Cláudia dá uma lição a Kant

[dropcap]C[/dropcap]láudia R. Sampaio é uma artista florescente. O trabalho visual que vem criando nos últimos anos é uma ascese que acasala tradições de luz e visão (ou de utopia e apocalipse), através de figuras aparentemente sem território, mas que, apesar disso, voam, vogam e vagueiam habitando assim essa ausência como se cumprissem uma promessa antiga.

No campo da poesia, a Cláudia é autora de vários livros, editados entre a Douda Correria, a Tinta da China e, já este ano, na Elogio da Sombra/ Porto Editora (nomeadamente ‘Os dias da Corja’, ‘A primeira urina da manhã’, ‘Ver no escuro’, ‘1025 mg’, ‘Outro nome para a solidão’ e Já não me deito em pose de morrer’).

Acompanhei esta rica produção poética com proximidade e recordo – agora que a pandemia nos estoura as têmporas – os fins de tarde luminosos no Irreal, na Mymosa e naquele amplo bar-salão ao pé da Sé onde a Cláudia sonhou construir um recife de ouro.

A Cláudia é uma das artistas residentes do projecto ‘Manicónio’, um espaço no Beato onde artistas com doença mental trabalham. No seu segundo livro, as atmosferas e memórias deste padecimento – nem sempre socialmente entendido – ressurgiram com cristalina clareza: “as miúdas poéticas contemplam o suicídio/ mesmo depois de uma taça de Corn Flake/ olham/ os telhados laranja de Lisboa/ e pensam noutro sítio qualquer/ semeiam flores para terem perfume/ matam-nas, por amá-las de mais”. Como ela própria referiu, numa entrevista à revista Sábado, “Com as palavras, tudo é possível, fazem-me sentir infinita”.

Vem toda esta evocação – que paradoxalmente me surge com apertada nostalgia – a propósito de um texto de Kant, datado de 1764, que eu desconhecia completamente, e que foi traduzido, há uma década, por Pedro M. Panarra na ‘Revista Filosófica de Coimbra’. Intitulado ‘Ensaio sobre as doenças da cabeça’ e publicado numa revista da sua cidade (a ‘Königsbergischen Gelehrten und politischen Zeitungen’, de que era editor e fundador o seu ex-aluno Johann Hamman), o texto terá sido motivado por um acontecimento concreto.

No ano anterior, no início do Outono de 1763, apareceu nos arredores de Königsberg um polaco chamado Jan Komarnicki com “aspecto esfarrapado” e atitudes de fanático religioso a que chamavam “profeta das cabras”, por responder a qualquer solicitação que lhe fosse dirigida através de versículos bíblicos que sabia de cor. O homem convivia com perturbações alucinatórias e a sua presença deverá ter sido muito marcante na altura, ao ponto de lhe ter sido dedicado, na mesma revista, um artigo de Hamman em jeito de reportagem. O artigo de Kant, muito racional e geométrico na sua organização, surgiria poucos meses depois.

O texto, após uma curta introdução, é particularmente assertivo. Escreve o autor: “As deficiências da cabeça perturbada dividem-se numa multiplicidade de categorias”, mas “julgo que podem ser ordenadas segundo as três divisões seguintes: (1) a inversão dos conceitos empíricos no desarranjo (Verrückung), (2) a faculdade de julgar posta em desordem por esta experiência empírica, no delírio (Wahnsinn) e (3) “a insânia (Wahnwitz) em que a razão é invertida no que concerne a juízos mais universais.”. E continuava: “todas as demais manifestações do cérebro doente podem ser entendidas, no meu parecer” (…) “de maneira que as podemos subordinar à classificação anterior.”.

Os exemplos destes três “males” assim categorizados surgem depois ao longo do artigo.
O primeiro, relativo à inversão e ao desarranjo, decorreria do facto de nós humanos estarmos quase sempre “ocupados a pintar imagens de coisas que não estão presentes ou a completar as semelhanças imperfeitas entre as coisas presentes na representação, através de um ou outro traço quimérico próprio da nossa faculdade poética criadora (schöpferische Dichtungsfähigkeit)”, facto que pode, de um momento para o outro, passar a dominar e a impor-se à nossa vida dita “normal”.

O segundo, relativo ao delírio, remeteria – com algum desdém bem visível no tom – para a soberba e para uma certa forma de melancolia: “um soberbo é um delirante que escarnece da conduta dos que o fitam” e “o melancólico é um delirante devido às suas suposições tristes ou ultrajantes”.

O terceiro, relativo à insânia, incluiria as “inumeráveis intuições subtis que se enxameiam no cérebro em ebulição: o comprimento dos mares, a decifração de certas profecias, e sabe-se lá que outras misturas de quebra-cabeças fúteis.”. A esta capacidade de ultra-imaginação soma o autor a perdição, digamos, total: “Quando o infeliz perdeu simultaneamente a capacidade de formular juízos sobre a experiência, então chama-se vesânico (Aberwitzig)”.

As três categorias, como Kant se lhes refere, fazem pactuar, ao fim e ao cabo, um ‘excesso’ de disposição poética (aquele que “sonha acordado”) com o delírio (seja dirigida para o exterior, a soberba; ou a si próprio, a melancolia) e, por fim, com a fuga imaginativa face a quem navega sempre ‘com os pés na terra’. Para um autor que, três décadas e meia depois, escreverá um texto fundamental sobre a estética, o génio, o belo e o sublime (‘Crítica da Faculdade do Juízo’), é estranho que nunca tivesse reparado como a loucura e o ‘fazer poético’ são campos afinal tão íntimos, tão envolvido e tão próximos.

Para reparar essa estranheza, Cláudia R. Sampaio dá agora a devida lição a Kant, a bordo do seu ‘1025 mg’, de que ainda me lembro tão bem do lançamento: “O tecto está rente à minha cabeça./ Quero deixar a alma cosida aos hemisférios nocturnos./ Tenho de me parir lenta./ Tenho de me cobrir como um ramo de crisálidas luzentes/ à espera do céu./ Agora tenho tudo porque já vi cair as falésias./ Não sei do ar, não sei dos pais, não sei dos médicos./ Guio-me à existência calafetada de um dente em proa./A minha casa inexiste com o cheiro das praias. (…)”. A genialidade à solta de Jan Komarnicki, o “profeta das cabras”, entenderia bem estas palavras. E eu também. E até mesmo Kant as entenderia, se tivesse conhecido e lido devidamente a poeta. Obrigado, Cláudia.

Panarra, Pedro M. ‘Immanuel Kant – Ensaio sobre as doenças da cabeça de 1764’ (Trad. e introd. de Panarra, Pedro M.) em ‘Revista Filosófica de Coimbra’, Coimbra, Nº 37, 2010, pp. 201-224.

4 Nov 2020

A vertigem de nunca estar a ser 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Ver no Escuro, terceiro livro de poesia de Cláudia R. Sampaio, editado em 2016 pela Tinta da China, o título dá-nos de imediato uma pista. Ver no escuro pode querer dizer várias coisas, entre elas a situação literal de alguém que, em casa ou na rua, se esforça por ver o que está diante de si, envolto no escuro. Por outro lado, ver no escuro, e como título de um livro de poesia, pode muito bem querer dizer-nos, indicar-nos que estamos prestes a entrar num espaço, o do livro, onde alguém escreve como se o mundo estivesse fechado num breu e a linguagem o iluminasse.

Por outro lado, e de um modo mais literal, ver no escuro também é o modo como a autora termina o livro: “fazendo-me ver no escuro” Mas eis a última estrofe do livro: “Agora mato-me escrevendo / e aqui ressuscito em rua beijando pés / Eu sou esta verdade / Sou a desorientada concentração / das noites desertas / E ascendo-me, grata, / com a poesia dançando entre a / vida e a morte, magnífica / tapando-me a boca toda, / fazendo-me ver no escuro” (p. 78) Parece claro, este ver no escuro, para a poeta, é o próprio acto da poesia, o acto de escrever poesia. E, contrariamente à poesia de Catarina Santiago Costa e ao seu Tártaro – lido aqui semanas atrás –, Cláudia R. Sampaio não se vira do avesso, nem convoca uma linguagem à revelia da linguagem dos dias, à revelia da linguagem que levamos à rua. Em Ver no Escuro deparamo-nos com a mesma linguagem que levamos à rua a passear, a mesma linguagem com que agradecemos a quem nos acende o cigarro, mas com uma eficácia poética conseguida através de um desequilíbrio sintáctico. Aqui, é o verso que repõe a dimensão metafísica da linguagem e não a palavra. “Tragam-me um homem que me levante com / os olhos / que em mim deposite o fim da tragédia / com a graça de um balão acabado de encher / tragam-me um homem que venha em baldes / solto e líquido para se misturar em mim / (…)” (p. 39) São inúmeros os versos ao longo do livro, onde a distorção da linguagem ilumina partes escuras da existência. Deixemos aqui apenas mais um exemplo, que se prende com o próprio sentido de ver no escuro, que a poeta quer que se veja, independentemente de nos deixar a liberdade de vermos outros, que nos parecem até mais pertinentes: “Passei todo aquele poema a viver.” (p. 63)

Mas Ver no Escuro é também, ou principalmente, um livro sobre o medo do esquecimento. Quando alguém morre, o seu esquecimento dói muito a quem o amou um dia, e continua a amar. Os primeiros tempos de luto, vive-se no paradoxo de lembrar e da dor da lembrança, que nos faz querer esquecer, e este querer esquecer quantas vezes não faz nascer uma culpa inconfessável? Como se não fôssemos dignos, não estivéssemos à altura do amor que nos foi dado. Ou, na tese mais forte e, paradoxalmente, mais calmante para a existência, como se nada pudesse ser feito contra o esquecimento de quem um dia nos amou tanto. “E no fim são todos cinza” (p. 7), canta a poeta no final do primeiro poema. Mas o esquecimento do outro, para nós e para aqueles que compõe o mundo, não é o único esquecimento que dói, a única ausência que faz vibrar a existência, contorcendo-a de uma dor que parece não existir de facto, uma dor que não é uma pedra sobre um rim, uma pedra sobre um braço, uma pedra sobre a fronte. O esquecimento é uma pedra sobre a existência. Uma pedra a dizer para onde vamos, para onde todos caminhamos. Todos os dias se morre: “Os  dias começam com a despedida / de qualquer coisa / nem a água dura para sempre / nem a cova impiedosa deste colchão” (p.40) Todos os dias o mundo caminha para o seu desaparecimento. Tudo está a desaparecer diante dos nossos olhos. Escreve a poeta, este poema à página36:

Morro todos os dias

especialmente depois do lanche

quando pego no regador fininho

onde despejo o dilúvio dos olhos

e vou regando as plantas

à espera de descendência.

A dor que mais parece macerar a existência, neste livro, é o esquecimento de si mesmo. Tudo caminha, não apenas para deixar de ser, mas para o esquecimento de ter sido, que é não o não-ser, mas o buraco negro do ser. Quem consegue deixar um pai morto transformar-se num buraco negro de ser? Uma mãe, uma avó, um irmã ou uma irmã? Quem, como Orfeu, em podendo, em tendo forças, não vai ao mais fundo dos infernos resgatar o esquecimento desses que o amaram? Resgatar do esquecimento quem o amou é resgatar o próprio amor. Aqui, neste livro, a tentativa de resgate é a do próprio. Orfeu desce ao Hades, não para resgatar a sua amada, mas a si mesmo. Somos nós, cada um de nós, que está morto para si mesmo. Cada um de nós, vivos, ou assim o julgamos, arrasta-se pelo Hades em busca de si mesmo – já tínhamos visto aqui, semanas atrás, algo semelhante no Tártaro, de Catarina Santiago Costa. Escreve Cláudia R. Sampaio: “Estou viva. / E penso que para além de mim / não há quem o saiba.” (p. 62) Estes versos, que ecoam Álvaro de Campos, sublinham a dor de esquecimento que nos assalta e que pode ter estas formulações: se ninguém me sabe viva, estarei eu viva? Se ninguém me lembra, lembrar-me-ei eu de mim mesma? “Existo até à memoria / como um peixe às voltas” (p. 65)

Ver no Escuro é também, ou principalmente, um livro sobre o medo do esquecimento

A memória é tudo. Aqui, Deus é a memória de todos. Só Deus se lembra de tudo e de todos. Só Deus transporta em Si o que alguém foi; não apenas o que é, mas o que foi. E é aqui, neste lugar místico, que o sentido da poesia em Cláudia R. Sampaio aparece. O poema é uma imitação falhada de Deus. Imitação, porque toca os interstícios da existência e faz dela memória; falhada, porque nenhum poema nos leva a nós, a um eu que preste, é sempre uma ficção de eu, uma possibilidade de eu. “E dentro desta anáfora descobri que um  / momento nunca é igual a outro. Como um poema. / Como eu, que nunca sou igual / a mim própria. Às vezes sou eu sem ser.” (p. 63)  Ou ainda, como ela mesma canta acerca do amor: “E agora sou uma esponja e encolho / porque ainda estamos a reduzir-nos / em violentíssimo eco / Adeus, eus, eus” (p. 33) E o que diz acerca do amor pode ser dito acerca de cada um de nós e da poesia, como ela mesma escreve neste verso, à página 58: “não adianta escrever se não somos”. Esta redução do humano à impossibilidade de permanência, ver o humano pelo que não pode, atravessa todo o livro. “E dentro desta anáfora descobri que um  / momento nunca é igual a outro. Como um poema. / Como eu, que nunca sou igual / a mim própria. Às vezes sou eu sem ser.” (p. 63) O humano é o que não é, a não ser em relâmpagos. Pior: o humano é o que já foi, e não há memória que nos salve. “Sou instante.” Mas não se segura o instante. Ninguém é o que é. O humano é aquele que vai sendo. A poeta, nos seus poemas, vive esta vertigem de nunca estar a ser, de sempre ter sido, e de estar arrastar a morte pelos dias até ao desaparecimento completo, até ao buraco negro do esquecimento. “E tudo é outro nome que não este.” (44), termina assim um dos poemas mais longos deste livro. O esquecimento é, podemo-lo dizer agora, apenas o outro lado de não se estar a ser, mas de sempre termos sido. É a parte angustiante do ter sido, o futuro do ter sido. Mas um futuro que não trará uma memória, não trará um passado. O nosso fim, o fim daquele que é ter sido, é um infinito buraco negro. Esta é a vertigem que percorre este livro de Cláudia R. Sampaio, propositadamente ad nauseam. Terminemos com um poema da autora (pp. 70-1):

Sou instante.

É assim que escrevo, com a alma enfiada nos dedos

ou os dedos enfiados nos olhos

miraculosamente sentada, respirando,

sendo a faca cortada ao meio

sendo a coluna um pouco torta perto de

uma janela quase sempre aberta

como se daí viesse tudo.

Talvez a cabeça enfiada neste corpo seja

um grito que vem de outra boca,

ou de asfaltos, ou de peixes voadores.

Talvez este desencontro inscrito em mapas venha

de pássaros desajustados bicando planetas.

Eu devia ser a água vertida em bebedouros imundos,

tornando-os úteis

devia ser a noite de sexo incendiada, em que o fôlego

fosse altar

devia ser do espaço onde me coubesse eu-só

devia ser trocada por três côdeas

ou por um livro do Cesariny

ou por um pranto

Qualquer coisa que me levasse daqui.

Porque eu descalço-me antes de caminhar sobre mares.

Com estes dois pezinhos aprendizes, assim me

vou até ao fundo

e no meio das convulsões e dos impulsos que

me calçam, deverei existir

Que a minha verdade me seja entregue por quem

me entrar no infinito:

ninguém

Não duvido de que ficarei sozinha

e há tanta beleza nisto que tremo toda

enfiando um dedo na eternidade

Podemos ser abandonados por todos

mas seremos imortais por conta própria.

14 Mar 2017