José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasFim da caixa comum [dropcap]A[/dropcap] Santa Casa da Misericórdia tinha a seu cargo a Casa dos Expostos que, por ordem da autoridade judicial, há anos aceitava raparigas de mau procedimento e incorrigíveis, que não foram expostas e cujas famílias que as criaram procuravam livrar-se. Estas mulheres nos finais de 1866 eram em número de sete, sendo sustentadas, vestidas e tratadas nas suas doenças na Misericórdia. “Para tudo tem servido este pio estabelecimento, menos para exercer a verdadeira caridade. Este abuso, de uma inconveniência bem manifesta, não deve continuar”, declarou a Comissão e por isso, no Boletim do Governo de Macau, Ano 1867 – Vol. XIII – n.º 6; segunda-feira 11 de Fevereiro, Parte Oficial N.º 12, o Governador de Macau José Maria da Ponte e Horta determina a 8 de Fevereiro de 1867 o seguinte: . Já na portaria n.º 11, o Governador abolia . Por isso, as aceitações dos recém-nascidos continuariam, mas por admissão justificada com registos em forma, a garantirem às mães pobres, os subsídios já durante a gravidez e puerpério (período do parto), com assistência em maternidades e com visitas mesmo posteriores, quantitativamente longe ainda do que seria necessário, mas ao menos em bases justas, mais dignas e humanas. Não é portanto o intuito de encobrir aos olhos do mundo a vergonha de uma união ilegítima a causa da exposição em Macau, pois que isso nada importa aos chineses e é raríssima a exposição de crianças portuguesas. Em quinze anos, como afirma a Regente do estabelecimento, aponta-se esta e aquela. Seja isto dito em abono da nossa população. Para ela felizmente é desnecessária a roda, que absorve um terço dos rendimentos da Santa Casa da Misericórdia, que são provenientes de dinheiro a juros, propriedades de casas, terrenos, hospital, capelas, lotarias, multas e cadeiras no passeio público. Já as verbas de despesa são, para além da casa dos expostos, o hospício dos lázaros, hospital, presos pobres, educação de um aluno no Colégio de S. José; foro do cemitério dos parsis, missas e esmolas. Escolha das amas À data de 31 de Dezembro de 1866 havia 79 crianças de leite e 29 desmamadas, nenhuma portuguesa, sendo todas chinesas, além de sete raparigas adultas, remetidas em depósito pelo Juiz de Direito, para lá desempenharem serviços auxiliares. Da China vinham muitas crianças, abandonadas pelos pais por serem raparigas, sendo recolhidas pela Santa Casa da Misericórdia que tratava delas até aos 7 anos. Depois entregues ao destino, ou, compradas pelos habitantes tornavam-se muichais (criadas para toda a vida). Nada tinha, pois, de lisonjeiro ou tolerável tal estado de coisas, e por isso a Comissão, assustada com o progressivo aumento dos gastos, em ritmo impossível de ser comportado, entendeu que, para salvar da completa ruína a Misericórdia convinha, em primeiro lugar, abolir a roda… continuando, porém, a socorrer os enjeitados existentes. Apesar de ser uma medida oficial, por força da rotina continuaram a persistir as admissões, quase nos antigos termos e números. Disso queixava-se em 1870 outra Comissão Administrativa ao classificar esse serviço a manter obrigatoriamente 72 crianças entregues a amas de leite e 26 aos cuidados da Regente. Novas instruções foram também aprovadas para a escolha das amas: Que as amas sejam de boa constituição e gordura mediana e de 20 a 30 anos de idade. Que sejam de fisionomia alegre e viva. Que as tetas sejam firmes, arredondadas e de volume mediano, com os mametais bem formados, mas não grossos e sem rachas ou escoriações. Que o leite seja abundante, de cor azulada, sem cheiro, de sabor mal doce e assas consistente para se conservar em gotas, quando lançado em superfície polida. Que não tenham erupções pelo corpo ou na cabeça, nem transpiração de cheiro forte. Que não tenham mau hálito e que os dentes sejam brancos, unidos, as gengivas firmes e em bom estado e a garganta sã. Que não tenham cicatrizes nas virilhas e as partes genitais estejam em estado normal e sem leucorreia (branco corrimento). Do Arquivo da Misericórdia. Enterros sem cerimónia O Boletim da Província de Macau e Timor de 3 de Junho de 1867 refere, “O estabelecimento dos expostos, que pela Portaria do Governo de 2 de Fevereiro de 1867 a Santa Casa conserva ainda sob sua guarda e cuidado, não deixou de ser fiscalizado. Contam-se até hoje 71 crianças de leite entregues ao cuidado de 71 amas, fora da vista e vigilância da casa, pelo subsídio mensal de 1 pataca a cada criança, inclusive o salário da ama; e 25 desmamadas ao cuidado da Regente, sustentadas por conta da Santa Casa. Para melhor inspecção das crianças entregues às amas, a comissão deliberou que o velho distintivo, que elas traziam para serem reconhecidas, fosse substituído por um novo, que é um cordão atado ao pescoço da criança em distância, que não possa passar pela cabeça, tendo as pontas amarradas, e lacradas com o selo e como dístico – Santa Casa da Misericórdia – sobre um quadrado dobrado de duas polegadas, de pergaminho, com o número correspondente ao que se acha consignado no livro do registo. As crianças eram apresentadas mensalmente pelas respectivas amas à Regente dos Expostos para receberem o subsídio correspondente. Caso alguma falecesse era o cadáver levado à Casa dos Expostos e mandado enterrar pela Regente no cemitério público.“ Trabalho realizado por um chinês que se encarregava de transportar o féretro ao cemitério e após abrir uma pequena cova, com licença do encarregado do cemitério, da caixa retirava o cadáver e o sepultava sem haver cerimónia, nem a bênção do respectivo pároco. A caixa, comum pois servira e servirá para outros, regressava à Casa dos Expostos. A partir de 1867, em caso de falecimento de uma criança era ela levada à Casa dos Expostos e apresentada ao encarregado daquele estabelecimento, um dos vogais da comissão, para verificar pelo distintivo a sua identidade. Depois o defunto era levado dentro do féretro à sepultura, precedendo-se o aviso ao respectivo pároco, para encomendar o corpo, ou na igreja, ou na capela do cemitério. Sendo o cadáver enterrado dentro da caixa, deixou assim de existir a caixa comum.