Sara F. Costa Expectoração h | Artes, Letras e IdeiasDe Pequim para a alma americana O primeiro filme que vi da realizadora chinesa Chloé Zhao foi o “The Rider”. Um conto no faroeste contemporâneo que segue a vida de um cowboy num momento de crise. O clássico percurso do herói em busca de significado é introduzido com uma poderosa abordagem emocional e pontua instantes de reflexão com outros de grande empatia. Uma personagem que nos leva para dentro interpretada por um ator amador que é, ele mesmo, um verdadeiro competidor de rodeios. A dimensão psicológica e intimista do filme permite-nos palmilhar várias questões sobre género e identidade no coração da América. Agora, mais conhecida por Nomadland e os seus inúmeros Óscares, Chloé apresenta-nos uma história com uma estrutura menos clássica mas que recorre a esta técnica de recrutar atores que são a personagem que interpretam. Não é o caso da personagem principal, mas é o caso da maior parte das personagens que surgem no filme. Contudo, a experimentação de Chloé não acaba na técnica de filmagem e de construção das personagens. Sabendo que é pequinense, surge uma questão muito imediata “mas como é possível, uma chinesa descrever com tanta precisão problemáticas da identidade colectiva americana?”. Naturalmente, Chloé teve formação no estrangeiro e viveu em Los Angeles e depois Nova Iorque. Não se propôs, certamente, a explorar estes temas sem neles imergir. O seu trabalho, contudo, deixa bem claro como uma visão externa é tantas vezes mais lúcida do que uma visão interna. Esse distanciamento, tão útil para se abordar diversos tópicos com perspetiva diferentes, sofre, em simultâneo, de uma total ausência de enquadramento. Esse desenquadramento pode ser visível, por exemplo, na sua falta de agendas. Por vezes, em alturas em que os cunhos ideológicos se enfatizam em tudo o que é manifestação pública, é também bom lembrar que a arte não tem que cumprir essa missão. A sua missão não é conduzir pensamento, é antes expor-lhe desafios e envolver os sentidos, mais do que a razão. A jornada de uma mulher pelo luto coincide com as notáveis paisagens do Oeste americano. Se, por um lado, podemos ver a personagem a recusar-se a viver de uma forma que lhe seria mais confortável, por outro, há um sentido de auto-exclusão social intencionado, reforçado e assumido ao longo da breve narrativa. Ela é, como tantos outros nómadas que fazem daquele um estilo de vida, uma refugiada do mercado laboral. Com essa escolha vem a precariedade. Estas são pessoas que se apercebem que existir é suficiente até porque, na maioria dos casos, elas padecem de um incurável sentimento de perda. Não penso que o filme queira, em algum momento, desculpabilizar o estado do mercado laboral. A crueza da exposição sente-se em forma de tensão em todo o filme. Esta desenvolve-se, não em torno do conflito entre personagens mas antes do conflito da personagem principal com todo o seu ambiente. Ela não lhe é cúmplice. Fern não precisa de uma companhia que a volte a tornar estática. O movimento é agora a única realidade possível. Não há glamour em defecar numa carrinha mas há glamour em viver à margem das regras. Viajar como se o que interessasse não fosse o destino mas antes a forma como se viaja – dentro de um permanente pôr-do-sol do deserto. A luz que acaba mas não sem antes projetar um tipo de deslumbramento que qualquer um de nós pode apreciar com todo o luxo dos próprios sentidos.
Hoje Macau EventosCinema | Cloee Zhao é a primeira mulher asiática a ganhar um Globo de Ouro O filme “Nomadland – Sobreviver na América” deu, pela primeira vez, um Globo de Ouro nos EUA a uma mulher oriunda do continente asiático. Cloee Zhao, nascida na China mas a viver nos EUA há muitos anos, levou o galardão para casa. Cloee Zhao tornou-se também na primeira mulher a conquistar esta distinção desde Barbara Streisand, em 1984 A realizadora Chloe Zhao, nascida na China, tornou-se ontem na primeira mulher de origem asiática a obter um Globo de Ouro, nos EUA, pela realização do filme “Nomadland – Sobreviver na América”, que obteve igualmente o prémio para melhor drama. Zhao é além disso a primeira mulher a conquistar o prémio desde Barbara Streisand, com “Yentl”, em 1984, numa categoria em que apenas estas duas mulheres receberam aquela distinção. Cloee Zhao nasceu em Pequim em 1982 mas foi criada em Inglaterra e Nova Iorque. Actualmente vive na Califórnia, EUA. O seu filme de estreia foi “Songs My Brothers Taught Me”, lançado em 2015, seguindo-se “Rider”, lançado em 2018 e premiado em Cannes. Em ambos, Cloee Zhao reinventou os célebres westerns norte-americanos. Numa entrevista ao The Guardian, a realizadora declarou que tanto a América como a China são a sua “casa”. “Tenho família lá [na China] e foi onde nasci. Espero pelo dia em que possa ter dupla nacionalidade, porque a China não permite isso actualmente. Não posso esperar pelo dia em que possa ser cidadã de ambas as minhas casas”, acrescentou. A 78ª edição dos Globos de Ouro, prémios de cinema e televisão da Associação da Imprensa Estrangeira em Hollywood, distinguiram também Chadwick Boseman a título póstumo, como melhor actor dramático, numa cerimónia em que a Netflix foi a grande vencedora. O actor, que morreu em 2020, aos 43 anos, foi premiado pelo seu papel no filme “Ma Rainey: a mãe do blues”, de George C. Wolfe. “The Crown” arrecada 4 Globos A plataforma de streaming Netflix, que contava com 42 nomeações, venceu a maioria dos prémios para televisão, com a série “The Crown”, que contava com seis nomeações, a obter quatro globos de ouro, incluindo o prémio para melhor série de drama. A série, que reconstitui a vida da família real britânica, recebeu ainda prémios para os actores Josh O’Connor (no papel de príncipe Charles), Emma Corrin (princesa Diana) e Gillian Anderson (Margaret Thatcher). A popular série “Gambito de Dama” venceu na categoria de melhor minissérie, tendo a protagonista, Anya Taylor-Joy, obtido também o prémio de melhor actriz. O filme “Mank”, de David Fincher, que liderava as nomeações na área do cinema, foi o grande perdedor da noite, não tendo conquistado qualquer prémio. “Mank” estava indicado em seis categorias, incluindo as de Melhor Drama, Realização, Argumento (para Jack Fincher, pai do realizador), e Actor em Drama, para Gary Oldman. O filme “Os 7 de Chicago”, de Aaron Sorkin, também exibido pela Netflix, obteve o Globo de Ouro na categoria de melhor argumento. Sasha Baron Cohen, que estava nomeado na categoria de melhor actor dramático pela participação no filme de Sorkin, acabaria por vencer o prémio como actor de comédia ou musical, por “Borat 2”. “Minari” melhor filme estrangeiro O prémio de melhor actriz num filme dramático foi para a cantora Andra Day, por “The United States vs Billie Holiday”, com a britânica Rosamund Pike a vencer na categoria de comédia ou musical por “I Care a Lot”. Jodie Foster obteve o prémio na categoria de melhor atriz secundária, pelo papel no filme “The Mauritanian”. Daniel Kaluuya conquistou o Globo de Ouro para melhor actor secundário pelo filme “Judas and the Black Messiah”. O Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro foi para “Minari”, de Lee Isaac Chung, batendo “Another round”, de Thomas Vinterberg, “Uma vida à sua frente”, de Edoardo Ponti, protagonizado por Sophia Loren, “La llorona”, de Michael Chaves, e “Deux”, de Filippo Meneghetti. A cerimónia realizou-se dias depois de uma investigação do jornal Los Angeles Times ter questionado a relevância e a credibilidade da Associação de Imprensa Estrangeira em Hollywood (HFPA, na sigla inglesa) na indústria cinematográfica nos Estados Unidos. O jornal traçou uma imagem de actuação duvidosa, proteccionista dos seus membros e desligada da realidade, revelando que há membros da associação a receberem remunerações avultadas, cuja proveniência não é transparente, e nem todos são efectivamente jornalistas. Este ano, a associação foi amplamente criticada por ter excluído das nomeações dos Globos de Ouro várias produções que são potenciais candidatos aos Óscares, como “Da 5 Bloods – Irmãos de armas”, de Spike Lee, “Judas and the Black Messiah”, de Shaka King, e “Ma Rainey: A mãe do blues”, de George C. Wolfe.