João Paulo Cotrim Artes, Letras e IdeiasProva de vida Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 13 Março Na discussão ininterrupta entre o peso e a leveza, a cadeira parece-me um dos mais notáveis argumentos. Assim como o bater de asas do colibri, só o debate nos sustenta. Dir-me-ão que a posição de lótus fará bem a ligação entre terra e céu, mas não encontro nisso construção. Não existimos sem extensões do corpo e a cadeira dá-nos um chão que ir permite ir longe mantendo raízes. O automóvel foi construído para definirmos bem sentados a paisagem. A casa é uma garagem de cadeiras. Sento-me na primeira fila para ver o espectáculo imersivo da meia idade. Sem querer, elefante, salto de nenúfar em nenúfar. «As ruas que descem são perigosas. Nada de mais, apenas inclinação. Os montes subidos também continham a sua dose de risco, cenário exacto para o Castelo. Sustenha-se a respiração. Uma navalha esculpia na terra como uma tatuagem aquele exemplo de clássica arquitectura militar. A conquista havia tinha que se rasgar com percursos unidos pelas armas que se espetadas na terra. Contavam apenas as que ficavam hirtas e vibrantes. Grande aventura, ter uma navalha na mão no meio dos montes para a atirar com força e gritos. Os gritos são indispensáveis. Nem tínhamos que jogar bruto, mas aí aliviava bastante. Contra um árbitro, que segurava a cabeça do primeiro e por isso se chamava mãe, um grupo enfileirava-se de costas dobradas, cabeça debaixo das pernas do da frente, enquanto o outro grupo saltava de joelhos nas costas. Quem não aguentasse, perdia. Quem não aguenta, perde. Não é diferente fora das histórias: gritar ajuda. Doía mais o círculo dos calduços por causa do silêncio imposto. No meio de uma apertada roda de estátuas proibidas de mostrar os dentes alguém se mexia como doido. Se parasse oferecia a nuca à fortíssima palmada anónima. Se vislumbrasse o autor, caía ele no buraco negro. Não era fácil trocar de abismo.» Desportos radicais, A história devida, programa Antena 1 «Os textos têm um princípio. E os dias também. Aqueles começam por uma letra, estes por um raio de sol. O universo começou, nem sei se se por acaso ou por necessidade, com um bang. Noutras versões foi um verbo e um sopro. Mas tudo traz um princípio, ainda que tosco. Além do gosto, há princípios que trazem hesitações e despudores. Alguns contêm esforço e sacrifício, quase partos. Com dor. É caso nas utopias. Como o é num ou noutro desejo, até neste pequeno querer fazer: pois ele há princípios de coração, princípios de mão, princípios de cabeça. Crescer além do momento principal é ainda, e sobretudo, trocar uns princípios por outros, escolher uns quantos e alimentá-los. Evitando que se suicidem contra a luz. Serão os fins principalmente desgostos? A minha colecção sem fim de pequenos princípios não me dá resposta.» Dedo na ferida, jornal Combate «A arte pura é exibicionista, gosta que a vejam, não se realiza sem que uns poucos a admirem. É verdade que nem sempre se despe, pois ama a sedução tanto como o mistério. E joga ao gato e ao rato com o que sente e dá a sentir, com o que vê e dá a ver, com o que mostra e dá a esconder. Mas nem todas as artes são exibicionistas. Na classificação das artes há uns lados de sombra onde se abrigam, ao fresco, aquelas disciplinas tão indisciplinadas e movediças que escapam às supremas etiquetas e às grandes hierarquias do gosto e da sensibilidade. São menores ou impuras, mas nem por isso deixam de se atravessar no nosso caminho. Até se instalam para ficar nos nossos modos de ver e de experimentar as coisas. Como algumas insidiosas melodias que não nos deixam o ouvido, há pequenos momentos visuais que nos paginam os dias, que os arrumam logicamente ou os desarrumam poeticamente.» Crónica, TSF «O país Lisboa possui a luz da tolerância e nele convivem há séculos as mais díspares religiões e comércios e corpos e cores. No Martim Moniz, nas suas arcadas e recantos, mora um mundo inteiro. Ali à volta encontram-se passagens directas para os mais distantes lugares: China, se procurarmos bem por entre imitações; África, no cabeleireiro de carapinhas; Goa, num certo restaurante de tentações picantes, ou o Absurdo, no hospital das bonecas. Lisboa ainda acredita na infância.» Passagens de nível sem guarda, revista Up «No país da amizade não há tribunais, mas também não há mapas. A primeira coisa que um amigo faz é abrir a porta, a segunda é ouvir. As perguntas só chegam depois, e serão todas passadas pelo crivo da sinceridade. O amigo está sempre lá e acolhe antes de opinar, cada um da sua maneira muito própria. O amigo fará tudo pelo amigo, mas não fará necessariamente aquilo que o amigo quer, mas o que a amizade lhe manda. A razão é simples: não podemos viver a vida através dos outros. Sem ter vivido alguma coisa nada tenho nada para trocar e é disso que falamos quando falamos de amizade: de partilha. Nenhum amigo evita os problemas, ninguém tem as soluções que precisamos. Ajudam a perceber os problemas, o que é meio caminho para encontrar as soluções.» As ocasiões são para os amigos, revista 20 anos «Mal o mundo suspire de cansaço, eis a hora certa. Pouse-se o rosto na coxa como um cair de tarde e admire-se. Não basta sonhá-la, como se nunca tivesse existido; não interessa invocá-la, resgatando-a aos confins da memória ou às páginas de um livro; não serve sequer vê-la: temos que a dizer, devemos escrevê-la. Só assim entramos nela iverdadeiramente. (…) Neste endereço se encontra a suprema alegria de jogar com os sentidos, não apenas os cinco, mas os outros que desaguam nesses como marés, aquilo que fomos ou o que estamos para ser, o que preferimos esquecer e apagar. Está tudo ali, na cona de Picasso, que pintava com o caralho.» A cona de Picasso, jornal Lux Frágil