Hoje Macau Cartas ao Director VozesO sucessor [dropcap]R[/dropcap]ecentemente tomei conhecimento de várias entrevistas do padre Peter Stilwell a órgãos de comunicação de Macau, assinalando o fim dos seus dois mandatos enquanto reitor da Universidade de São José (USJ). O essencial das suas declarações deixou-me perplexo, por razões que já adiantarei, e daí decidir rabiscar estas notas. Para que seja clara a minha antiga ligação à USJ, devo dizer que lá fui professor de 2010 a 2013, tendo sido testemunha da mudança de liderança da universidade. A minha ligação terminou, por ter sido despedido pelo padre Stilwell. Como é assunto que não vem ao caso, não refiro as circunstâncias. Apenas digo que nenhum mau sentimento guardo e porque gosto da USJ torcerei sempre pelo seu sucesso. Porque estas palavras, então? A primeira coisa que me chocou nas referidas entrevistas, foi a deselegância com que tratou o seu antecessor. Nem do seu nome se lembra, repetindo a palavra antecessor. Mas, há mais. A falta de solidariedade institucional foi ainda mais longe ao dizer que quando chegou à USJ não tinha dinheiro para pagar salários (é verdade, porém que numa entrevista não tinha dinheiro para os salários de Maio e numa outra eram os salários de Junho que estavam em risco). Ora, o que me espantou nestas declarações é que me lembro de ter visto o último relatório de contas da gestão do antecessor e, devidamente, auditado. Sim, auditado. Esse relatório espelhava a sã situação financeira da USJ e com substanciais lucros no período abrangido. Que se passa aqui? Não sei se são motivos de vã glória dando lustro a um reitor que teria, assim, sido o salvador de uma moribunda universidade; não sei se esquecimento (numa entrevista diz que não se lembra muito bem); não sei se qualquer outo motivo que me escapa. Pela minha lógica racional, prefiro valorizar um documento objectivo, não elaborado pelo antecessor e devidamente auditado. O padre Stilwell aponta com rigor, reconheço, os pontos fortes da universidade. Desde logo, o seu cosmopolitismo. De facto, é verdade que é um privilégio para alunos e professores pertencerem a uma universidade plena de tantas nacionalidades. Uma riqueza inestimável para uma instituição académica. Mas eu, ao contrário do padre Stilwell, lembro-me que essa mais-valia tem um nome. Chama-se Ruben de Freitas Cabral. De um pequeníssimo instituto fez uma universidade onde gente de todo o mundo se entrecuzava fazendo gabar o sucessor. Em segundo lugar, a modernidade tecnológica da USJ. Verdade, de novo. Um facto que, logo em 2010, muito me surpreendeu. A USJ era já uma universidade muito avançada tecnologicamente e onde bytes tinham substituído papel. O sucessor não se lembra do nome do responsável. Eu lembro-me. Chama-se Ruben de Freitas Cabral. Por último, um novo e moderno campus. Caramba, não é que esse campus tem, também ele, o mesmo nome? Sim… Ruben de Freitas Cabral. Não sou indefectível de ninguém e tantas vezes discordei do prof. Ruben Cabral enquanto reitor. Isso é uma coisa. Outra, diferente, é ver árvores quando a floresta se impõe. Nestas entrevistas em jeito de balanço, muito me surpreendeu a ausência de um tópico tão fundamental para uma universidade privada: o número de alunos. Talvez falta de lembrança. Quais são os números desde 2012 até hoje? Ganhou a USJ alunos? Perdeu-os? Não é esta variável imprescindível para um balanço global da última reitoria? Suspeito que a cadeira, com nome, onde o sucessor se sentou oito anos muito tenha encolhido e enrugado. Depois de deixar a USJ em 2013, voltei várias vezes a Macau e mantive sempre contactos com muitos amigos da RAEM, dentro e fora da USJ. A ideia que todos me transmitiram sobre o rumo da USJ, incluía uma nau e incluía, também, muita água a conquistar espaço vital. Certo é que os professores de maior envergadura intelectual e que eu muito respeitava ou foram atirados borda fora ou trocaram de embarcação. Fechou cerca de trinta cursos, afirmou o sucessor. Talvez. Tenho dúvidas mas não quero maçar os leitores com números. Muito bem. Sejam trinta. Necessidade de reestruturação, afirma o sucessor. Não nego as permanentes necessidades de reajustamento numa qualquer instituição. O que me parece é que reestruturação efectuada foi traçada a lápis de merceeiro. Como se pode compreender, por exemplo, que numa universidade tão cheia de diferentes nacionalidades, numa cidade tão vibrantemente multicultural como Macau, se encerre um curso como o de Relações Internacionais? Ao contrário, quase que deveria ser um curso bandeira da USJ. A pobreza da visão estratégica grita-nos aos ouvidos. Por fim, não posso deixar de referir um facto que me deixou atónito e ficará sempre associado à administração do sucessor. O despedimento de um académico por exercer a sua liberdade de expressão. Em 2009, a preparar-me para Macau, perguntei ao Prof. Ruben Cabral se teria alguma limitação na USJ enquanto professor de Ciência Política. A resposta que obtive foi um rotundo não. Que gozaria de todas as liberdades académicas. Como é possível que o sucessor, professor na minha alma mater, a Universidade Católica, onde fiz todos os meus estudos pós-graduação até ao doutoramento, tenha sacrificado princípios basilares por… por o quê? Aconselhava o sucessor a procurar o prof. João Carlos Espada, seu colega em Lisboa e director do Instituto de Estudos Políticos da Católica, e tentar aprender alguma coisa sobre o valor e a tradição da liberdade. Há uma frase muito bela atribuída a Newton que reza: “Construí sobre ombros de gigantes”. E que gigante ele era. Na sua visão geral não veio falar das limitações de Tales, Arquimedes ou Galileu. Limitações e imperfeições que naturalmente tinham. Que todos temos. Gigantes, chamou-lhes. É verdade que pelos séculos fora muitos anões houve. De anões ninguém recorda nomes. Eu próprio só me lembro de um. Chama-se o sucessor.
Hoje Macau VozesAd impossibilia nemo tenetur [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]odia ser uma cena de filme, uma passagem de telenovela ou de qualquer outra narrativa de ficção. Mas foi real, uma realidade extravagante e à medida da desproporção que tanto se tem exibido nos tempos que correm. Aconteceu-me aquilo que, infelizmente, aconteceu já a tantos outros residentes de Macau, e é tão absurdo que me sinto impelida a deixar estampada a perplexidade e indignação sobre o desajuste da actuação das autoridades da RAEM. Desembarcava no terminal marítimo da Taipa após a longa viagem que começa do outro lado do mundo e termina quase 24 horas depois. Se a viagem é habitualmente cansativa, pior ainda com gripe, febre e ouvidos bloqueados, o que foi o caso. Ansiando por um antipirético, um duche quente e uma boa noite de sono, colocava o polegar direito na máquina de identificação destinada a residentes e que abre portas automaticamente após o devido reconhecimento. As portas não abriram, nada que não possa acontecer. Chegou um polícia, o que é normal nestas circunstâncias em que compete às autoridades desbloquear a situação. Só que toda a normalidade acabou nesse preciso momento e o que se seguiu foi, aos meus olhos, pura aberração. O polícia conduziu-me a uma sala ao canto esquerdo de quem chega ao terminal e deu-me indicações para ali ficar. Saiu e deixou-me na sala com algumas cadeiras vazias e um balcão de atendimento sem ninguém. Aturdida pela viagem, gripe e ouvidos bloqueados, tudo me parecia estranho e no vago estava longe de imaginar o que viria a seguir. Não terá passado muito tempo até que um segundo polícia, do lado de dentro do balcão e com uns papéis na mão, me diz num inglês rudimentar “you go court”. Nada me ocorria, absolutamente nada que me levasse a pensar em tribunais. Julguei, por momentos, tratar-se de um caso antigo em que fui roubada, mas esse caso estava resolvido e encerrado. Teria algo ficado por esclarecer? Entre os pontos de interrogação e exclamação que se erguiam, não conseguia perceber coisa alguma a não ser que tinha de ir a tribunal. Continuei a aguardar por informações ou esclarecimentos. A espera foi longa até que surge um novo dado transmitido no mesmo inglês tosco, mas suficiente para perceber que estava relacionado com o carro ou com a condução. Enquanto a espera prosseguia contactei por telemóvel alguns amigos contando o absurdo de estar na polícia do terminal marítimo da Taipa por qualquer coisa que se tinha passado com o carro, alguma multa por pagar, ou algo do género… fosse o que fosse, “pelo amor da santa”, não haveria outra forma de me darem conhecimento? A espera continuava longa. A dada altura e num inglês um pouco mais elaborado sou informada de que seria levada num carro da polícia para a esquadra número 3 e que não poderia usar mais o telemóvel a partir do momento em que entrasse nesse veículo. Não queria crer! O que teria eu feito de tão danoso para ser levada à polícia e ser privada da liberdade de deslocação e de comunicação? Incrédula, angustiada e consumida por tudo o que se estava a passar, fiz a última chamada antes de entrar no carro da polícia. Pela voz de um amigo que domina o cantonês e que falou directamente com o agente da autoridade, fiquei a saber que tinha um mandado de detenção! Um mandado de detenção dirigido a uma pessoa que tem os seus direitos, cumpre os seus deveres, uma pessoa de bem que respeita a lei e os bons costumes. É muito grave! Que teria eu feito de tão atentatório para ser detida à chegada à RAEM e conduzida num carro da polícia à esquadra número 3 em Macau? Estava em choque total. Passavam-me pela cabeça flashes saídos do X-Files, do Twilight Zone, Histórias insólitas, do incrível… Com a mala de viagem, entro na esquadra número 3. Vejo homens e mulheres virados contra uma parede, um polícia a fotografar e a tirar as impressões digitais aos detidos, outras pessoas a serem levadas para uma sala onde ficavam trancadas. Face ao cenário penso: era só o que me faltava fazerem-me isto também! E não é que o fizeram?! Contra tudo o que me era possível supor, fui fotografada, tiram-me as impressões digitais e trancaram-me numa cela onde outras pessoas, como eu detidas, aguardavam o momento seguinte. Qual foi afinal a minha culpa? Soube na esquadra. Ultrapassei a velocidade permitida numa estrada em Coloane que tem por limite máximo 60 km. O radar registou 74 km ao passar o meu carro. Foi em Maio de 2016 e nunca soube da infracção até ao momento em que fui detida. Porquê? Porque mudei de casa e a notificação da multa por excesso de velocidade foi enviada para a morada anterior. Ao mudar de casa fiz a actualização de morada em todos os documentos, incluindo a carta de condução, mas escapou-me um documento: o registo de propriedade automóvel. Foi precisamente esse o documento usado pelas autoridades para chegarem ao meu contacto, mesmo sabendo do meu número de telemóvel que constava do processo escrito em chinês e que me foi mostrado na polícia. Com a multa por pagar, o caso seguiu os trâmites habituais previstos na lei e acabou em tribunal, onde fui julgada à revelia em Novembro de 2016, tendo sido condenada ao pagamento de uma multa de mil patacas ou 10 dias de pena de prisão, caso a multa não fosse paga. Tudo isto aconteceu sem que alguma vez pudesse sequer suspeitar, muito menos saber, que estava obrigada ao pagamento de uma multa ou a ser julgada em tribunal. Entre a infracção cometida e o julgamento à revelia, estive sempre em Macau, a trabalhar no mesmo sítio onde trabalho há mais de 30 anos e sem a mínima intenção de fugir à lei ou às autoridades. Por que é que me trataram como se fosse uma foragida? Ad impossibilia nemo tenetur, ou seja, ninguém está obrigado ao impossível. Ora, para mim era impossível executar uma ordem que nunca conheci e que nunca me chegou. Senti-me tratada como criminosa e por tal humilhada. E para quê tanto aparato em torno de uma situação que, no final, se resolveu na esquadra da polícia com o pagamento da multa e custas do tribunal acrescentadas à conta? Tenho por princípio e norma cumprir as minhas obrigações. Pergunto, estará a RAEM a cumprir as obrigações que lhe competem tratando desta forma os seus cidadãos? Quantos residentes da RAEM foram já importunados à saída de Macau ou à entrada por questões deste género? Sei que não sou caso único e, espantosamente, até há quem ache normal este procedimento das autoridades. Preocupante entendimento. Para mim é completamente defeituoso e por isso não posso calar-me. ANA ISABEL DIAS, Residente Permanente da RAEM