Danny Leong, biólogo: “Aprendo todos os dias”

Tem 27 anos, nasceu em Macau e foi seleccionado pela National Geographic para integrar um grupo de 15 exploradores emergentes a nível global. Biólogo e investigador, Danny Chi-Man Leong diz-se “honrado” pela nomeação e espera agora inspirar novas gerações a explorar o mundo. Ao Governo sugere uma forte aposta na área da biologia como forma de tornar Macau mais resistente ao impacto de fenómenos naturais

 

Qual é para si a importância de integrar o grupo de exploradores da National Geographic?

Este ano, apenas 15 pessoas de todo o mundo foram nomeadas para integrar a lista de exploradores emergentes da National Geographic e eu fui uma delas. É uma grande honra para mim. Tenho apenas 27 anos e não esperava que isto viesse a acontecer, até porque algumas das pessoas selecionadas para o grupo são investigadores da NASA dedicados à investigação espacial. Estou muito entusiasmado com esta oportunidade.

Esperava fazer parte deste grupo?

Fui escolhido para integrar a lista da National Geographic porque me consideram um exemplo para Macau e para todo o mundo. Querem que, tal como eu, haja mais estudantes e investigadores, capazes de contribuir com o seu tempo e capacidade mental para desenvolver o tópico da sustentabilidade, explorar o que está à sua volta e mudar o mundo e as pessoas. Para se ser um explorador da National Geographic é preciso ter uma ideia de como é possível mudar o mundo. A minha ideia passa pelo estudo da sustentabilidade urbana e gestão da vida selvagem. Uma forma de contribuir para esse fim é compreender melhor de que forma a urbanização e os habitats humanos têm vindo a substituir habitats naturais. No meu entender, ainda é possível aumentar os espaços verdes disponíveis nas cidades se for feita uma aposta na preservação de jardins e em planos de manutenção das espécies nativas. Por isso, ao estudar estes tópicos, o meu objectivo tem passado por contribuir para a sustentabilidade urbana e a National Geographic demonstrou admiração pelo meu trabalho, em particular ao nível da descoberta de novas espécies, pois em 2018 descobri uma espécie de formiga que só existe em Macau [Leptanilla macauensis], e do aumento do conhecimento sobre a biodiversidade. Espero, com os resultados do meu trabalho, chegar ao público. Adoraria que isso acontecesse. Sinto-me honrado por ter sido escolhido.

Que tipo de apoio passa a receber da National Geographic através da nomeação?

Ao fazer parte da família National Geographic, posso ter acesso a algum equipamento específico e a algum apoio. Mas isso depende dos projectos que estiver a desenvolver e, além disso, é um pouco difícil de utilizar [em Macau] os equipamentos que disponibilizam, porque estão todos em Hong Kong. Por isso, neste momento, só consigo ter algum apoio da parte deles, mas espero que o Governo de Macau apoie os investigadores e as universidades locais a fazer mais estudos ambientais e a tornar Macau numa cidade fantástica e sustentável.

Qual foi a importância da descoberta da formiga endémica de Macau ao nível da investigação ambiental e biológica que é feita no território?

Acho que todos nós temos vontade de investigar e descobrir coisas novas que pertencem ao sítio onde pertencemos, mas poucas pessoas dão o passo seguinte. Eu fui uma dessas pessoas que deu o passo seguinte e, da minha iniciativa, fui até diferentes cidades para prosseguir os estudos e usei o meu tempo pessoal para investigar a biodiversidade de Macau, acabando por descobri uma espécie que, até hoje, era desconhecida em todo o mundo. Por isso, encorajo a próxima geração de jovens e estudantes de Macau a pensar em formas de contribuir para a comunidade.

Em Macau, como vê o panorama da investigação na área da biologia?

A biodiversidade de Macau é muito rica porque se situa numa região subtropical. Além disso, é uma zona rica em recursos biológicos que tem contribuído muito, por exemplo, para áreas como a medicina tradicional chinesa. Há ainda muito trabalho pela frente. Em primeiro lugar é preciso classificar todas as espécies que existem em Macau, porque até hoje ainda não sabemos quantas espécies existem e, por isso, não é possível estabelecer campos de investigação. Sugiro que Macau invista mais em biologia e recursos biológicos, pois são áreas de investigação que oferecem um potencial elevado para se tornarem em indústrias. Inclusivamente, o presidente Xi Jingping mencionou que as paisagens verdes são até mais importantes que o ouro e o dinheiro, por isso o Governo de Macau deve encorajar a investigação ambiental por forma a alcançar o objectivo da sustentabilidade. Além disso, Macau como cidade que faz parte da Grande Baía e da China, tem a obrigação de fazer isso.

De que forma a sustentabilidade pode ajudar a economia de Macau?

Se não atingirmos o objectivo da sustentabilidade Macau vai perder muito dinheiro. Por exemplo, ao nível da resiliência contra fenómenos naturais extremos como a chuva intensa. Basta ver os estragos provocados pelas últimas chuvas fortes. Fizeram-nos perder muito dinheiro.

Existem novos talentos em Macau na área da investigação ambiental?

Estou ansioso para que apareçam novos investigadores em Macau e espero que a iniciativa da National Geographic contribua para promover as questões ambientais e de sustentabilidade em Macau e permita que Macau seja reconhecida por isso. Gostava muito que a investigação que é feita em Macau pudesse dar contributos a nível mundial. Depois de integrar a lista da National Geographic pretendo encorajar mais pessoas a explorar os seus talentos e a encontrar vias para solucionar os problemas do mundo. A partir daí, espero que se tornem, tal como eu, em exploradores e que haja cada vez mais pessoas a enveredar por este caminho. Eu sou o primeiro e espero em breve conhecer o segundo.

Em termos académicos, existe oferta suficiente de cursos e planos de estudos nestas áreas em Macau?

Considero que ao nível da educação ambiental, ciências ambientais e investigação de recursos biológicos não existe oferta suficiente. Por isso, espero que o Governo desenvolva programas relacionados com as ciências ambientais e a investigação de recursos biológicos para colmatar esta questão, porque o caminho para tornar Macau numa cidade sustentável passa por aqui. Além disso, uma maior aposta nestas áreas pode ajudar Macau a atingir as metas traçadas pela ONU ao nível da conservação da diversidade biológica.

Como começou o seu interesse pelas ciências e pelo ambiente?

O meu sonho é conseguir fazer ligações entre pessoas e natureza, porque actualmente esse elo de ligação com a vida selvagem está partido. Em grande parte, a culpa disso estar a acontecer neste momento está relacionada com a pandemia de covid-19. As consequências podem ser vistas em todo o mundo e, por isso, mais do que nunca, tenho essa vontade de contribuir para que se retome essa ligação. Mas, antes disso, já me tinha apercebido que existia um grande problema e, por isso, decidi estudar a biodiversidade em contexto urbano, o que me levou ir para Macau para perceber o quão bonita cada uma das criaturas que há em Macau pode ser e a questionar-me se não existiriam novas espécies por descobrir. Agora não estudo só a biodiversidade, mas também a sustentabilidade urbana e a gestão da vida selvagem, com o objectivo concreto de explorar que políticas são adequadas para tornar Macau num sítio melhor e relevante nestas matérias, não só na Grande Baía, mas também a nível global. Aprendo todos os dias e espero que a minha história possa inspirar mais jovens.

7 Jun 2021

Biologias II

[dropcap]A[/dropcap]idade moderna dissocia dramaticamente a mente do corpo. Descartes torna irreconciliáveis pensamento e mundo. A “cogitatio” e a “extensio” são termos que se contradizem. Se o mundo é material, corpóreo, divisível e extenso. O pensamento é imaterial, incorpóreo, indivisível e inextenso. Descartes não deixa de dar uma formulação positiva para pensamento. A cogitatio é a abertura “aqui e agora” que dá acesso ao conteúdo “aqui e agora” de cada uma das nossas vidas com as suas agendas individuais. A percepção clara e distinta é a dupla presença sincronizada de mim a mim, de mim ao mundo, de mim ao outro. A percepção torna presente um dado conteúdo que coincide comigo e é interceptado por mim. O agora traz-me de cada vez um conteúdo determinado. Todas as pessoas existentes têm o seu conteúdo agora diferente do meu, no decurso das suas vidas. O presente que de cada vez se renova e actualiza é pensado à luz das nossas percepções que se reactualizam e renovam, mesmo tendo o mesmo conteúdo à sua frente. Deus é omnipresente não apenas por que tudo vê, mas porque cria o presente. O ser humano por defeito de finitude capta o presente a constituir-se e a trazer consigo o seu conteúdo específico. Mas nenhuma percepção poderia criar um momento presente. Nem o homem mais rico do mundo consegue comprar um só instante de tempo. Descartes procura assim mostrar que a evidência com que se constitui uma percepção clara e distinta resulta da consciência da simultaneidade de mim e de qualquer conteúdo, inclusive de mim próprio, quando me surpreendo a ter uma percepção de mim. Eu penso-me a pensar coisas pensadas por mim. Durante o tempo em que tenho essa consciência, não deixarei de ter a percepção da minha existência. Nem um génio maligno nem um deus enganador poderão estancar a consciência da duração, consciência que para ser tida também tem de durar. A percepção estende-se na duração para poder captar a duração, durante a qual as coisas duram. Passar muito tempo ou pouco tempo, todo o tempo do mundo ou nenhum tempo do mundo requer uma actualização contínua da percepção ou de fases de percepção. De outro modo, não poderíamos perceber a duração da nossa casa desde que temos a primeira percepção dela e a sua continua renovação. Sem duração nunca conseguiríamos ouvir música, a co-existência de sons numa sinfonia, perdura ao longo do tempo numa sucessão que permanece. O que se passa com a música na distribuição de sons por tempos, passa-se com toda captação sensorial. Não veríamos a continuidade de cores e texturas ou formas e figuras num quadro permanecer numa coexistência, mesmo se não olharmos para o quadro de forma abrangente. Podemos olhar para o canto superior esquerdo e deixarmos desatento o canto inferior direito. Quando recuperamos este canto, não é como se a tela não tivesse sido pintada. Um momento do quadro é visto depois de outro, mas percebe-se que ambos os momentos estão saturados de tinta, há uma permanência da coexistência de todos os pigmentos de cor que formam figuras e texturas.

Há, contudo, um elemento comum ao pensamento e à extensão, ao eu e ao mundo. Descartes fala de uma res cogitans e de uma res extensa. A realidade da coisa é a substância. A substância de uma coisa é tornada possível pela sua subsistência. A subsistência de uma coisa é a duração. Não é só a extensão material e corpórea que subsistem. O pensamento, mesmo durando um lapso de tempo dura. A duração do pensamento tem de coincidir com duração de uma coisa. A duração do eu tem de coincidir em possibilidade com a duração do mundo. A minha duração é a duração do meu mundo. Só que não vemos a duração do tempo, porque não vemos o tempo. Sentimos o tempo a passar, podemos até dizer que temos uma percepção do tempo, mas o que temos quando dizemos que sentimos ou temos uma percepção do tempo? O que é ter uma percepção de si, quando precisamente somos sem extensão, não temos realidade material no pensamento? Por outro lado, o mundo é o mundo pela sua realidade. No mundo pode ser visível a passagem do tempo, pelo menos na proximidade, porque o céu azul é o mesmo de sempre, a lua é a mesma de sempre, o Atlântico é o mesmo de sempre. A passagem do tempo sente-se, quando podemos dizemos, por outro lado, que o céu azul já não é o da infância, tal como não são os primeiros dias da primavera, nem o primeiro mergulho de verão atlântico é recuperável agora, ainda que possa ser tudo feliz. Sente-se o tempo passar mesmo sem que haja vestígios da sua passagem. Não é necessária a ferrugem no ferro, nem o míldio, ou a podridão, ou o caruncho, nem lombadas de livros desbotadas pelo sol, nem folhas amarelecidas, nem flores murchas, nem a idade estampada nos rostos das pessoas, nem ruas que se desfazem ou prédios que se desmoronam, amizades acabadas, pessoas mortas. O tempo passa e temos uma percepção da sua passagem, como temos uma percepção da nossa passagem. Ou será antes que é por termos uma percepção da nossa passagem que percebemos o tempo a passar e que tudo passa. Nós somos esse tempo a passar inexoravelmente. Eu sou esse tempo inexorável mesmo se vivesse para sempre. A sequência é tempo, sem dúvida, como a coexistência e a simultaneidade, mas invertida. O sentido da sequência, o ser do tempo, é, sem dúvida o tempo que virá, que começa agora. Mas é também o tempo da irreversibilidade, o tempo inultrapassável e irrepetível. Descartes não viu este tempo. Viu um outro tempo que era omnipresente, omnisciente, omnipotente. Temporalizou Deus. E divinizou o ser humano e o seu mundo, mas erradamente. Porque até o seu Deus cria o tempo e conserva-o. É a origem do primeiro momento e da sua repetição e tudo o que é abrangível pelo tempo. Mas o ser humano não senhor do seu tempo, não pode enganar-se, não pode fazer que tudo seja como no princípio, mesmo que haja muitas coisas no princípio. Ou poderá? Pode o verdadeiro e autêntico princípio ser a meio da vida e o que era tido por o princípio ser já velho e estafado e só enganosamente o princípio. Terá sido um começo mas não um princípio.

O princípio é agora. Haver eu e ser outro. Haver outro e ser comigo.

Von Uexküll usava o termo Umwelt, palavra alemã composta de Um- e Welt, respectivamente: em redor ou envolvente, por um lado, e, por outro, mundo. A sua biologia teórica procurava mostrar de que modo o mesmo local era completamente diferente para diversas formas de vida, ao ponto de terem mundos diferentes, impermeáveis e incompatíveis uns com os outros. As espécies que habitam uma árvore, por exemplo, não vêm o mesmo que nós humanos, quando olhamos para uma árvore, se é que druidas, caçadores, guerrilheiros e amantes vêem a mesma árvore. [Continua]

15 Mar 2019

Biologias I

[dropcap]A[/dropcap]s disciplinas contemporâneas “biologia” e “zoologia” visam a vida. A biologia estuda a vida e os organismos vivos. Comporta em si diversos campos de investigação. A zoologia faz parte da biologia e estuda a vida animal. De qualquer modo, o acrescento “-logia” tal como noutras palavras: teologia, filologia, antropologia, significa disciplina científica. Portanto, há um suporte teórico e um modelo cognitivo de acesso a objecto específico pertencente a cada disciplina. Ainda: percebe-se que há ramificações e especificações em cada disciplina ao ponto de se poder pensar no plural: biologias e zoologias. Não se pretende reivindicar os termos “biologia” e “zoologia” para novas ciências ou novas concepções da vida em geral, humana e animal. Pretende-se, antes, procurar perceber o que na antiguidade estava em causa quando se falava de “bios” ou de “zôê”.

 

Muitas vezes, o que quer que os antigos visassem com o termo “bios” e “zôê”, ambos tinham o mesmo referente. Tal pode ser percebido quando verificamos a expressão “bios te kai zôê” (a existência tal como a vida) em Aristóteles. A hendíade reforça um único campo de investigação, ainda que com duas expressões diferentes. Mas mais. Parece haver uma troca de referente ou campos semânticos. Às vezes, o que parece ser visado segundo uma designação, noutras circunstâncias, parece ser visado pela outra. Por um lado, “bios” parece ter o sentido de “zôê”. Por outro, “bios” e “zôê” têm sentidos diferentes, ainda que se complementem.

Mas vamos por partes.

 

Aristóteles, na Ética a Nicómaco, distingue formas de vida ou horizontes “zoóticos”, para poder identificar a que diz propriamente respeito à existência humana. Primeiro, identifica uma dimensão que nós, humanos, partilhamos com animais mas também com vegetais. A nossa capacidade de assimilar nutrientes e de crescer é comum ao reino animal e ao reino vegetal. Cresce-nos o cabelo e as unhas. Aumentamos de tamanho desde a mais tenra idade. Desenvolvemo-nos até à idade adulta. Definhamos, envelhecemos. Morremos. A vida manifesta-se no seu sentido vegetal mais próprio na capacidade de processar alimentos, nutritivos, sólidos e líquidos, de os ingerir, digerir, assimilar. Nós e os animais e os vegetais. Aqui, não há diferença alguma entre a vida humana enquanto horizonte zoótico e os reinos animal e vegetal. Sem dúvida que há diferença no modo como nos acercamos dos nutrientes, os seleccionamos e segregamos. A planta de modo diferente dos animais. Os animais de um modo diferente do ser humano. Mas a “dieta” e o “regime alimentar” sempre foram objectos de estudo desde a antiguidade e encontra-se mesmo fixada nos textos mais antigos do pensamento ocidental.

 

O segundo estrato zoótico, se assim lhe pudermos chamar, é o da vida sensitiva ou perceptiva. Há textos em que Aristóteles exclui o reino vegetal da possibilidade de ter percepção. Outros há que o inclui. O reino animal partilha da possibilidade humana de ter capacidades perceptiva ou sensorial. Mas como é que uma planta pode ter percepção? Para Aristóteles, o facto de absorver água e os seus nutrientes e mesmo a necessidade de luz para a sobrevivência indicam, mais do que simbolicamente, a possiblidade de as plantas serem “sensíveis” ao meio ambiente. De resto, o modo como Aristóteles via a morfologia de uma planta por analogia com um animal não deixa de nos deixar perplexos do mesmo modo que nos permite compreender o que ele tem em mente. Diz Aristóteles, no De Anima, que a planta está de pernas para o ar, com o que corresponde, analogamente, à cabeça de uma animal enterrado na terra. Os seres animais, como os seres humanos, alimentam-se pela boca, normalmente, situada na cabeça. Assim, também uma planta. Só que a planta está de pernas para o ar e com a cabeça enterrada na terra. Podemos argumentar que o girassol parece ter a cabeça virada para o sol e, assim, gira orientado pelo movimento que o sol parece esboçar-se. Ainda assim, percebe-se que a terra dá nutrientes e a fotossíntese é uma realidade. Por outro lado, seres humanos e animais partilham de uma capacidade mais sofisticada de percepção, de locomoção, de reprodução e conservação, defesa, protecção e caça. A visão parece ser partilhada pelo cavalo, o boi e o ser vivo. Todavia, vemos de maneiras diferentes a mesma coisa. Podemos até reconhecer uma capacidade de visão ao falcão que nunca teremos. O mesmo com o olfacto do cão, etc. etc..

 

O horizonte zoótico que é próprio do ser humano, segundo Aristóteles, e não é partilhado por nenhum ser vivo nem ser vegetal, é o prático ou pragmático. Se quisermos, os humanos podem “existir” e a vida humana acontece na existência. Mas a vida animal e a vegetal, embora estando na realidade e na vida, nunca poderão existir. Uma planta está junto de outra. Pode até ser enxertada noutra. Mas nunca conviverão. Um animal pode conviver com outro animal, mas não existirá como cidadão num mesmo estado. “Ser um com outro” é uma expressão reservada ao ser humano. Só o ser humano existe com outro na polis, tem história e antecipa futuro. A zôê praktikê de que fala Aristóteles designa o horizonte específico do ser humano, mas, ainda assim, não capta a característica fundamental do bios.

O bios quer dizer a existência humana enquanto cronologicamente constituída: o tempo finito ou crónico, a distribuição da existência por tempo sido, tempo ser e futuro a haver, aspirações e desejos, conquistas e perdas, ambições e frustrações. Para os gregos, o bios mais do que um horizonte da cronologia que nos é loteada, é o resultado de uma escolha em que cada um pode ser de um determinado modo e ter um modo de vida.

8 Mar 2019