Hong Kong instaura confinamentos sem aviso prévio para combater novos surtos

Hong Kong confinou inesperadamente e sem aviso na noite de terça-feira uma parte da cidade, para testar todos os residentes, tendo os acessos sido fechados pela polícia, numa nova estratégia para combater a pandemia. De acordo com a agência de notícias France-Presse (AFP), a polícia isolou um perímetro em torno de cerca de 20 edifícios densamente povoados no bairro de Yau Ma Tei.

A chefe do executivo, Carrie Lam, explicou que estes “confinamentos sem aviso prévio” são necessários para impedir a fuga de pessoas antes do destacamento dos profissionais de saúde encarregados de realizar o rastreio. “Agradeço às pessoas desta área restringida pela sua cooperação”, escreveu hoje Lam na rede social Facebook, já depois de o bloqueio ter sido levantado.

No último fim de semana, um confinamento durante dois dias noutra zona da cidade foi divulgado algumas horas antes na imprensa local, após uma fuga de informação. Durante a operação de terça-feira, mais pequena que a do fim de semana, cerca de 330 residentes foram testados, tendo sido detetado apenas um caso de covid-19. As autoridades do território sob administração chinesa avisaram que mais confinamentos deste tipo poderão ser necessários nos próximos dias.

Desde o início da pandemia, Hong Kong registou cerca de 10.000 casos de covid-19 e mais de 170 mortes provocadas pela doença. Nas últimas semanas, surgiram novos surtos em bairros muito pobres, revelando enormes desigualdades naquele centro financeiro internacional.

27 Jan 2021

Na gaiola outra vez

Por André Namora

Aí está a chamada tradição do Natal transformada em confinamento. Todos achavam que a celebração eucarística da família à mesa com bacalhau e peru é que tinha de acontecer. Em primeiro lugar estava a oportunidade de dizer à covid-19 que passasse ao lado da malta porque as festas eram importantíssimas… nem sequer o alerta de certos especialistas clínicos a avisar que os ajuntamentos familiares no Natal iriam provocar grandes dissabores traduzidos em números astronómicos de infecção e aumento do número de óbitos, permitiu que as pessoas não aderissem às festas natalícias. De nada serviu, os médicos atentos ao que se vai passando por esse mundo sabiam que as festas iriam dar bronca. Festas que foram do conhecimento das autoridades com 100, 300 ou 500 pessoas. Tudo na maior.

Toca a banda e abre o garrafão que é Natal ou ano novo. A Guarda Nacional Republicana ainda entrou por umas quintas a dentro e acabou com o festim. Numa delas, havia mulheres e homens nus numa piscina interior aquecida em plena orgia do tipo grego com uvas e outras bolas nas mãos. No interior do salão com lareira manjava-se javali e veado cozinhados com vinho tinto. Resumindo: estava tudo bêbedo sem se darem conta que o coronavírus andava por lá a marcá-los à distância para passadas duas semanas enviá-los para o hospital, na secção chamada de covid.

A propósito, de falarmos sobre a covid-19 e o aumento estonteante do número de infectados e de mortes que levaram o governo a decretar novo confinamento à população, há que registar o excelente e sacrificado trabalho dos profissionais de saúde pública, especialmente os enfermeiros e assistentes sociais. As secções nos hospitais onde são instalados os doentes com a pneumonia covid são geridas com uma seriedade espantosa. Qualquer profissional está equipado dos pés à cabeça com bata especial plastificada, uma touca, dois pares de luvas, sapatos especiais, óculos de plástico, máscara profissional, todo este material que ao deixarem a secção onde se encontram os doentes com a covid são atirados fora para recipientes próprios para cada tipo de objectos utilizados. Os enfermeiros merecem os nossos maiores aplausos pelo trabalho que realizam. É proibido entrar nos hospitais mas tive a oportunidade de ver um vídeo que um profissional hospitalar realizou e vê-se que felizmente não se está a brincar em serviço.

Quem brinca com o povo são os políticos tão incompetentes que até eles apanham a covid-19, como foi o caso da ministra do Trabalho e da Segurança Social. Por sinal, quando a vi toda gaiteira e a falar sem máscara, disse para comigo “esta não se safa à covid”. Dito e feito. Mas, a verdade total neste aspecto não vem a público: há mais governantes e assessores infectados e incrivelmente, pelo menos um deles, sabia que estava positivo e foi “trabalhar” para o Ministério onde se encontram centenas de colegas. A irresponsabilidade tem sido grande, o governo perdeu o controlo da pandemia, os médicos que sabem da matéria não têm sido levados a sério e assim estamos com cerca de 150 mortes por dia. Quem diria que chegávamos a um ponto tão trágico e tão triste e mesmo assim foi decretado um confinamento da treta. Qual confinamento? As escolas estão abertas, os pais saem à rua para ir levar e buscar os filhos aos estabelecimentos de ensino, os supermercados estão abertos, as pastelarias estão abertas servindo o cafezinho numa mesa colocada à entrada e onde os ajuntamentos de clientes são uma realidade, as padarias não param de vender toda a espécie de pão, as mercearias estão cheias dos clientes habituais lá do bairro, os cabeleireiros estão fechados mas as marcações telefónicas levam a que no interior o trabalho não pare.

Resumindo: as ruas estão cheias de “confinamento”, uns foram à farmácia, outros ao hipermercado, alguns dizem que vão ao dentista, outros que vão à consulta que o médico marcou há duas semanas, há muitos a passear o cãozinho, à porta do talho vêem-se as filas de carnívoros, enfim, são tantas as excepções ao confinamento que estou certo que o número de infectados e de mortos não vai baixar.

Por outro lado, tenho um vizinho que já trocou o seu Mercedes pelo último modelo. É proprietário de uma agência funerária e disse-me que nunca imaginou ficar tão rico. Só os funerais dos muçulmanos dão-lhe um lucro astronómico porque é das poucas agências que sabem tratar dos rituais inerentes à religião de Maomé. O confinamento que foi decretado na passada sexta-feira é um fiasco e tristemente o civismo das pessoas ainda não alcançou uma plataforma de compreensão de que esta pneumonia covid não brinca com os humanos, simplesmente trata-lhes da saúde enriquecendo as agências funerárias.

As pessoas não entendem o que é uma pandemia, não querem compreender a gravidade deste tipo de vírus e até há quem brinque aos testes. Hoje dá negativo, no dia seguinte deu positivo, tem que ficar 15 dias confinado, mas depois de mais um teste volta a resultar negativo e aí vai ele para a rua porque as eleições estão à porta e há quem queira continuar a ser presidente da República. O que me apetecia era ter uma fábrica de gaiolas onde pudesse meter esta passarada toda…

*Texto escrito com antiga grafia

18 Jan 2021

Covid-19 | Província chinesa adopta medidas de bloqueio e confinamento face a novo surto

As autoridades chinesas estão a impor bloqueios e medidas de confinamento numa província do norte da China onde os casos do novo coronavírus mais que duplicaram nos últimos dois dias.

As ligações ferroviárias, aéreas e rodoviárias para Shijiazhuang, uma cidade com cerca de 11 milhões de habitantes que serve como capital da província de Hebei, foram suspensas e as medidas de prevenção e controlo reforçadas nas comunidades urbanas e vilas próximas. As aulas foram suspensas e os dormitórios das escolas isolados.

A Comissão Nacional de Saúde anunciou que 51 novos casos foram confirmados na província de Hebei, nas últimas 24 horas, elevando o total para 90 desde domingo. Hebei é a província adjacente a Pequim. A maioria dos casos foram detectados na cidade de Shijiazhuang.

As autoridades também impuseram medidas igualmente rígidas nas cidades de Shenyang e Dalian, na província de Liaoning, no nordeste da China.

Face ao receio de uma nova vaga de surtos no país, a China está também a desencorajar viagens durante o feriado do Ano Novo Lunar, que se realiza no próximo mês. A principal festa das famílias chinesas é também a maior migração interna do planeta, com dezenas de milhões de trabalhadores a regressarem às respetivas terras natais.

O aumento de casos ocorre também numa altura em que a China e a Organização Mundial da Saúde negociam os termos de uma visita dos investigadores da OMS, para tentar apurar as origens do novo coronavírus, que foi detetado pela primeira vez na cidade central de Wuhan, no final de 2019. A China relatou um total de 87.278 casos de covid-19 e 4.634 mortes.

7 Jan 2021

A cidade não recolhe

[dropcap]S[/dropcap]im, há qualquer coisa nestes dias de céu azul-lisboa. Sei que esta afirmação é um lugar comum mas não só gosto de lugares comuns como acreditem: este é um belo lugar para habitar. A força deste azul, nesta manhã de saída precária em que vos escrevo, parece contrariar tudo: o estado do mundo, da humanidade, de mim. Torna-se difícil ser melancólico sob este céu e devagar há uma espécie de optimismo discreto que vai entrando pelo corpo e que, se não tivermos cuidado, pode dominar-nos mais depressa do que o vírus.

Mas por um momento acolho essa visita e resolvo olhar em volta. Muita gente que apressa alegremente os seus afazeres antes que soe a hora do recolher obrigatório. Passeios, cafés, mercearias, a rua viva como se se tratasse de um dia de festa, como se o Dezembro que se aproxima fosse igual aos Dezembros de há pouco. Na zona onde estou, típica de Lisboa, pouco português se ouve. Há brunches, take away, latte.

Mesmo o café-restaurante onde me sento – dos mais antigos da rua – não escapa aos cartazes que prometem “croque-monsieurs” e “croque-madame”, para além de “Les sandwiches typiques de jambon” e “boeuf”. Os estrangeiros que aqui passam são recém-lisboetas que transformaram o bairro. Sinto-me como um turista na minha cidade e por um momento, amigos, gosto disso.

Se viver é sempre um acto de resistência, numa altura como esta ainda o é mais. A cidade pode estar sôfrega, ligada à máquina, bisonha; mas mantém a aparência, por vezes de forma desesperada, por vezes de forma natural e mais antiga. Na sua extraordinária vocação para a miscigenação, Lisboa aceita com suavidade e graça os contrastes dos seus habitantes e é daí que se lhe pode sentir o pulso. Lembrei-me disto quando, levado por um amigo, fui a um restaurante modesto na fronteira de Alfama. É um desses típicos estabelecimentos que não quer distracções para os seus comensais: a sua decoração consiste na ausência de decoração e o que conta é mesmo o que se come. Mas este lugar é especial: o seu guardião – o senhor Eduardo – é uma figura única, profundamente lisboeta mesmo que não tenha nascido aqui. Franzino, com pouco mais de 1,60 e um rosto que por vezes poderia lembrar Putin se o ditador soubesse sorrir, o senhor Eduardo não se inibe em partilhar a sua sabedoria com os clientes. A máscara sanitária que tem de utilizar realça o brilho dos seus olhos enquanto discorre sobre os mais variados assuntos. Que digo eu?, sobre todos os assuntos. E fá-lo num português imaculado, pausado. Por vezes inventa neologismos, que se apressa a explicar. Outras sugere teorias para o que quer que seja. Utiliza palavras pouco comuns em contextos agora comuns, como “remição” a propósito do recolher obrigatório e no sentido de nos resgatarmos a nós próprios.

Num país onde abundam os tudólogos, o senhor Eduardo, no seu conhecimento imaginativo e renascentista, é um alívio e um prazer. Por causa dele jurei voltar ao pequeno restaurante. Porque gosto de ver a vida viver, gosto de pertencer onde quero pertencer.

24 Nov 2020

A Covid-19 e o confinamento

“One moment of patience may ward off great disaster. One moment of impatience may ruin a whole life.” – Chinese Proverb

 

[dropcap]O[/dropcap] medo revela-se um aliado inestimável ao pressionar-nos a aplicar rigorosamente as medidas de confinamento a que fomos forçados durante semanas. Incendeia o nosso armamento de defesa emocional, e leva-nos à coragem. Sim, porque a coragem vem do medo, da consciência do perigo, e não da inconsciência. A coragem guia o nosso medo à acção, e impede que o medo nos imobilize, e nos torne demasiado passivos. O medo muda a nossa atenção, a coragem excita-nos. Todos os dias enfrentamos os pequenos gestos da vida quotidiana que antes faziam parte da nossa simples rotina e que agora, em vez disso, nos confrontam com os nossos medos como ir às compras, sorrir para os nossos filhos, sair de casa para ir trabalhar, sem esquecer as nossas responsabilidades. Numa emergência, estes são actos de coragem. Não devemos estar inconscientes, mas sim destemidamente corajosos.

O bloqueio, ao qual somos obrigados a defender-nos contra o contágio, restringe severamente as nossas liberdades individuais e colectivas, e foi duramente digerido pela maioria de nós. Mas agora aprendemos a não tomar por garantida a inocuidade de encontrar outros, compreendemos que “outros” podem ser perigosos portadores involuntários de um inimigo invisível, e isto independentemente do seu carácter, comportamento, aparência; para além das nossas percepções deles. Se até ontem a escolha das relações sociais se baseava no nosso instinto, na sensação positiva ou negativa que a pessoa provocava em nós, a partir de agora os outros representarão uma ameaça pelo simples facto de serem humanos. Portanto, em frente dos outros jogaremos à defesa a priori, evitaremos divertimentos e seremos muito mais cautelosos, pelo menos até nos sentirmos seguros, ou seja, quando a emergência terminar se e é que alguma vez acontecerá.

O que a ciência sugere a este respeito? Parece que o isolamento social, e a solidão que lhe está associada, têm um efeito negativo na saúde, aumentando mesmo a mortalidade entre as pessoas que a vivem há muito tempo. Um interessante estudo realizado em 2015, pelo Departamento de Psicologia da Universidade Brigham Young que analisou setenta estudos publicados para um total de mais de quase quatro milhões de participantes, durante uma média de sete anos, relatou um aumento na probabilidade de morrer de 26 por cento devido à solidão e 29 por cento devido ao isolamento social. Neste estudo fala-se do efeito do isolamento social prolongado e da solidão, que não coincidem com o longo aperto que estamos a viver nesta pandemia, mas que pode tornar-se importante se, após a emergência, persistir a tendência para o isolamento impulsionado pelo medo armazenado na nossa memória emocional.

De certa forma, temos de nos preocupar não só com a recessão económica, mas também com uma possível recessão social, ou seja, o estabelecimento de um hábito à distância de outros, que poderia ter efeitos negativos na saúde mental e física das pessoas. Entretanto, quase todos nós vivemos em isolamento social ou, em alguns casos, numa verdadeira quarentena sanitária. O confinamento em casa, a distância das pessoas que amamos, do sorriso e dos amigos despreocupados que não vemos há muito tempo, e que com o tempo se tornaram os nossos melhores antídotos para o stress, aumenta o sentimento de solidão; não nos permite diversificar a atenção da nossa mente; amplifica o conflito na família “forçada” e desencadeia a desagradável sensação de não sermos livres.

O isolamento e o sentimento de estar em perigo condicionará a nossa ideia de socialidade no próximo período e, pouco a pouco, poderá insinuar dentro de nós o hábito de evitar os outros, a rotina de nos acostumarmos a uma espécie de egoísmo protector que nos pode iludir a acreditar que somos suficientes, perdendo o extraordinário e poderoso efeito de desenvolvimento e crescimento pessoal que a solidariedade e as relações sociais trazem consigo. O sentimento inevitável de solidão que estamos a experimentar não ajuda o nosso humor, que é normalmente influenciado pelo contacto com os outros, mesmo fisicamente como um aperto de mão, um beijo, um abraço e a proximidade dos corpos transmitem emoções fortes, muitas vezes positivas e energizantes. Privados das nossas relações, sentimo-nos mais tristes e a nossa mente responde mais facilmente ao desconforto com emoções negativas e defensivas como o medo e a raiva.

Mas se a distância física de colegas, amigos, pais, avós podem desencadear tais tipos de reacções emocionais, por outro lado também a proximidade forçada sem possibilidade de “fuga” com colegas de quarto, cônjuges e filhos pode ser uma fonte de stress e dificuldade. Antes de mais, de repente, perdemos aqueles espaços vitais pessoais que sempre nos permitiram desabafar e distrair-nos para recarregar as nossas baterias emocionais para usar no encontro com os nossos familiares e coabitantes, aumentando assim os níveis de stress e conflito. Os ritmos, rituais e espaços da nossa vida quotidiana são limitados pela presença constante daqueles que vivem connosco, dando-nos por vezes a sensação de asfixia.

As pessoas que vivem sozinhas, por outro lado, podem experimentar uma sensação inicial de abundância do tempo disponível e podem utilizá-lo para se dedicarem a actividades criativas e recreativas, ou profissionais, intensas. No caso específico desta pandemia, a pessoa sozinha em quarentena sente uma aparente sensação de segurança, considerando que, como os especialistas têm repetidamente dito, aqueles que passam o isolamento sozinhos têm menos probabilidades de serem infectados. Mas, pelo contrário, sentem medo e ansiedade sem a possibilidade de apoio imediato e directo de pessoas a quem estão afectivamente ligados, com o risco de cair num estado depressivo temporário e contingente. Com o tempo também pode surgir uma sensação de vazio e tédio, especialmente se não se pode trabalhar à distância, o que corre o risco de conduzir a uma verdadeira ansiedade, ligada ao facto de a escolha de viver sozinho raramente ser ditada pelo desejo de evitar relações sociais.

Assim, estar completamente sozinho durante muito tempo pode, por um lado, acender uma sensação de domínio do próprio tempo e da vida, mas por outro lado pode levar a um sentimento angustiante de vazio relacional e, em alguns casos, para sujeitos psicologicamente mais fracos e existenciais. A quarentena pode ter efeitos positivos? Certamente que a suspensão de muitas actividades da nossa vida diária pode ter consequências inesperadas na nossa forma de viver, agir e pensar. O isolamento, a limitação das liberdades obriga-nos a não fugir de nós, permite-nos medir-nos com as dificuldades relacionais ou familiares que muitas vezes evitamos. Pensar, reflectir, ouvir, meditar, ler são acções favorecidas pela quarentena, que nos permitem tomar mais consciência de nós. O tempo dilatado, a possibilidade de interromper os automatismos da vida antes de nos levar a abrir os olhos ao que somos e a confrontar-nos com o significado da existência.

A quarentena, com o seu sequestro da liberdade e a incerteza para o futuro que a acompanha, isenta-nos de muitos deveres e impõe uma reclassificação das nossas prioridades e valores. E assim, neste tempo suspenso não é possível dizer “não tenho tempo”. Os livros, os nossos parentes mais próximos, a música que escolhemos, mas que ouvimos muito pouco, voltam para atrair a nossa atenção e regressam à vida. É de lembrar que no isolamento, pode prestar atenção às actividades que “não tinha tempo de fazer antes”. Será que nos tornámos todos obsessivos? O sentimento mais estranho e peculiar que nos pode invadir desde o surto da pandemia é a experiência de nos identificarmos com pacientes que sofrem de obsessões de contaminação e de compulsões de lavagem. Bem, todos nós, mais ou menos, nos tornámos obsessivos sobre a limpeza e talvez, neste momento, os que sofrem de atenção excessiva à limpeza devido a distúrbios psiquiátricos possam ter uma vantagem sobre nós. Sabem como o fazer e estão treinados para o fazer.

A obsessão pela contaminação e a atenção compulsiva à limpeza não são por si só a expressão de um mecanismo errado, mas numa situação normal representam a distorção, levada ao excesso e sem necessidade real, de comportamento útil e funcional. Se o contexto mudar, a compulsão à higiene torna-se salvífica. É por isso que, durante a epidemia, ter muito cuidado com o risco de contágio, e activar todas as precauções úteis, como a desinfecção e a limpeza, pode salvar as nossas vidas e dos que amamos. Neste momento, prestar atenção à higiene é funcional, enquanto anteriormente um cuidado maníaco de limpeza e desinfecção teria sido exagerado e desnecessário. A verdadeira questão é, no entanto, o que irá acontecer no futuro próximo.

O nível de protecção contra possíveis infecções e a atenção à higiene e limpeza irá aumentar, talvez exageradamente, e poderá ter consequências psicológicas negativas, se confirmar uma das teorias recentes, segundo a qual o saneamento excessivo na sociedade contemporânea poderia ser um dos factores relacionados com o aumento dos casos de depressão. Não esqueçamos que cada vez que usamos um desinfectante forte e lavamos as mãos repetidamente, de facto, não só destruímos o possível coronavírus da actual epidemia, SRA-CoV-2, mas também várias centenas de tipos de microrganismos inofensivos, a flora bacteriana residente, cujo desaparecimento pode deixar o campo à colonização de microrganismos patogénicos. E a sua presença pode activar a reacção inflamatória do organismo e algumas substâncias particulares no sangue, citocinas, que podem modular negativamente o estado de espírito.

Após esta fase de alarme, devemos ser capazes de respeitar não só o ambiente macroscópico (poluição, etc. …), mas também o ambiente microscópico que coopera e protege o nosso corpo, que o filme A Guerra dos Mundos com Tom Cruise nos ensinou a apreciar. Como podemos medir-nos contra o medo da morte e distanciar-nos dos membros da família na doença e no fim da vida? A ameaça deste microrganismo perigoso e invisível, o isolamento social, o distanciamento dos membros da família, juntamente com a terrível desolação daqueles que morrem, como resultado da COVID-19, sem estarem rodeados pelo afecto dos entes queridos, fazem com que o tema da morte emerja esmagadoramente em todos nós. E a morte traz inevitavelmente consigo a emoção negativa do medo. As imagens, os artigos dos jornais, as notícias, os números das vítimas, que são diariamente recolhidos, trazem à tona, neste tempo dilatado, a consciência da morte como um facto possível e real.

E é um medo que ultrapassa e aumenta a sensação de mal-estar, empurrando-nos para nos distanciarmos cada vez mais um do outro. Enquanto o espectro da morte invade inevitavelmente as nossas mentes, a sensação de que os nossos filhos parecem estar a salvo dos efeitos mortais desta epidemia dá-nos uma sensação de serenidade e de força relativa. Precisamente porque esta pandemia nos mostra que não teremos necessariamente tempo para saudar e honrar as pessoas que amamos antes que a morte as afaste desta existência terrena, devemos aprender a recordar a sua presença nas nossas vidas todos os dias. Um pouco como os samurais japoneses, a quem foi ensinada a importância de honrar os seus pais todos os dias por causa da constante espreita da morte. Talvez mesmo, a pandemia possa ensinar-nos a não adiar a nossa atenção diária aos nossos pais que nos visitam e que ouvem os nossos avós ou aos nossos amigos mais velhos, e pode devolver-nos o verdadeiro, e não retórico, sentido de família. Vai confrontar-nos com a natureza fugaz do tempo, com a nossa vulnerabilidade.

É de lembrar que não adiar a escuta dos nossos entes queridos devolver-nos-á a sensação de autenticidade de viver perante o espectro da morte. A incerteza do futuro após a quarentena é uma fonte de ansiedade ou um impulso para a mudança? A vida é feita de constantes mudanças e desafios, e tudo nos mantém vivos e permite-nos crescer e ficar mais sábios, mas qualquer mudança, boa ou má, quebra o nosso equilíbrio e coloca-nos numa situação momentânea de dificuldade e crise. Este aspecto da vida é particularmente verdadeiro nestes dias de emergência sanitária. No estado de suspensão em que vivemos, imobilizados pelo medo, à espera de saber o que vai ser da nossa vida anterior, a incerteza sobre o futuro próximo e a mais remota faz-nos ter mais medo. Esta mudança no nosso modo de vida representa um momento de crise, uma ruptura com o passado, com o que temos sido até agora.

As estratégias que temos à nossa disposição para enfrentar a crise da mudança são essencialmente duas; por um lado podemos antecipar o acontecimento que induz a mudança, tentando minimizar o seu efeito no nosso equilíbrio; por outro lado podemos contar com os nossos recursos pessoais para responder à mudança, enfrentando-a quando ocorre e alterando o nosso equilíbrio para nos adaptarmos. Estas duas formas de responder à mudança reflectem duas necessidades que estão no centro das necessidades humanas; por detrás da antecipação encontramos o impulso para a segurança, enquanto a necessidade de liberdade é o que nos faz responder. A neuropsicologia dos nossos mecanismos de defesa é geralmente uma combinação de antecipação e resposta. Antecipação significa impedir que coisas novas nos mudem, alterando o nosso equilíbrio.

A preparação para a mudança, evitando perturbar o nosso equilíbrio e tranquilidade, é certamente um bom mecanismo para nos proteger de possíveis riscos, mas muitas vezes retira a riqueza que o novo traz. A antecipação é característica da ansiedade. A ansiedade apresenta-se antes de uma mudança como um sinal dos riscos que a mudança acarreta, e induz-nos a correr para o abrigo para evitar que essa subversão nos modifique. A ansiedade trabalha para manter o nosso equilíbrio interno, não para mudar. Foi o que fizemos na primeira fase da nossa reacção à pandemia. Abrimos a porta à ansiedade para nos protegermos contra os efeitos perturbadores deste novo e perigoso vírus. Evitámos encontros com as nossas famílias, limpámos, comprámos máscaras, etc. Defendemo-nos com ansiedade e angústia contra o inimigo invisível. Foi, e ainda é, uma estratégia vencedora. Responder significa enfrentar a mudança, tentando adaptar-se a si e ao seu comportamento às novas situações que surgem. Certamente, esta forma de lidar com contextos inesperados apresenta alguns riscos e inconvenientes consideráveis.

O responder envolve mais esforço e menos tranquilidade e por vezes algum risco demasiado grande, mas é isto que teremos de fazer na fase dois da reacção pandémica da COVID-19. Teremos de passar da rigidez da antecipação para a flexibilidade da adaptação. Na emergência que estamos a viver, de facto, a nossa esperança inicial e sincera de que o confinamento termine em breve e possamos regressar ao mundo, com os nossos velhos hábitos e os nossos rituais estabelecidos, desvanece-se com o passar do tempo e, com ele, a possibilidade de restabelecer o equilíbrio antes da emergência (aquela normalidade que nos deu segurança), até sentirmos a urgência de um novo equilíbrio. Será necessário romper com o passado, e será necessário empreender um caminho difícil, talvez nem mesmo curto, que nos poderá conduzir, no entanto, a uma nova relação connosco e com a sociedade, mais rica e mais humana. E então a pandemia poderia ser a importante oportunidade de crescer em conjunto. É de não olvidar que será necessária uma ruptura com o passado para iniciar o caminho da recuperação.

4 Set 2020

Gordofobia Persistente

[dropcap]O[/dropcap] recente confinamento trouxe os mais variados discursos sobre o corpo e o aumento de peso. Desejos de dietas pós-covid estão ao rubro. O tempo de confinamento trouxe ansiedades, muitos desejos de comida e movimento de menos. O sedentarismo não é dos estados mais aconselháveis ao corpo, de facto. Mas é sempre intensa a forma como se teme ser-se gordo, ou engordar. E aqui surge a gordofobia.

A construção da gordura como má pode alterar-se com os tempos. Houve épocas em que a gordura era boa de forma mais hegemónica. Agora é que fomos induzidos a pensar que a magreza é um estado último, e que todos estão em algum caminho para alcançá-la. Basta folhear as páginas das revistas e dos jornais para perceber que há pouco espaço para os corpos que não se encaixam nesta visão limitada de beleza. Quantas vezes é que os filmes utilizaram a narrativa da rapariga ‘cheiinha’ que sofre uma transformação e a sua vida muda por completo, e para melhor?

Repreender o corpo com gordura, seja das mais variadas formas, só gera mais ansiedade, desconforto e sofrimento. E claro, a tendência de responsabilizar as pessoas pelas suas gorduras torna a conversa demasiado simples. Assumir que a gordura é um produto da vontade desresponsabiliza as dinâmicas socio-culturais que contribuem para o problema também. A gordofobia é uma delas. Já se documentou todo o tipo de discurso de ódio. Desde comentários nas redes sociais até um episódio, no mínimo, caricato, onde cartões foram distribuídos pelo metro de Londres por um grupo que odiava gordura, gordos e tudo o que isso representa.

A gordofobia nem sempre é assim tão declarada. A discriminação mais silenciosa está na forma como os espaços foram criados para um tipo de corpo. As cadeiras dos espaços públicos são desenhadas para certas pessoas e as lojas de roupas não servem a todos. Não ajuda, também, que a OMS tenha definido a obesidade como uma epidemia – apesar da intenção ser boa. Esta nomenclatura perpetua a narrativa de que é necessário travar uma guerra química e médica contra tudo o que é gordura. A investigação mostra como esta classificação não incentiva atitudes e/ou comportamentos que ajudem a mitigá-la. Pelo contrário. Ler noticias sobre a epidemia da obesidade faz com que a discriminação contra a gordura aumente.

Estas dinâmicas não se ficam pelos meios de comunicação social, ou no simples dia-a-dia. As comunidades profissionais e médicas têm sido acusadas de um viés anti-gordura, sob diagnosticando problemas sérios à conta disso. Os depoimentos são terroríficos. Cancros que não foram diagnosticados atempadamente porque os profissionais assumiram que a queixa apresentada seria resolvida se o paciente emagrecesse.

Mesmo sabendo que o índice de massa corporal possa não ser um bom indicador de saúde, persiste a ideia de que as gorduras se associam à preguiça, gula e doença, e as magrezas à energia e saúde.

Começou a ser necessário contestar estes estereótipos, e é o que vários activismos estão a tentar fazer; criando novas linguagens e formas de estar. Ainda assim, neste posicionamento onde a gordura é orgulhosamente apresentada, sem desculpas e justificações, percebemos a forma ainda deficiente que a sociedade tem em lidar com a diferença de corpos. É preciso contrair a surpresa e resistência sociais. A aceitação do corpo é importante a vários níveis, seja o corpo grande, pequeno, às bolinhas e nas gradações da diferença. Só com aceitação é que se pode atingir um estado necessário para o bem-estar individual e colectivo. O medo generalizado de que a aceitação da gordura cria mais gordura é despropositado. O mais importante neste momento é lutar contra a tentativa de invisibilizar os corpos – e não cometer a violência de fazer desaparecer as pessoas que neles habitam.

22 Jul 2020

Das belezas do confinamento

[dropcap]N[/dropcap]a terceira semana de Março escrevi um texto intitulado ‘As belezas do confinamento’ que, sem cair na verve das perversidades, se dava a si a tarefa de elencar um conjunto de (inesperadas) mais-valias que o confinamento nos estaria a proporcionar. Tratava-se de entender a órbita de outros mundos onde, de repente, havíamos caído sem pára-quedas, sem preparação e sem capacidade de ajuizar e até de crer.

Desse texto – que quase chegou a ser um ensaio – recorto agora apenas o essencial, transformando-a num segundo texto, filho do primeiro. Reflexo óbvio do efeito guilhotina do tempo. Aqui fica para memória futura a breve lista das possíveis ‘belezas’ do confinamento, tal como, em Março deste ano, se podiam desvendar, muitas delas, entretanto, já diluídas pelas ameaças de normalidade do quotidiano (nunca gostei dos abcessos da normalidade, mas não é isso que me faz ter qualquer prazer diante da anormalidade trágica da pandemia, sejamos claros!):

1. Viver um tempo indefinido e não sujeito a prazos, ou seja, um tempo de vácuo que dá ao corpo a possibilidade de deambular dentro de si sem limites claros, sem obrigações catalogadas e sem o constrangimento dos fluxos habituais. Por outras palavras: viver a liberdade de poder sorrir com desprendimento na direcção do tédio, consertando-o e sobretudo afastando-o para o seu lugar próprio (que é o de contracampo da vida em massa, da vida da correria que atropela os corpos e que os junta nos cais onde se aguarda o metro ou no solavanco enlatado dos autocarros e dos aviões).

2. Viver o reatar da duração que fazia na infância (na infância das férias grandes) a vez de uma eternidade que se vivia e que permanecia sem interrogações. Essa aparência de estar ‘fora da força da gravidade’, ainda que no interior circunscrito da casa, invade a realidade e concede-lhe uma abertura rara. É como se a vida inesperadamente tivesse estancado, oferecendo-nos a hipótese de entrar numa redoma feita de tempo parado. Ou ainda: é como se pudéssemos entrar numa fotografia e aí nos congelássemos, suspendendo o mundo feito tão-só de tarefas.

3. Viver uma administração mais livre e menos compulsiva do zapping informativo que se traduz pela permissão – que a mim próprio dou – de apenas ver uma hora de notícias televisivas por dia (mesmo se via catch-up tv), evitando a patologia da repetição e o que designaria por persistente anáfora do alarmismo.

4. Viver com intensidade uma poética da nostalgia, isto é, o poder deter-me face à saudade do essencial que nos é oferecido pelo mundo. O sublime sugerido pelas cidades desertas – algo palpável em certas semanas de Agosto – reaparece agora, ainda que com uma outra moldura, mas não deixa de espelhar a mesma melodia de um mundo que sai do nosso mundo do dia-a-dia (como um ovo que sai de outro ovo que parecia ser único), revelando-se, deslocando-se, admirando-nos. O imponderável tem o seu atlas: uma topografia que a nossa cultura tende sistematicamente a esconder, a ofuscar.

5. Uma palavra para o Zoom e outras aplicações que permitem virtualizar os afectos de grupo. Omito neste ponto o lado da eficácia prática a que estes dispositivos estão também felizmente associados e que autorizam que muita da normalidade do mundo persista (e que me permite ainda hoje dar aulas na universidade e ter activas as sessões presenciais da EC.ON – Escola de Escritas). Neste ponto, o que mais me interessa é o modo como o ímpeto do desejo e o ânimo do corpo se dão a ver nas quadrículas virtuais que preenchem o cristal líquido dos monitores. Aí o que ressalta é uma exaltação emotiva que não consegue hibernar: acenos que escapam à pose, faces que caminham para o outro, olhares que não se confinam à força. Uma beleza cáustica, talvez mordaz, mas uma beleza.

6. Não me esqueço de concluir com um aceno final à involuntária e provisória guerra que o planeta foi obrigado a lançar contra a poluição. A inocência de muitos viu nesta situação uma aura salvífica e não apenas um lance efémero de dança. A ponto de terem ficado exaltados com o facto de algumas espécies das zonas dunares como a chilreta e os borrelhos estarem a ocupar áreas maiores do que em anos anteriores. Nada mau.

Referir mais-valias com este pano de fundo pode parecer bizarro, porque a pandemia perturba a memória, banaliza a morte, enclausura os gestos, faz envelhecer e frustra intensa e profundamente. Mas o repto era esse mesmo: tactear uma ambição solar no meio da anunciação trágica.

11 Jun 2020