Cânticos

A legenda de um português falado enquanto língua mundial parece-nos agora não estar vedada nas longínquas Nações. Por cá, falamo-lo por coisas tangíveis, mas por vezes basta escutar os que estão longe para saber que distante está a pátria dos grandes iniciados que a pensaram e continuam. Estamos por aqui envoltos em nevoeiros, e tão disformes, que desejamos os Cânticos, mas eles por vezes se nos negam. Estamos combatendo em densa treva.- Não há casas, não há sítios, não há lares, não há vigília. Concomitantemente a estes Cânticos produzidos, fui encontrar ainda a Oriente esta semana, um interlúdio em nossas funções alagadas, dando-me conta que os que nunca partiram não sabem da volta que nos foi destinada. «Via do Meio» e para o Alto! Assim devemos seguir. É Setembro, é Outubro, e vivenciamos o instante em que os acontecimentos se dão. Neste tempo vivemo-los mais ao centro, mais por dentro, a igualdade está presente e é tranquila toda esta Estação.

O Museu de Macau em Lisboa é um reduto silencioso, mas extremamente vivo – e foram precisos séculos para se compreender que a linguagem é uma longa viagem nos confins da nossa humaníssima condição. Traduzimos. Agora talvez com carácter de urgência, que a China é a placa tectónica que desliza, e não podemos alienar-nos pensando que se trata apenas de economia, que quando ela se dá em amplo escalão, já os povos tinham construído suas bases de pensamento.

Que o português será sempre falado, e se formos para os antigos espaços africanos, brasileiros, nos iremos ainda deparar com o melhor da linguagem, e perguntarmo-nos do porquê da nossa desdita. Seria ainda mor vantagem ao português continental, falar e escrever, língua projectável. Mas isso já não se passa. A insensibilidade para o Verbo atingiu as raias de auto-exclusão, e as pessoas falam de coisas, de dogmas, martírios, mas a linguagem nunca deverá ser apenas uma componente moral ou sensitiva, unitária, factual, que a língua cresce e se congrega a todos os futuros adjectivos que a presidem. A linguagem que produz efeitos moralistas é uma antecâmara para a morte colectiva, que a língua existe para compor o Poema, e ser de todos nós língua entendível. Ou seja, nós temos funções, economia, amplexos de personalidade, mas tudo isto não reverbera no transbordo de uma língua bem mais vasta que as nossas abastanças ou necessidades.

O aparelho fonador é o amplexo para aquilo que formaria em nós capacidade falante – esse sopro – mas na palavra escrita, é onde foi construída a nossa origem, afinal “palavras leva-as o vento” e não deixa ser um transtorno reconhecer da falta de espaço ambiental para a produção gráfica de termos novos. Porquê? O grafismo inicial destes alfabetos que afinal não passam de construções visuais, esbarraram diante das imposições visualizantes das imagens de cada um, e de todos, e a conceptualidade da ideia de Verbo, esmoreceu. Um poeta, por exemplo, não necessita ser compreendido, por outro lado, o culto da personalidade ainda lhe é estranho, e devemos interrogar-nos acerca disto mesmo nos nossos pensamentos, que sentimentos, afinal, todos nós temos. Mas valerá o sentir confessional, personalizado e fechado, abranger apenas este domínio? Claro que não! O primeiro impulso poético foi épico, e só séculos mais tarde nos vamos encontrar amarfanhadamente e cheios de nós em cintilações egóticas.

Não devemos expandir demasiado mesmo que o desejo seja louco – trilhar sempre a via do meio – e seguir adiante no vasto entendimento, que as conclusões são anátemas de muita injustiça, e nada se vislumbra até a Nuvem passar. Quero dizer que a tendência didáctica, escolástica, permanece activa nos ideais da Nação, mas agora contempladas como um mercado mais, que tem na sombra os dilectos, e que um dia quando acordarmos nos trarão ainda um português indisfarçável. Uma língua de Mar!

Se valeu a pena? Valeu, sim! Os nossos sonhos nunca recapitulam, e ficamos escrevendo Cânticos até ser outra vez no mundo, uma qualquer outra noite escura. Mas sabei que estamos atentos! Um certo horror percorre as nossas veias por ver a maré cheia da retrogradação, a bestialidade e o dogma. Estamos metidos num problema que os nossos pesadelos (outrora já tão leves) não equacionaram. Porém, e quando for necessário, o nosso colete de vento será o de um soldado.

Entre os ingovernáveis trilhos do confessionalismo, do intimismo e da notória falta de pudor de cada um, existe ainda o Poema, que se não for esse além, cosmonáutico, astral, inserido e completado nos céus, será apenas um refrão de sangue e vísceras. Naturalmente, e passe a saúde, esse conceito de Bem tão em voga, doenças ainda existem que serão antídotos para tais blasfémias. Ter saúde não significa ser-se são- que ela se nega ainda aos ressentidos- tal como à pobreza se nega o pão. Nós, vamos continuar, e ser o lado melhorado destas saudáveis e sacrificadas gentes, que precisam dos seus poetas, por que sem eles toda a estrada é estreita e vamos ainda necessitar das vozes acesas, dos locais fermentados pelas presenças, e se nada disto for tolerável, questionável, valorizado e condutor de diferença, o que andámos a fazer perder-se-á na voragem efémera dos dias.

A literatura de género, e o género imposto ao código literária, tende agora para um estilismo sem causa, por uma razão simples: sabe-se escrever ou não se sabe. O que cada um extrai da sua natureza sexualizante não deve perturbar a palavra em nenhum dos sentidos da marcha, nem tão pouco conferir arrojos capciosos que insultem as partes. Dito assim, a Poesia é definidora de um poder de síntese que a torna sem dúvida o mais aperfeiçoado registo da linguagem, e se o imponderável é o reino onde todos nos confrontamos, requer-se ainda transgressão e sublimação, em frente de uma Humanidade onde cada palavra pode ter ainda um poder salvífico. Andámos demasiado tempo a brincar com coisas sérias! Fizemos muitos «SNIS» inventados à boa maneira de entretenimento, mas o autor do seu Poema não é um diletante, nem um prazeroso amante de “poesia” isso são cargas letais para caminhos livres e rigorosos, como deve ser o de um poeta.

Um Cântico à República saída na madrugada de 4 de Outubro da rua de Campo de Ourique, sede do antigo Centro Escolar Democrático. Aqui, findaram os saraus! A Poesia iria continuar em marcha como todos os vivos que se abastecem de seu próprio visionarismo.

17 Nov 2023

Cântico órfico

[dropcap]C[/dropcap]onfusas evidências por não serem mais que potencialidades. Por adivinhar. Divididos – nem seria o termo – entre a natureza titânica do corpo que aprisiona a alma e a natureza supostamente livre e divinamente dionisíaca desta. Mas na verdade vivemos sem fractura essa dicotomia. Eternamente aprisionados e simultaneamente livres. Na insatisfação que ao mesmo tempo transporta em si a chave da porta.

A viver inundados ou atemorizadamente afogados. De limites e olhares. Ou em fantasias de nós, ou do mundo e de uma coisa na outra. Um desejo de formular e edificar uma realidade que nos sirva e de que sejamos culto e templo, à falta de maior evidência de que existimos e valemos. Não se deixa crescer ou ascender uma realidade para se amarrar e reprimir. Há que libertar, respirar, soltar amarras…

E isto fez-me retornar àquela curiosa questão do segredo. Que tanto pode ser uma luz bruxuleante a captar curiosidade, ou um fogo-fátuo discreto, como um buraco negro em que sabemos não dever penetrar. Porque o segredo deixa pistas que não resistem a uma intuição, a uma apetência viva pelo detalhe.

Um segredo reúne em si as apetências paradoxais de ser e deixar de ser. Ser desvendado. Partilhado, é apenas um dado com universo circunscrito e ainda privado mas já não íntimo. No máximo duas pessoas ou três. Quatro ou cinco, por essa ordem de ideias. Mas continuará a ser um verdadeiro segredo? Tantos por aí.

Que se veem. Mas, no apetecível de contar, deixariam de o ser. Um segredo que se adivinha fere-se. A ele e ao ouvido adivinhador. Porque é um segredo altivo e que passa sem dirigir palavra. Sabemos que todos temos um segredo, segredos. Mas saber mesmo, que alguém tem um segrego, descendo ao particular, é quase saber-lhe metade. Não está demonstrado que seja. Mas é como dizer: vê. Descreve-me a pele, a febre para dentro e as chispas que se derramam na inocência de se querer inofensivas. Descreve-me aquilo que aos olhos não teme supurar se os olhos forem mesmo os olhos de quem vê. Lê-me no que, no mais, ninguém lê e sou livro teu. Segredo, é o que se sabe. Que existe. Senão, de tão bem guardado, não chega a ser, porque não existe para mais ninguém. E assim, como nomeá-lo?

Não podemos pensar o segredo como uma especificidade de baús de couro velho, maços de cartas antigas, enlaçadas a fita de cetim, portas que se entreabrem no lusco-fusco da noite já caída para ficar, ou figuras que se esgueiram ao olhar das vizinhas atentas. Ou de uma faca poluída da invasão daquilo que só pelo amor.

Ou mesmo de terra sobre terra a esconder o que para alguém não deveria ter existido. Muito mais se esconde em cada desconhecido rosto, em cada fachada de prédio em cada janela entreaberta para que entre um pouco do universo e saia um pouco do que excede o diâmetro físico do crânio. Pode ser o que mais se teme reconhecer ao espelho. Ou a boneca sentada igual, sobre a cama e a colcha de seda. O que nela se aprisionou e que dela dificilmente se expira ou exala.

Segredos não são coisas pequeninas, que não se querem reveladas. São coisas de volume sólido. Objectos redondos e espessos. Como esferas de chumbo. Mas que rolam sem querer. Ou, às vezes, o querendo e não querendo, no mesmo exacto ponto de decisão.

Eu vinha do reino de M. situado na palavra bonita do Magrebe, reduzida de dor recente naquele ano, em que tudo e ainda mais, um pouco depois. Saia cinza e sapatos de atacadores e casaco severo. Apeadeiro de avião. Na fila ao relento, uma cara sorridente que me antecedia, pergunta-me com simpatia evidente pelo adivinhado: missionária? Sem vontade para palavras explícitas fiquei-me por um aceno de que não nem por sombras. E ela, ainda simpática, como quem reflecte melhor e emenda um erro básico: franciscana? E a minha expressão e gesto em negativa, sem mais da minha parte a explicar a roupa ou a mala, desinteressou-a sem mais explicações nem palpites. Numa indiferença zangada.

Lembrou-me o Júlio, esse sim, missionário e reformado, diz ele. Crioulo alto mas mais magro de cada vez e andar cada vez mais arrastado. Passa todos os dias – todos – na minha rua, a caminho do rio. A caminho do rio onde se senta a olhar. E a batucar suavemente superfícies ocas de assento, a acompanhar trechos soltos.

Falámos uma vez. Dizemos boas tardes das outras em que o encontro aqui em cima. Sempre a caminho. Curiosamente nunca me lembro de o ver voltar. Como uma maré que, quer enchente quer vazante, sempre tende para a costa. E sem falhar um dia da sua missão, enquanto arrasta as pernas já difíceis, a trautear músicas de jazz, espirituais, louvores a Cristo e, uma vez por outra, como excêntrico variar em excepção, até coisas latinas de amor. Mas é raro.

Isso outra coisa. Ali, naquela pista de aeroporto, àquela mulher madura, bastar-lhe-ia ter trocado as cores, adivinhado no insólito tamanho da mala fora do formato e das medidas, tão grande e clandestino ainda assim e no amarfanhado interior quase vazio, para arrumar. Mas era curta se bem que instintiva a curiosidade. Não avançou pelo secreto conteúdo. E deixou-me amorosamente agarrada ao malão enorme e autorizado por distraído olhar, em que me trazia cuidadosamente para casa.

13 Jul 2020