António Vitorino considera que “migração está muito politizada”

[dropcap]O[/dropcap] director-geral da Organização Internacional das Migrações (OIM) considera que o tema das migrações está “muito politizado e muito polarizado” e que vai estar “de certeza absoluta” no centro do debate político nas próximas eleições europeias.

Em entrevista à agência Lusa, António Vitorino defende que essa politização não é, todavia, exclusiva das migrações, sendo que as redes sociais têm tido “papel não dispiciendo na difusão de uma cultura polarizadora, do ‘like’ ou do ‘dislike’, como se a vida pudesse ser resumida a um ‘like’ ou a um ‘dislike’”.

“A vida é mais complexa do que isso e, nesse sentido, as migrações são um tema fácil para provocar reações emotivas”, diz Vitorino, para quem muito do que se passa nas redes sociais é menos racionalidade e muito mais emotividade. “Nesse sentido, as migrações são um tema politizado, sem dúvida, e obviamente muito polarizado”, realça.

O director-geral da OIM considera, todavia, que o que é “depressivo” é que a realidade de hoje é muito diferente da de 2015, quando se registou um enorme afluxo de migrantes na União Europeia.

“As tentativas de travessia do Mediterrâneo central e ocidental diminuíram em cerca de 80%, comparando o número deste ano com o do ano passado, apesar de o número de mortes ser proporcionalmente mais elevado”, afirma.

Isto “significa que a pressão existe, que os riscos que as pessoas estão dispostas a correr mantêm-se”, o que, no entender do ex-comissário europeu, levará que este tipo de situação seja utilizado como argumento no debate eleitoral das eleições para o Parlamento Europeu, ainda que a situação no terreno, do ponto de vista de afluxo, tenha sido significativamente reduzida.

António Vitorino não ignora que tanto o tema das migrações como o do pacto global das migrações são divisivos na União Europeia, como se viu pelo facto de oito Estados-membros não o terem subscrito, e que as alterações em curso da legislação sobre asilo e refugiados estão bloqueadas por dificuldades em chegar a acordo no quadro europeu.

“A única coisa que posso esperar é que aquelas forças políticas que têm uma visão equilibrada, realista e proporcionada das migrações tenham a clareza, a coragem e a clarividência de defenderem as suas posições nessas eleições”, afirma Vitorino, para quem essa visão não é “cor de rosa, mas também não é diabolizadora, reconhece as dificuldades, as ansiedades e as dúvidas que os fluxos migratórios colocam nas sociedades de destino, mas também o aspecto positivo que as migrações podem trazer mesmo para os países de destino”.

Segundo o ex-político e advogado português, as percepções no domínio das migrações “sempre foram bastante distantes das realidades”, razão pela qual são muito mais facilmente manipuláveis.

“Nesse sentido, continuo a achar que a política se tem de fazer com base na verdade e a sua evidência tem de ser trazida, divulgada e comunicada”, diz, embora reconheça que isso não seja suficiente.

“É também necessário que não esqueçamos os valores da dignidade humana dos migrantes, assim como os valores da segurança e da estabilidade das comunidades de acolhimento. Nós temos de reconhecer que a chegada de imigrantes provoca alterações na paisagem, na alimentação, nos hábitos culturais e que esse processo é um processo de adaptação recíproca”, alerta ainda o diretor-geral da OIM.

“É um processo de adaptação dos migrantes a um novo ambiente, mas também é um processo das comunidades que estavam rodadas na sua vida quotidiana e de repente vêem no seu seio pessoas com outra origem histórica ou cultural, às vezes outra origem religiosa e, portanto, este processo de diálogo e de interação não é fácil”, sublinha Vitorino, destacando o processo complexo que coloca grande pressão sobre as autoridades locais, “que são aquelas que estão mais próximas da realidade deste diálogo entre comunidades e também dos serviços sociais de primeira linha”.

Para Vitorino, em muitos sítios, “a reacção que existe contra a imigração é uma reacção que tem a ver com o facto de os imigrantes terem acesso a serviços sociais essenciais como, por exemplo, a educação, a saúde ou a habitação, que são serviços já em si mesmos sob stresse”, devido à crise financeira de 2008 e à crise fiscal do Estado.

Portanto, o que se pede aos Estados é que, na sua capacidade de planeamento dos serviços sociais, incorporem também a pressão acrescida que representa a chegada de imigrantes, para que os serviços que são dispensados a toda a comunidade, seja dos autóctones seja dos imigrantes, não sejam afectados por essas novas chegadas”, conclui.

“Tenho estado pouco tempo sentado em Genebra”

António Vitorino caracteriza como “muito intensos” os seus primeiros meses na OIM, reconhecendo o “grande desafio” de liderar uma estrutura de dimensão global que rejeita ficar sentada perante as crises.

António Vitorino, de 61 anos, ex-ministro português (1995-1997) e ex-comissário europeu (1999-2004), assumiu a direcção-geral da OIM a 1 de Outubro do ano passado, um mandato de cinco anos para que foi eleito em Junho passado.

“Foram três meses muito intensos porque foi necessário, não apenas acompanhar a dinâmica da adopção do pacto mundial sobre as migrações [confirmada em Dezembro passado em Marrocos], mas também lançar as bases da rede de migrações das Nações Unidas [que vai assegurar o processo de acompanhamento e de monitorização do pacto] que a OIM vai coordenar a partir de ontem, a partir do início deste ano.”

Mas também foram intensos porque a OIM, uma “organização extremamente descentralizada”, com 172 Estados-membros, presente em 150 países e com cerca de 470 representações no mundo inteiro, tem uma actuação “de grande proximidade” face às situações no terreno.

“Não resolvemos os problemas do mundo sentados em Genebra [sede da organização]. Aliás, tenho estado pouco tempo sentado em Genebra, porque tenho andado a viajar e é uma função que exige deslocar-me ao terreno para tomar consciência das realidades”, diz o responsável, indicando que para 2019 já tem várias deslocações previstas, designadamente às zonas de crise onde a organização está presente, mas sem adiantar mais pormenores por razões de segurança.

Nestes primeiros três meses na OIM, Vitorino também lançou um conjunto de reformas internas que pretendem responder à necessidade de “pensar a organização de uma maneira diferente”, nomeadamente ao nível do financiamento, medidas essas que deseja ver concluídas e aplicadas ainda este ano.

Actualmente, 97% do orçamento da OIM depende dos projectos que a organização desenvolve “à medida dos pedidos dos Estados-membros”.

“Não somos uma organização normativa, não somos uma organização dogmática que tem um modelo e que depois qualquer que seja a realidade aplica o modelo. Nada disso. Mas, obviamente que este tipo de flexibilidade e de adaptabilidade também tem as suas vulnerabilidades”, diz.

“É muito dependente de projectos, os projectos podem variar significativamente, são normalmente projectos de curto prazo, de um ano, e isso não dá garantias para um financiamento da estrutura central e do essencial da organização, independentemente das oscilações dos projectos. Portanto, vai ser necessário fazer uma progressiva transformação do modelo de financiamento da organização e estas reformas internas que foram por mim desencadeadas e (…) que estarão concluídas e aplicadas no decurso do ano de 2019, permitirão criar as condições para ter um diálogo com os nossos Estados-membros sobre o modelo de financiamento da organização”, prossegue.

As reformas lançadas incidem, por exemplo, no reforço dos mecanismos de ‘governance’ (governança) e de controlo interno, “requisitos essenciais para que a organização possa encarar a (sua) vida futura num outro modelo de financiamento”, destaca o responsável.

Sobre o modo operativo da organização, Vitorino relata à Lusa uma operação realizada pela OIM em finais de 2018 que envolveu a retirada de 500 imigrantes etíopes que estavam em Aden, no Iémen, país em conflito desde meados de 2014.

“Tivemos de negociar com as partes em conflito um período de cessar-fogo durante três horas para permitir que os aviões que fretámos pudessem aterrar, admitir os imigrantes e voltar a sair. Foi uma operação muito bem sucedida, porque conseguimos, felizmente sem qualquer dano ou incidente, retirar os 500 imigrantes que estavam entre dois fogos do conflito do Iémen, mas como deve calcular uma operação destas é extremamente complexa de organizar, extremamente custosa do ponto de vista financeiro, e do ponto de vista diplomático, porque exige uma negociação em simultâneo de um acordo de cessar-fogo com as duas partes para poder salvar a vida dos imigrantes”, conta.

Quando questionado sobre se convencer os doadores da comunidade internacional é uma missão mais difícil, o director-geral da OIM admite que o é “cada vez mais”, mas também realça que há doadores “que compreendem que a dimensão das crises humanitárias exige um grande esforço financeiro”.

“Acabamos de lançar, juntamente com o Alto Comissariado para os Refugiados, um apelo a contribuições internacionais na ordem dos 740 milhões de dólares para fazer face aos impactos da deslocação de venezuelanos nas regiões limítrofes e temos tido uma resposta muito positiva”, exemplifica.

Fundada há 67 anos, a OIM depara-se actualmente com situações de crise em várias partes do globo, um número estimado de migrantes no mundo na ordem dos 258 milhões (cerca de 3,4% da população global) e um registo de mais de 60 mil migrantes mortos desde 2000.

Na entrevista à Lusa, António Vitorino reconhece que assumir este cargo e perante o actual cenário é “um grande desafio, sem dúvida”.

“Se me tivesse perguntado se era daqui que eu queria partir, eu diria que não, porque as condições de partida não são as mais favoráveis, mas isso torna ainda mais estimulante o exercício da função e, sobretudo, porque estou profundamente convencido de que a questão das migrações é uma questão fundamental do ponto de vista do tratamento humano das pessoas, da humanidade que é devida às pessoas, mas também do ponto de vista da civilização em que queremos viver, se queremos viver em sociedades abertas, plurais, tolerantes, diversas, mas coesas ou se, por contrário, entendemos que fechados cada um no seu casulo se vive melhor”, afirma.

E conclui: “Como eu não acredito que a política dos casulos nos leva a algum resultado positivo, acho que temos todos uma obrigação de fazer com que as migrações sejam regulares, seguras, ordeiras e que é isso que interessa à Humanidade”.

7 Jan 2019

Migrações | OIM liderada por António Vitorino, um dos mais influentes políticos portugueses 

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] português António Vitorino, 61 anos, eleito esta sexta-feira director-geral da Organização Internacional das Migrações (OIM), uma nova etapa de uma carreira política de grande relevo, com ligações ao actual secretário-geral da ONU, o também português António Guterres.

O advogado, político, consultor empresarial, comentador, é hoje considerado uma das figuras mais influentes da elite política portuguesa, e quem uma vez disse de si próprio ser “aquilo que fiz”.

Natural de Lisboa, a entrada na atividade política deu-se quando era estudante no liceu Camões, aderindo à Juventude Socialista (JS), mas os ventos do Processo Revolucionário em Curso (PREC) radicalizaram então as suas posições.

Aproximou-se da Frente Socialista Popular (FSP) de Manuel Serra, que tinha rompido com o Partido Socialista (PS) após o disputado congresso de finais de 1974. De seguida, integrou duas outras formações também dissidentes do PS: o Movimento Socialista Unificado (MSU) em 1976 e a União de Esquerda para a Democracia Socialista (UEDS), liderada pelo engenheiro Lopes Cardoso, em 1978.

Dois anos depois, foi eleito pela primeira vez deputado à Assembleia da República nas listas da UEDS integradas na Frente Republicana e Socialista (FRS), liderada pelo PS. Acabaria por reingressar no partido liderado por Mário Soares e garantiria o lugar de deputado nas cinco legislaturas seguintes.

Licenciado em Direito em 1981, e admitido na Ordem os Advogados em 1983, o seu currículo académico indica ter concluído o mestrado em Ciências político-jurídicas (1986), para além da função de professor assistente da Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa (1982-2007), e dos departamentos de Direito da Universidade Autónoma de Lisboa (1985-1995) e da Universidade Internacional em Lisboa (1998-1999). Foi ainda professor convidado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e da Católica Global School of Law, da Universidade Católica Portuguesa.

A nível profissional, a sua teia de relações começa a ser reforçada quando integra a poderosa firma de advogados “Cuatrecasas, Gonçalves Pereira & Associados”, e passou a desempenhar cargos em importantes empresas, designadamente nos cargos de presidente de assembleias-gerais e de conselhos fiscais, ou de vogal em administrações, incluindo a Siemens Portugal, Brisa, Finipro, Novabase, Banco Caixa Geral Totta de Angola (BCGTA) ou da Fundação Res Publica, ligada ao Partido Socialista. Foi ainda presidente da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva entre 2007 e 2009.

Após ser eleito deputado, iniciou funções governativas em 1983 no cargo de secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares no IX Governo Constitucional (1983-1985). De seguida, e após aqueda do Bloco central e a subida ao poder de Cavaco Silva, seguiu para a região de Macau onde entre 1986 e 1987 seria o secretário-adjunto do governador Joaquim Pinto Machado, a quem sucedeu Carlos Melancia.

De regresso a Lisboa, António Vitorino, reconhecido membro da obediência maçónica Grande Oriente Lusitano, seria eleito juiz do Tribunal Constitucional pela Assembleia da República e sob indicação do Partido Socialista, cargo que exerceu desde 1989 a 1994.

Durante o XIII governo dirigido por António Guterres (1995-1999) foi designado ministro da presidência e de seguida ministra da Defesa nacional. No final deste mandato, passaria a ocupar o cargo de Comissário Europeu da Justiça e Assuntos Internos, um dos cargos de maior relevo da Comissão Europeia, tendo ajudado a elaborar a Carta dos Direitos Fundamentais da UE.

O Jornal de Negócios, numa abordagem aos “mais poderosos” e onde está incluído, destacou em particular a sua influência empresarial, política e mediática, e a perenidade.

Definido como um “mediador”, a sua presença na televisão como comentador manteve-o na esfera mediática e com influência na opinião pública. Uma “vasta teia de relações”, nacionais e internacionais, as amizades, os cargos que ocupou, na política e nos negócios, também lhe permitiram um assinalável poder económico.

A sugestão emitida em 2015 pelo então primeiro-ministro António Costa, atual secretário-geral da ONU, de que António Vitorino reunia “todas as qualidades para ser Presidente da República”, suscitou reações díspares, e particularmente críticas por parte Alfredo Barroso, o ex-chefe da Casa Civil na presidência de Mário Soares.

Num texto publicado no Facebook, relembrou os diversos cargos que ocupou – “Tudo isto é público e consta da Wikipédia”, disse –, para precisar: “Mas também se lê com vantagem o que sobre ele se diz – e diz-se muito! – no livro de Gustavo Sampaio “Os Facilitadores ou como a política e os negócios se entrecruzam nas Sociedades de Advogados”. Os socialistas neoliberais são mesmo assim…”.

Definindo-o como o “Proença de Carvalho do PS”, Alfredo Barroso contestava a sua eventual designação para candidato presidencial: “António Vitorino é politicamente muito competente, mas há muitos anos que está envolvido no mundo dos negócios, pertence a uma sociedade de advogados poderosa, participou em privatizações, ocupa vários lugares de administração em várias empresas”.

A corrida a Belém não ocorreu, e António Vitorino acabou agora por ser eleito para um cargo que sempre pretendeu, e para o qual será decerto muito útil a experiência que acumulou enquanto Comissário europeu.

1 Jul 2018