéctil tatuado por gestos e lugares

e o peito voluntário que lhe serve de alimento

fosse ele o seu momento seminal”

(44)

 

O poema numa das suas actividades possíveis:

 

“o poema fere mata desvela”

(Ibid.)

 

O poema descrito na sua camuflagem e dificuldade de ser agarrado:

 

“é difícil apanhar o poema no rasto do gato

que ainda vive em transgressão

ao seu mal intrínseco”

(Ibid.)

 

É existência dependente do leitor como o é do seu inventor:

 

“se o poema tem de morrer que não seja por dúvida

que seja por culpa e sentença de quem o lê”

(44)

 

É no poema que eu compreendo o haver sido abismal da noite eterna do passado:

 

“sou a impossibilidade de olhar para trás

a distância toda antes do nascimento”

(45)

 

O poema é a face visível, patente, à mostra, mas mínima como uma peça de puzzle, ainda que aparecida. O todo é a parede a construir e a preencher com todas as peças, vistas de todos os pontos de vista possíveis, num nexo que irradia de cada uma para todas e de todas para cada uma das peças:

 

“o poema é só

uma face possível de veludo

na parede do problema”

(47)

 

“O poema nasce da colisão”, “o poema fere, mata desvela”, “anda no rasto de um gato”, “se o poema tem de morrer que não seja por dúvida, que seja por culpa e sentença de quem o lê”, porque quem o escreve diz na primeira pessoa do singular: “sou a impossibilidade de olhar para trás a distância toda antes do nascimento” e é quem tem, por isso, a consciência de finitude: “o poema é só/ uma face possível de veludo/ na parede do problema”. Não tem lugar, porque o seu elemento é a viagem, depende de um pensamento que nos é oferecido, líquido, fluído ou não. Servirá se “chegar a algum sítio”.

 

“um lugar sem lugar é o sítio onde acordei

a querer estar como se pertencesse

e existia

agora a minha cabeça explode como um barco no rio

afinal, o pensamento líquido só serve se para chegar

a algum sítio

foi tão bela a viagem mas temo que me tenha afogado

e o meu coração é agora um planeta, tantos são

os oceanos onde deixei viagens

por acabar”

(48)

 

O poema não é um conjunto de versos ou uma composição de um só verso, numa formulação sintaticamente bem formada. Pode ser uma só palavra, pode ser um verso, pode ser um conjunto de versos que procuram fazer sentido. Mas um poema é sempre uma versão da realidade, uma versão de veludo que é forma de um plano de fundo complexo. Como se todos os momentos auto-biográficos de uma vida pudessem ser expressos por um poema do qual temos apenas poemas avulso, episódicos, sem um fio condutor. Mais, como se cada vida humana, em todas as gerações passadas, presentes e futuras tivesse um único poema composto caleidoscopicamente de poemas avulsos, episódicos sem fazer sentido nem composição, para além do que compreendemos deles: serem dados auto-biográficos de uma narrativa de futuro a haver sem concretização real.

 

“sei que tudo é pontual

mas tem de haver uma frase para se chegar ao ponto

o que pressupõe sempre a construção de um texto:

dos pontos usufrui-se a percepção da viagem

o seu sentido pleno

sem frases não haveria pontos

e é impossível ler para trás

isso seria a própria definição de peso”

(48)

.

“todos os livros

sejam viagens sólidas por acabar

talvez seja essa a proposta que me resta navegar:

a construção de um sentido líquido

o único possível?

para conquistar um porto não definitivo

o resto resolve-se em conjunto”

(49)

 

Em III, sob designação de FUNDAMENTOS DO ECO, symposium ou a invenção da distância, encontramos uma expansão dos elementos fundamentais de I e II, o mundo próprio e a vida, por um lado, e a expressão desse mundo e dessa vida tal como a semiótica e a significância os conotam. O referente não existe em si, mas sob a dependência do horizonte poético. Um poema é a unidade mínima não apenas da expressão ou da descrição do que acontece, mas fundamentalmente do próprio sentido. A realidade é uma parede, um fundo superficial ou profundo, com uma topologia complexa.

Tudo existe alicerçado no tempo irreversível da existência.

Sem poema, não há realidade poética. Sem realidade poética, há factos. A realidade pura e dura depende de um mundo criado por um irreducionismo sem ponto de vista. A vida sem poesia é dada a ver para um ponto de vista que tudo perspectiva a partir de nenhures (Thomas Nagel) ou é uma vida pensada por ninguém (Husserl). A narrativa resulta da reconstrução ou da prefiguração que dá forma às figuras do passado e do presente, num lance que se projecta em antecipação como realidade possível e nunca como facto. Habitamos a possibilidade e, por isso, é que há impossíveis. Nunca há a realidade do modo indicativo, tendencialmente desprovida de possibilidade, simplesmente objectiva.

“é preciso regressar ao fundo do abysmo

sem o deixar ganhar

.

até onde vamos para entender o desaparecimento?”

(53)

Agora aparece uma possibilidade extrema de nos relacionarmos com outro, num sistema complexo de antecipação que paira em suspenso sobre o vazio, onde as falas são inventadas a cada instante, as conversas requeridas por dois a serem um com o outro como possibilidades e não realidades. Esta possibilidade de ser um com outro é a que inventa um futuro, porquanto o próprio si está encerrado na cápsula do seu tempo e, quando muito, reage como reflexo ao reflexo da realidade dos outros, que existem apenas como impressões. Ora as impressões, mesmo que indeléveis, são impressões. Foram deixadas em nós. Podem ser alimentadas com a nossa imaginação e fantasia ficcionais.

“sim, o futuro existiu na distância percorrida de um para o outro

entre o gesto e o eco que o espelho devolvia secretamente

carregado de partículas geradas por essa impossibilidade

que os anos, morrendo à distância, vieram ridículos

a chamar de paixão”

(54)

A distância percorrida de um para o outro: gesto, eco, são fundidos como reflexos de quem gesticula ou de quem fala, sempre para outro. O próprio reage ao gesto ou ao eco do outro como reflexos num espelho que nunca é visto como espelho, mas como a própria realidade. A reacção ao que aparece no espelho é uma reacção ao próprio e nunca a um reflexo. Na paixão, como a descreve Platão, é por nós que estamos apaixonados. Não é pelo outro. Isso é imperceptível a quem olha. Não percebemos que somos nós lá plasmados no outro.[1]

(continua)

[1] Shakespeare na Comedy of Errors, põe Antifolo de Siracusa a dizer: “Call thyself sister, sweet, for I am thee. Thee will I love and with thee lead my life: Thou hast no husband yet nor I no wife. Give me thy hand.”

28 Dez 2017